As memórias da morte e a fome de vida

Estadão, Caderno 2 – Domingo, 11 de março de 2007 Paulo Bentancur

Pelo Fundo da Agulha é a conclusão da trilogia de Antonio Torres iniciada há 30 anos com o contundente Essa Terra

Em 1976, Antônio Torres publicava um dos mais contundentes romances da literatura brasileira, Essa Terra (Record, 192 págs., 21ª edição, posfácio de Vânia Pinheiro Chaves, R$ 26,90): a história elíptica, num ritmo vertiginoso (apesar de retratar o Recôncavo Baiano, onde se suporia uma condução narrativa arrastada), febril na sua perturbadora condução e linguagem. Totonhim, o irmão mais moço, recebe Nelo, vindo de São Paulo, onde este fora tentar a vida. Parentes, amigos e vizinhos esperam que, mala aberta – uma só -, o filho pródigo traga fortuna. Nelo, entretanto, foi, viu… e perdeu. Carregando, na volta, insustentável bagagem (desemprego, alcoolismo), não suportando a ausência de respostas que plantem alguma esperança na terra seca dos conhecidos, o homem que partira em busca de êxito enforca-se no retorno ao lar, sentenciado pelo secreto fracasso. Isso já no primeiro capítulo. E o romance termina com cena mais dramática, cinema puro, Brasil puro. É o ritmo vertiginoso de um livro que, com Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Os Ratos, de Dyonélio Machado, está entre os mais tristes e convincentes da literatura como espelho da nossa realidade.

Em 1997, com O Cachorro e o Lobo (Record, 224 págs., R$ 29,90), Torres retomaria a história. Essa terra terminara com a decisão de Totonhim, depois de pôr a mãe num asilo (incapaz de assistir ao enterro do primogênito, tomada de surto psicótico) e deixar o pai à própria sorte em sua precária lavoura, em ir para São Paulo, tentar o que Nelo não conseguira. Foram necessários 21 anos para que essa espécie de anti-saga se impusesse ao escritor. Um monumento ao contrário, uma trajetória feita de impossibilidades, mas, por isso mesmo, a atingir uma intensidade de realismo poucas vezes presente na nossa ficção. O Cachorro e o Lobo retoma esse torturante vaivém. Totonhim, já passado dos 40, retorna para casa também 20 anos depois. Diferente do emudecido e arruinado Nelo, porém, chega apenas de visita, para comemorar, com três meses de atraso, o 80º aniversário do pai, Antão. Antão Filho, o Totonhim, está casado, com filhos, e um bom emprego no Banco do Brasil – embora a estabilidade não exista e ele tema, sem revelar aos que dele se orgulham, uma provável demissão em breve. Não saberemos do desfecho nessa parte.

Essa continuação trata da visita de 24 horas – que parecem uma semana. Totonhim, o cachorro (tratado assim pelo tom carinhoso do pai, que usa a mesma palavra com os desafetos, com significativa diferença na pronúncia) encontra uma cidade habitada por fantasmas, os do passado (o irmão, cuja presença se faz constante ainda na casa paterna; a mãe, separada, preferiu ficar noutra cidade, ainda no Recôncavo Baiano, há uns 100 quilômetros dali) e gente viva que se arrasta no andar, no falar, no agir, igualmente como mortos que apenas ainda permanecem deste lado.

Totonhim redescobre a primeira namorada, Inesita, revive com ela o encontro/desencontro, vital e inevitável, de uma relação que não pôde dar certo. E um pai (o lobo) octogenário, vendendo saúde, humor, e vítima de rumores sobre vício e esquisitices que o filho não confirma. Ao contrário, frutos da distorção do afeto da filha que mora longe e da curiosidade mórbida dos vizinhos que o velho Antão não visita, as imagens emanadas no dia-a-dia do ancião recluso (ainda que a testemunha filial tenha um prazo exíguo para comprová-las) mostram uma imensa fome de vida e uma fidelidade digna das memórias que o progresso, lamentavelmente, atingindo terras mesmo ermas, enterra para sempre.

Em Pelo Fundo da Agulha, lançado há pouco, Torres afinal chega ao desfecho de um pesadelo que levou três livros para ser expresso. Talvez o maior pesadelo da ficção em língua portuguesa. Se no primeiro romance o protagonista era Totonhim (embora o irmão Nelo e seu suicídio, além da parte final do romance, a mais marcante, a da mãe e sua fuga da realidade para não viver a morte do primeiro filho, sejam a essência do livro), no segundo, o pai e sua personalidade voluntariosa costuram uma trama que merece exatamente esse nome, porque alinhavada com esmero, quase elíptica não fossem recorrências e ecos musicais e temáticos: constâncias do medo, da culpa, das perdas humanas, do choque social entre uma São Paulo que é quase uma miragem e uma Junco – cidade natal – que não cessa de enviar notícias, imagens, febris mas reais (cidade fictícia, próxima a Alagoinhas, esta real, a cerca de 100 km de Salvador).

Uma Junco desolada, povoado fantasma nos anos 1970; 20 anos mais tarde, uma cidadezinha híbrida entre os costumes ainda vigentes daquele tempo (a sentenciar, por uma moral implacável e por falta de perspectivas econômicas, homens e mulheres), incapaz de exumar suas vítimas do Vale dos Suicidas, e um território suscetível aos abusos espoliativos da política pequena e do progresso desigual. Dez anos mais tarde, no fecho da trilogia, quando Totonhim se aposenta, cai numa região mais ignota ainda. Se a mãe, com 85 anos (o pai, vivo fosse, teria 90), é capaz de, numa visita sob a forma de despedida emblemática, mais desejada que realizada, fazer uma linha passar pelo buraco da agulha (como fazia há décadas, sem óculos), Totonhim nesse desfecho da própria trajetória trafega – e a linguagem evocativa do romancista contribui muito para isso – num não-lugar, que parece ter sido sempre o habitado pela personagem, da juventude à aposentadoria. Uma referência nunca cumprida, nunca legitimadora (contra a qual é preciso lutar; a favor da qual não se deve fugir).

Em Pelo Fundo da Agulha, sob a presença da mãe (como um Virgílio conduzindo Dante no Inferno), sabemos afinal um pouco dessa São Paulo e do casamento de Totonhim, quase nada mencionados nos volumes anteriores. E chega-se ao ápice dramático: a confissão materna das diferenças com o marido, da arte da persistência e de um estratégico afastamento de um espaço cujo solo parece servir mais para enterrar mortos que plantar sementes. A depressão da aposentadoria cede a uma sutil esperança. Um tempo renovado para que as culpas sejam substituídas por ações “indenizadoras”.

PS.: A terra – nos três volumes, sobretudo no primeiro e no segundo – parece sempre ser a mesma, quando a memória a evoca como ponto de partida para uma, duas, tantas travessias de um homem que, também, já não é o mesmo. Não, não se trata da mesma terra. Nem a história poderia ser o desdobramento previsível de um começo há três décadas. Por mais que ele sofra na ilusão de estar chegando ao fim de uma única vida. Quantas existências cabem em uma só? Tantas quantas forem as fendas abertas para as saídas (ou fugas, ou recuperações), ou as agulhas para o ingresso num novo espaço.

Paulo Bentancur é escritor, poeta, crítico literário, autor de Bodas de Osso e o recém-lançado A Solidão do Diabo, contos (ambos editados pela Bertrand Brasil)