Pelo Fundo da Agulha na revista Brasil/Brazil, da Brown University. Cláudia Nina

Se a ficção contemporânea tem a marca da diversidade de estilos e de vozes, sendo um caldo onde convivem várias tendências, entre elas o urbano, o histórico revisitado pela invenção, a anti-linearidade e muitos outros vieses, um elemento talvez seja o elo comum – ou a linha que perpassa – a tudo isso: a temática da solidão. Afinal, eis a condição na qual está o homem, desde a modernidade, mergulhado na multidão, mas irremediavelmente só.

É também sobre a solidão um dos romances mais desconcertantes de 2006: Pelo Fundo da Agulha, de Antônio Torres, que dá seqüência a Essa Terra, de 1976, e O Cachorro e o Lobo, de 1997. Com esse último, fecha-se o cerco da trilogia, marcando três tempos na obra do autor e ainda três momentos distintos da história da ficção no País. Aqui, seu personagem mais célebre – Antão Filho, o Totonhim – está de volta à cena, agora imerso num abandono emocional que é a sua maior dor: na capital paulista, deitado na cama, começa a pensar no sem-sentido da existência.

Marinheiro à beira de um cais imaginário, como diz o texto, Totonhim empreende a mais arriscada de todas as viagens: a volta ao tempo de sua própria história, em lances fotográficos em que a memória fragmentada por excelência, vai conduzindo sua mão pelos momentos vividos. Nessa viagem, embarca sozinho. Está aposentado, separado da mulher e dos filhos, perdeu o melhor amigo. Suas raízes estão em Junco, no sertão baiano, a cidade natal, e é de onde retira a belíssima imagem que dá título ao romance: a mãe, já velinha, mas com visão suficiente para enfiar a linha pelo fundo da agulha sem usar óculos. É a clareza de quem sobreviveu a uma dor lancinante, o suicídio do filho, mas mantém-se forte a ponto de não se deixar sucumbir.

Importante fazer aqui uma breve viagem no tempo dos romances para se entender o que ocorre antes desse momento. Em Essa Terra, o personagem Totonhim ainda está jovem e recebe o irmão, Nelo, que volta a Junco com o peso nas costas da derrota na capital paulista. É ele quem comete suicídio, humilhado por não ter conseguido vencer na vida. No final da história, é Totonhim quem abandona Junco, seguindo os passos do irmão na tentativa de sobreviver onde Nelo faliu. Em O Cachorro e o Lobo, passam-se 20 anos e Totonhim volta a Junco para comemorar o aniversário de 80 anos do seu pai. Não está feliz e nem vitorioso. Pelo contrário, o desemprego é um tormento iminente. Pelo Fundo da Agulha acontece dez anos após esse retorno a Junco e traz novamente o protagonista a uma nova encruzilhada.

A viagem agora é mais emocional do que real, Junco, o lugar que o ônibus deixou pra trás, resiste com força e poder apenas do reino da memória, assim como todas as personagens que se esfumaçaram na vida real, mas insistem em retornar à lembrança, teimosas que são. Não se tem aqui um relato linear; as vozes se confundem assim como os tempos narrativos. A intenção é embolar tudo mesmo. Nem poderia ser diferente, já que o texto se faz ao sabor da memória. A lembrança e seus fantasmas são sempre perigosos.

Eis um trecho que resume bem a situação em que se encontra Totonhim, no fim da linha, sem ter o que fazer ou pra onde ir: “Era São Paulo esta noite. A cidade que contemplou os sonhos de um imigrante com emprego, mulher, sogro, sogra, filhos (onde estariam eles?), amigos (e estes também?), viagens, amantes, sim, queridas colegas de trabalho, vocês foram o sal e a pimenta do nem sempre insosso modo funcionário de viver. E agora muito disso, ou quase tudo isso, havia se esvanecido na fumaça do maior parque industrial da América do Sul – mais um forno, mais um torno, mais um Volks. Agora ele estava só. Totalmente só, na cidade onde é possível você suportar tudo, quase tudo, menos a falta do que fazer”.

Ninguém está só quando se tem algo do que se ocupar. Mas, quando o tempo vai retirando os afazeres, percebe-se que todos à volta já se foram. Esse impacto de uma realidade que não se pode modificar é um soco no estômago de Totonhim que nem sequer num “longínquo passado” consegue encontrar um sentimento para a vida. É a cilada do tempo: enquanto o presente é solidão, o passado também não lhe oferece a possibilidade de um reencontro confortável, já que as lembranças têm um sabor mais agreste do que doce.

Pelo Fundo da Agulha talvez seja um romance perigoso, como narrar é também perigoso, pois trata da volta ao que foi vivido ou ao que, a duras penas, se vive. E uma narrativa sobre a solidão traz consigo um duplo perigo: o de fazer com que as personagens do outro lado da cena, os leitores, também percebam a sua irremediável condição.