A saga dos plantadores de cidades, por Torres

Entrevista ao jornalista José Nêumanne Pinto

  1. Em #doisdedosdeprosa, Antônio Torres fala sobre seu romance Querida Cidade, que narra a aventura da urbanização do Brasil pelos camponeses.
  2. A um jovem, que lhe pediu para definir o gênero literário que domina, o baiano de Sátiro Dias disse que é uma história que conta outras histórias”.
  3. Jornalista, publicitário e membro da ABL, o autor confessou que, após 12 anos sem publicar, foi menos sintético do que nas suas obras anteriores.

PERFIS LUMINOSOS NA CRÔNICA DE ANTONIO TORRES

Por Carlos Ribeiro, no Seminário Narrativas e viagens do sertão ao mundo e reproduzido no Facebook.

Texto apresentado no Seminário Narrativas e viagens do sertão ao mundo: 80 anos de Antônio Torres. 11 de setembro de 2020.

“O primeiro foi aquele em que sua mãe lhe mostrou um ABC, passando em seguida a dizer os nomes das letras. Jamais esqueceria o encantamento que o desenho delas lhe provocaram logo à primeira vista. Arrumadas em filas no abecedário, formavam um conjunto enigmático. Cada uma, porém, tinha sua própria identidade e personalidade, como as coisas e as pessoas. E eram elas que davam registro a tudo o que há na Terra e no céu, compreenderia depois quando aquela senhora chamada Durvalice começou a juntá-las em sílabas – bê-a-bá, bê-e-bé… – e, nos dias seguintes, em vocábulos que passariam ao reino das frases. Ivo-viu-a-uva…

Aquele menino nunca tinha visto uma uva. Agora sabia que se tratava de uma fruta. Mas como é, mãe? Ela também não a conhecia. Seu mundo era o das jabuticabas, murtas, graviolas, muricis, cajás, umbus”.


Os parágrafos iniciais da crônica “A mãe, as professoras e os dias de um escritor”, do livro Sobre pessoas (Editora Leitura, 2007), do escritor Antonio Torres, nos traz algumas pistas para a fruição da sua prosa: não exatamente aquela já muito estudada das suas grandes narrativas ficcionais, mas de um outro lado menos conhecido do autor de Essa terra, O cachorro e o lobo e Um táxi para Viena d´Áustria: o das suas crônicas de memórias, nas quais, com um estilo leve e fluido, captura o leitor desde as primeiras linhas para deliciosos périplos por tempos passados, ruas, esquinas, praças, cidades, países e momentos luminosos retidos e transfigurados pela memória. Aqui, o elemento determinante é a caracterização sutil de pessoas cujos traços essenciais são colocados, à frente do leitor, em poucas frases e períodos, no esplendor da sua graça ou, menos frequentemente, na plenitude da sua infâmia.


Não menos surpreendente é a capacidade que o ilustre homenageado tem de juntar experiências, momentos e flagrantes de uma diversificada galeria de figuras humanas ao espaço/tempo em que elas vivem ou viveram, transitam ou transitaram e à própria figura do autor/narrador, ao ponto em que grande parte das histórias por ele narradas incorporam-se à sua própria história. Uma característica marcante da obra citada, sobre o qual diz, com muito acerto, nas orelhas do livro, o crítico e ensaísta André Seffrin:

“Antônio Torres, mestre do romance, parece evocar ainda uma vez o título famoso de Rodrigo Octávio, Minhas memórias dos outros. Porque, mais que uma reunião de crônicas, Sobre pessoas é um livro de memórias, reminiscências e homenagens. Como não raro acontece em publicações dessa natureza, há aqui uma ampla reflexão sobre os seres, as cidades e os dias idos e vividos”.


Sim, porque, ao conhecermos momentos luminosos de personagens dos mais interessantes da história, da literatura, das artes, bem como dos anônimos, da “gente sem nome nas ruas” e outros que simplesmente andam por aí, conhecemos sempre um pouco mais da história do próprio Torres, da sua rica e prolífica trajetória de vida, desde a infância e adolescência no mítico Junco, do agreste baiano, às suas andanças pelo Brasil e pelo mundo afora. Mas, curiosamente, de uma forma especialíssima na qual sua presença, em vez de se impor sobre as dos seus personagens, realça e ajusta neles o foco da narrativa, não deixando dúvidas de que são elas, sim, as pessoas sobre as quais discorre e dá o seu testemunho.


Há ainda outras características dessa prosa, que nos captura sem muitas vezes nos darmos conta. Por exemplo, a habilidade encantatória da linguagem ágil, inventiva, constituída na força da oralidade, própria de um narrador que parece ter sempre uma carta na manga para usá-la nos momentos decisivos. Enfim, expressões supimpas, bonitas como um corno, utilizadas, não poucas vezes, na abertura e encerramento de cada crônica ou capítulo; numas envolvendo o leitor, noutras deixando-lhe o eco de uma experiência singular. Assim, as experiências singulares de todos aqueles personagens tornam-se a experiência do leitor que dela sai enriquecido.


Vejamos alguns exemplos:

“Gênio ou doido? Agora que o transformaram em personagem mitológico, recordo que o vi de perto (e por duas vezes) e ele se comportou como uma pessoa normal. Foi em São Paulo, no lançamento lá de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Ano: 1964” (“Dois encontros com Glauber”, p. 12, dedicado a Florisvaldo Mattos, o poeta da Bahia)”.

“Em priscas eras, vivia no Rio de Janeiro um povo festeiro, mas também chegado a uma guerra. Acabou sendo varrido do mapa nas batalhas de 1565 e 1567, que resultaram na fundação da cidade e na sua conquista definitiva pelos portugueses, quando não sobrou uma única cabeça de índio para contar a história”. (“O carnaval dos canibais”, p. 58, Para Eduardo Machado).

“Ele não foi um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones. Pertencia a outra geração. Adorava mesmo era Duke Ellington, Louis Armstrong, os velhos cantores de blues. E podia ficar horas a fio falando de Thelonius Monk. Isso desde que ouviu no rádio pela primeira vez, uma estranha música ainda desconhecida nas suas bandas”. (“Blues para Cortázar” E para o saxofonista Rodolfo Novaes, p. 76).

“Se criar e coçar é só começar, então vamos lá. Hoje é sábado e amanhã é domingo e a vida vem em ondas como o mar e Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar”. (“Vinícius e o seu poema preferido”, p. 78).

“Meninos, consegui realizar uma proeza certamente almejada por muitos de vocês: entrevistar Rubem Fonseca. Foi uma entrevista relâmpago, é verdade. E o pior, digo, o melhor, é que demos muitas risadas e acabei esquecendo o que era mesmo o que eu queria lhe perguntar. Coisas assim: ‘Sabeis vós que sois o escritor que mais influência exerce sobre os jovens que estão se iniciando na literatura? Isso vos causa algum incômodo ou é um presente para os vossos oitenta anos? Tendes algum conselho para a rapeize? Como vedes o mundo, depois da queda do muro de Berlim, o que aliás presenciastes, in loco?’Não dá para ser pomposo, ou grave, ou pedante com o Rubem Nosso Bem, como o chamamos aqui em casa. Ele não faz o gênero sabichão, sempre a tirar da cartola uma declaração prêt-a-porter, que vá influir nos destinos da humanidade. Quem quiser saber qual é sua visão desse nosso tempo que leia os seus livros e pronto.” (“Rubem Fonseca aos 80”, p. 83).

“Era uma noite sem luar, envolta no melhor nevoeiro paulistano, sem a menor possibilidade de estrelas. A única coisa a fazer era ficar em casa, ouvindo os uivos lancinantes de um trompete.

Miles Davis na vitrola, sem parar. Como em outras noites, outras circunstâncias, outras cidades – Lisboa ou Paris, Porto ou Milão, Bruxelas ou Rio de Janeiro, Londres ou Salvador da Bahia. O tempo todo a mesma música: My funny Valentine. Sim, uma velha e terna e melosa canção americana. Isso, claro, antes de Miles Davis tocá-la, reinventá-la, como se invertesse a letra original, “não, você não me faz sorrir”, como se revolvesse suas dores mais fundas, para enlouquecer o mundo – para fazer a noite doer.

Pesada noite do pesadíssimo ano de 1970. Imaginou aquela música num filme, abafando os gritos dos torturados. São Paulo também pesava. Foi aí que ele disse:

– Preste atenção no tempo que ele segura a nota. Que fôlego! É impressionante.E ela:

– Parece um cão uivando para a Lua. Ele:

– Parece um boi berrando para o sol.”


Há, de fato, uma diversidade de recursos narrativos presentes nestes textos nos quais se sobressai ora o jornalista, ora o memorialista, ora o ficcionista, podendo-se mesmo identificar uma certa matreirice na forma como articula a figura do autor/narrador, não poucas vezes constituído na terceira pessoa, como vimos nos seguintes trechos:

“Lisboa, 25 de junho de 1965. Ontem desembarcou aqui um brasileiro sem passagem de volta. E com apenas 600 dólares no bolso. Ele tem 24 anos, nasceu na Bahia, mas veio de São Paulo. Viera na classe turística de um navio italiano bonitão, o Augustus – que fazia a linha Buenos Aires-Gênova – no qual embarcara no porto de Santos, ao anoitecer de um dia cinzento. Chegou a Lisboa nesse domingo, num fim de tarde ensolarado, oito dias depois”. (“Relações transatlânticas”, p 38. Em homenagem a Alexandre O´Neill, um poeta bestial, pá, neto de irlandês e parente de Santo Antônio.”)

Ou, ainda, na abertura de um outro livro excepcional, bem definido pelo poeta, ensaísta e membro da Academia Brasileira de Letras, Antonio Carlos Secchin, como uma pequena obra-prima, O centro das nossas desatenções (Record, 2015), misto de ensaio histórico e reportagem literária, ou como mais o queiram chamar.

“Comecemos pelo Aeroporto Santos Dumont, onde um dia um rapaz de 20 anos chegou, olhou a cidade de longe e foi embora. Eu me lembro: era uma bela tarde de janeiro, o mês do Rio. Céu de brigadeiro. O esplêndido azul de Machado de Assis. O azul demais de Vinícius de Moraes. Ano: 1961”.


Caminhando já para a conclusão desta leitura, quero destacar mais algumas questões suscitadas por esses livros, a começar por um dado interessante para quem conhece o autor ou já o ouviu falar, com sua habitual eloquência, em suas inúmeras palestras, conferências e entrevistas: a perfeita correspondência entre o ritmo de sua escrita e a cadência e o som de sua voz.

Lemos suas crônicas como se o estivéssemos ouvindo falar.

Nele se aplica muito bem a definição da crônica como uma “conversa ao pé do ouvido”, tornando-nos de certa forma íntimos de sua experiência existencial, da expressão dos seus valores, da fruição de seus gostos literários e musicais, de suas perdas e ganhos. Aqui o autor, em afinada relação com o narrador, nos acolhe sem reservas tornando-nos caminhantes de uma mesma estrada, de uma mesma trajetória onde nada se perde.

Saltando de um século para o outro, contextualizando seus personagens e situando-os entre tantos outros do seu tempo, Antonio Torres oferece ao leitor, em textos curtos e ágeis, uma instigante rede de relações, dramas, amores, paixões, intrigas e imensos talentos, num painel fragmentário da nossa história – política, literária, afetiva – com olhar arguto e, devemos dizer, quase sempre profundamente compreensivo.


A generosidade é uma marca significativa desse livro. Nele, o autor salienta o lado mais luminoso de seus personagens, mas não hesita em expor, aqui e ali, explicitamente ou nas entrelinhas, algumas de suas idiossincrasias – ou, mesmo, vilanias. É o caso do festejado Jorge Luís Borges, cujo reacionarismo e abjeto preconceito é exposto no texto O lado infame do genial Borges. Trata-se, no entanto, de uma exceção. Na maior parte do livro, o autor prefere mesmo traçar perfis brilhantes e generosos de escritores e artistas como Fernando Sabino, João Saldanha, Murilo Rubião, Dalton Trevisan, João Antônio, Rubem Braga, Tônia Carrero, Juan Rulfo, Othon Bastos, Márcio Souza, Ignácio de Loyola Brandão, Miles Davis e Tom Jobim. A partir, geralmente, de encontros fugazes, e, portanto, sem qualquer pretensão de retratar, de forma definitiva, esses autores.

Os destaques vão para quatro textos memoráveis: um já antológico, no qual rememora dois encontros com Glauber Rocha, em 1964, quando ambos estavam ainda na casa dos vinte anos (acrescido de um resumo da entrevista que fez, então, com o cineasta para uma “revisteca” paulista chamada Finesse, no dia da estreia de Deus e o Diabo na Terra do Sol, em São Paulo); o que retrata o encontro do autor com o poeta português Alexandre O’Neill, em Lisboa (acrescido de alguns poemas do autor, morto em 1986, aos 62 anos); o Roteiro sentimental de um leitor de Jorge Amado, no qual retrata a lendária simplicidade e generosidade do romancista baiano com os escritores mais novos; e um brilhante perfil de Monteiro Lobato (Idéias de Jeca Tatu).Primorosas, também, as escassas linhas sobre a infância do autor em Quando o Natal não tinha Papai Noel – texto emblemático do tempo mítico que alimenta a ficção de Torres e que tem no não-pertencimento a chave para a sua decifração. Eis, como diz Seffrin, citando um poeta, o “baú de espantos” deste autor que não cessa de nos surpreender.

Querida Cidade por Flavio Kenna

Acabo de ler a obra do meu estimado amigo Antônio Torres. O livro é como uma canção, que provoca sentimentos, desperta fragmentos nostálgicos e aguça desejos. Cada palavra uma nota, cada frase uma batida, cada página uma melodia, cada capítulo o complemento do anterior, formando um todo harmonioso. ‘Querida cidade’, uma obra que deve ser ouvida, uma canção que deve ser lida, porque as duas se difundem em uma viagem literária magnífica. Parabéns
Mestre Antônio Torres.

Flavio Kenna no Facebook

Querida Cidade indicada por Aleilton Fonseca no Correio da Bahia

Aleilton Fonseca no Correio da Bahia em 02/01/2022: Um guia de boas leituras para 2022

“Querida Cidade (Antônio Torres, Record, 2021) – Narrativa fluida e dinâmica, a trama evolui através de fluxos de consciência do narrador, que faz um balanço de sua trajetória, numa prosa entrecortada por reflexões. O protagonista é um típico migrante que deixa a cidade de origem e vai em busca de uma vida melhor na capital.”

Aleilton Fonseca é doutor em Literatura Brasileira (USP). Professor na UEFS. Foi finalista ao Jabuti 2021 na categoria poesia, com o livro A Terra em Pandemia.

Querida Cidade: Evocação de Anjos e Exorcismo de Demônios, por Rúbio Rocha

“Dono de uma carreira prolífica, o escritor Antônio Torres publicou agora em 2021 o seu mais novo romance: Querida Cidade, obra que transita por vários campos do conhecimento, tais como história, psicologia, psicanálise e sociologia, assim como pelos campos artísticos, o musical e o literário.”

Rúbio Rocha

Leia o restante da resenha abaixo ou, para ver maior em uma nova aba clique – Querida Cidade: Evocação de Anjos e Exorcismo de Demônios, por Rúbio Rocha

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Gerson Pereira Valle no Facebook sobre Querida Cidade

Publicado na revista InComunidade em jan/2022.

ESCRITOR é o profissional que assobia palavras, contando histórias como melodias. As palavras do escritor formam conceitos referentes, de agrado ou desagrado, com ou sem significado lógico, mas marcantes como enunciados. É claro que os escritores possuem também outras características, mas se nos ativermos a somente esta, e que é bem peculiar à espécie, já por aí se evidencia o fato de ANTÔNIO TORRES ser um grande, imenso escritor. Seu mais recente romance, “Querida cidade” (Editora Record, 2021), trabalhado por muitos anos com o saber trazido por uma experiência rara no ramo, traz-nos, a nós seus fiéis leitores, assobios reconhecíveis de músicas palpáveis por sua apurada sensibilidade. Sim, literalmente as músicas são citadas por suas letras. E elas vão direto a um tempo e popularidade que as fizeram moldar caracteres de brasileiros. Isto à época em que o rádio era ouvido por toda a parte, e a estação da Rádio Nacional transmitia conceitos de vida nas músicas que integravam o quotidiano de todos. Hoje em dia é preciso historiar tal realidade, pois a relação da música pela televisão, que substituiu o rádio nos costumes, não é exatamente igual. E, sobretudo, talvez, pelos caminhos da poesia das canções ter tido efetivamente uma era áurea (que o filme de Woody Allen taxou de “a era do rádio”) tanto para o autor aqui tratado como para este seu resenhista. Versos extraídos de tais canções equiparavam-se, muitas vezes, a anexins (como se dizia ao tempo de Arthur Azevedo), ditados populares, provérbios, máximas, adágios… E no romance em causa as citações de todas essas espécies, ao lado até de frases ou versos saídos de livros conhecidos, vão compondo a narrativa.

Esta a letra, mas qual a melodia? Outra característica do ESCRITOR é a de usar sua experiência própria para projetar suas “invenções”, de modo a possuírem a garantida verossimilhança pelo reflexo de seu conhecimento. Mesmo ao final de vida, um Tolstói, por exemplo, transpõe o seu péssimo comportamento de jovem ao ter uma filha com uma empregada submissa, no romance “Ressurreição”, e, na busca da autenticidade e de acerto ante a existência, acusa o egoísmo da aristocracia russa a que pertencia. A ambiência trazida nas memórias subjetivas (que são a fonte primária de todo escritor) de Antônio Torres são bem menos agressivas, correspondendo, aliás, a seu temperamento cortês sabiamente pacífico, como seus conhecidos podem observar. A ambientação moldada em memórias indiretas se projetou mais nitidamente na trilogia composta por “Essa terra”, “O cachorro e o lobo” e “Pelo fundo da agulha”. Eu ouso observar que “Querida cidade”, de certa maneira, retorna à ambiência e tipos similares aos da trilogia, como se a experiência da idade de quem já provou de outros meios de manifestação de suas verdades, compusesse então um painel de novo estilo, no amadurecimento da forma e visão mais distanciada.

O personagem central já é um “ele” mais genérico. Na trilogia era o “Totonhim”, que é apelido de Antônio, seu nome mesmo. Aqui não tem mais nome. O personagem amplia-se num quase anonimato de uma pessoa do povo, mesmo que com personalidade que o distinga para a contação da história, como todos temos em nossas existências. Diga-se que a “contação de história” integra uma diretiva própria do contexto em que se integra a Literatura de Torres. Genericamente, poder-se-ia classificá-lo como Regionalismo nordestino inserido no Modernismo e Pós-Modernismo brasileiros. No que pese o amazonense Milton Hatoum, ao referir-se a Graciliano Ramos, lembrar da irrelevância do local da narrativa, mas da importância sim de sua linguagem, há algumas constantes no chamado regionalismo nordestino, e uma delas é a “contação de história”. Poderia lembrar, tendo José Américo de Almeida de início, de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Ariano Suassuna, e baianamente a linha de Jorge Amado, Ubaldo Ribeiro, que parece encerrar-se em Antônio Torres. Talvez até a “contação” tenha atingido seu clímax de forma direta, e mesmo linear, em Zé Lins e Jorge Amado (que ensaiou narrativas menos tradicionais nos “Velhos marinheiros”, sobretudo no notável “A morte e a morte de Quincas Berro Dágua”). Mas, nunca desaparece. Ecos da narrativa cinematográfica, sobretudo do “flash back”, com planos cruzados (que marcaram o “Contraponto” de Aldous Huxley ou o “Sursis” de Jean Paul Sartre) tornaram-se imprescindíveis mesmo nos mais arraigados “romancistas contadores”, da tradição popular de Sherazade. Aliás, de qualquer vínculo popular, e o romance nordestino segue muito esta linha. Em Antônio Torres, um simultâneo internacionalismo aparentemente dissolve a “contação” tradicional nordestina. No entanto, o interesse narrativo não esconde de todo certas origens, o que lhe dá a personalidade que todo leitor procura no enriquecimento dado pela Literatura.

“Querida cidade” parece-me não só um epílogo da Trilogia de Torres, mas mais abrangentemente de toda a chamada Literatura Regionalista nordestina. Uma quebra sequencial da narrativa tradicional, acrescida de uma nova composição multiplicadora de enfoques novelísticos. Dá a impressão das histórias serem bonecas que saem de dentro de outras bonecas, como na matriosca russa. Um truque do ESCRITOR que faz com que nunca se encontre num ponto definitivo, abrindo sempre novo espaço para outro desenvolvimento, espichando a vida além das expectativas usuais. Como espero que venha a ocorrer na bibliografia de Antônio Torres. Que ele nos possa brindar ainda com mais algumas de suas mágicas literárias em novas narrativas para o nosso deleite e sobrevida da Literatura Brasileira, agora nesse invólucro universal.

Gerson Pereira Valle no Facebook sobre Querida Cidade

Querida Cidade na TV Senado em 22/10/2021

“Quinze anos depois de publicar um romance, Antônio Torres volta ao gênero com Querida Cidade. O livro marca também a volta a um dos temas mais recorrentes em sua larga obra, o migrante perplexo e deslocado diante do mundo. A partir de um sonho, onde o homem se vê no topo de um edifício ilhado por uma enchente, Torres retoma a esperança de um país perfeito que embalou a década de 1950 e busca encontrar os desesperos que nos conduziu até o presente.”