PERFIS LUMINOSOS NA CRÔNICA DE ANTONIO TORRES

Por Carlos Ribeiro, no Seminário Narrativas e viagens do sertão ao mundo e reproduzido no Facebook.

Texto apresentado no Seminário Narrativas e viagens do sertão ao mundo: 80 anos de Antônio Torres. 11 de setembro de 2020.

“O primeiro foi aquele em que sua mãe lhe mostrou um ABC, passando em seguida a dizer os nomes das letras. Jamais esqueceria o encantamento que o desenho delas lhe provocaram logo à primeira vista. Arrumadas em filas no abecedário, formavam um conjunto enigmático. Cada uma, porém, tinha sua própria identidade e personalidade, como as coisas e as pessoas. E eram elas que davam registro a tudo o que há na Terra e no céu, compreenderia depois quando aquela senhora chamada Durvalice começou a juntá-las em sílabas – bê-a-bá, bê-e-bé… – e, nos dias seguintes, em vocábulos que passariam ao reino das frases. Ivo-viu-a-uva…

Aquele menino nunca tinha visto uma uva. Agora sabia que se tratava de uma fruta. Mas como é, mãe? Ela também não a conhecia. Seu mundo era o das jabuticabas, murtas, graviolas, muricis, cajás, umbus”.


Os parágrafos iniciais da crônica “A mãe, as professoras e os dias de um escritor”, do livro Sobre pessoas (Editora Leitura, 2007), do escritor Antonio Torres, nos traz algumas pistas para a fruição da sua prosa: não exatamente aquela já muito estudada das suas grandes narrativas ficcionais, mas de um outro lado menos conhecido do autor de Essa terra, O cachorro e o lobo e Um táxi para Viena d´Áustria: o das suas crônicas de memórias, nas quais, com um estilo leve e fluido, captura o leitor desde as primeiras linhas para deliciosos périplos por tempos passados, ruas, esquinas, praças, cidades, países e momentos luminosos retidos e transfigurados pela memória. Aqui, o elemento determinante é a caracterização sutil de pessoas cujos traços essenciais são colocados, à frente do leitor, em poucas frases e períodos, no esplendor da sua graça ou, menos frequentemente, na plenitude da sua infâmia.


Não menos surpreendente é a capacidade que o ilustre homenageado tem de juntar experiências, momentos e flagrantes de uma diversificada galeria de figuras humanas ao espaço/tempo em que elas vivem ou viveram, transitam ou transitaram e à própria figura do autor/narrador, ao ponto em que grande parte das histórias por ele narradas incorporam-se à sua própria história. Uma característica marcante da obra citada, sobre o qual diz, com muito acerto, nas orelhas do livro, o crítico e ensaísta André Seffrin:

“Antônio Torres, mestre do romance, parece evocar ainda uma vez o título famoso de Rodrigo Octávio, Minhas memórias dos outros. Porque, mais que uma reunião de crônicas, Sobre pessoas é um livro de memórias, reminiscências e homenagens. Como não raro acontece em publicações dessa natureza, há aqui uma ampla reflexão sobre os seres, as cidades e os dias idos e vividos”.


Sim, porque, ao conhecermos momentos luminosos de personagens dos mais interessantes da história, da literatura, das artes, bem como dos anônimos, da “gente sem nome nas ruas” e outros que simplesmente andam por aí, conhecemos sempre um pouco mais da história do próprio Torres, da sua rica e prolífica trajetória de vida, desde a infância e adolescência no mítico Junco, do agreste baiano, às suas andanças pelo Brasil e pelo mundo afora. Mas, curiosamente, de uma forma especialíssima na qual sua presença, em vez de se impor sobre as dos seus personagens, realça e ajusta neles o foco da narrativa, não deixando dúvidas de que são elas, sim, as pessoas sobre as quais discorre e dá o seu testemunho.


Há ainda outras características dessa prosa, que nos captura sem muitas vezes nos darmos conta. Por exemplo, a habilidade encantatória da linguagem ágil, inventiva, constituída na força da oralidade, própria de um narrador que parece ter sempre uma carta na manga para usá-la nos momentos decisivos. Enfim, expressões supimpas, bonitas como um corno, utilizadas, não poucas vezes, na abertura e encerramento de cada crônica ou capítulo; numas envolvendo o leitor, noutras deixando-lhe o eco de uma experiência singular. Assim, as experiências singulares de todos aqueles personagens tornam-se a experiência do leitor que dela sai enriquecido.


Vejamos alguns exemplos:

“Gênio ou doido? Agora que o transformaram em personagem mitológico, recordo que o vi de perto (e por duas vezes) e ele se comportou como uma pessoa normal. Foi em São Paulo, no lançamento lá de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Ano: 1964” (“Dois encontros com Glauber”, p. 12, dedicado a Florisvaldo Mattos, o poeta da Bahia)”.

“Em priscas eras, vivia no Rio de Janeiro um povo festeiro, mas também chegado a uma guerra. Acabou sendo varrido do mapa nas batalhas de 1565 e 1567, que resultaram na fundação da cidade e na sua conquista definitiva pelos portugueses, quando não sobrou uma única cabeça de índio para contar a história”. (“O carnaval dos canibais”, p. 58, Para Eduardo Machado).

“Ele não foi um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones. Pertencia a outra geração. Adorava mesmo era Duke Ellington, Louis Armstrong, os velhos cantores de blues. E podia ficar horas a fio falando de Thelonius Monk. Isso desde que ouviu no rádio pela primeira vez, uma estranha música ainda desconhecida nas suas bandas”. (“Blues para Cortázar” E para o saxofonista Rodolfo Novaes, p. 76).

“Se criar e coçar é só começar, então vamos lá. Hoje é sábado e amanhã é domingo e a vida vem em ondas como o mar e Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar”. (“Vinícius e o seu poema preferido”, p. 78).

“Meninos, consegui realizar uma proeza certamente almejada por muitos de vocês: entrevistar Rubem Fonseca. Foi uma entrevista relâmpago, é verdade. E o pior, digo, o melhor, é que demos muitas risadas e acabei esquecendo o que era mesmo o que eu queria lhe perguntar. Coisas assim: ‘Sabeis vós que sois o escritor que mais influência exerce sobre os jovens que estão se iniciando na literatura? Isso vos causa algum incômodo ou é um presente para os vossos oitenta anos? Tendes algum conselho para a rapeize? Como vedes o mundo, depois da queda do muro de Berlim, o que aliás presenciastes, in loco?’Não dá para ser pomposo, ou grave, ou pedante com o Rubem Nosso Bem, como o chamamos aqui em casa. Ele não faz o gênero sabichão, sempre a tirar da cartola uma declaração prêt-a-porter, que vá influir nos destinos da humanidade. Quem quiser saber qual é sua visão desse nosso tempo que leia os seus livros e pronto.” (“Rubem Fonseca aos 80”, p. 83).

“Era uma noite sem luar, envolta no melhor nevoeiro paulistano, sem a menor possibilidade de estrelas. A única coisa a fazer era ficar em casa, ouvindo os uivos lancinantes de um trompete.

Miles Davis na vitrola, sem parar. Como em outras noites, outras circunstâncias, outras cidades – Lisboa ou Paris, Porto ou Milão, Bruxelas ou Rio de Janeiro, Londres ou Salvador da Bahia. O tempo todo a mesma música: My funny Valentine. Sim, uma velha e terna e melosa canção americana. Isso, claro, antes de Miles Davis tocá-la, reinventá-la, como se invertesse a letra original, “não, você não me faz sorrir”, como se revolvesse suas dores mais fundas, para enlouquecer o mundo – para fazer a noite doer.

Pesada noite do pesadíssimo ano de 1970. Imaginou aquela música num filme, abafando os gritos dos torturados. São Paulo também pesava. Foi aí que ele disse:

– Preste atenção no tempo que ele segura a nota. Que fôlego! É impressionante.E ela:

– Parece um cão uivando para a Lua. Ele:

– Parece um boi berrando para o sol.”


Há, de fato, uma diversidade de recursos narrativos presentes nestes textos nos quais se sobressai ora o jornalista, ora o memorialista, ora o ficcionista, podendo-se mesmo identificar uma certa matreirice na forma como articula a figura do autor/narrador, não poucas vezes constituído na terceira pessoa, como vimos nos seguintes trechos:

“Lisboa, 25 de junho de 1965. Ontem desembarcou aqui um brasileiro sem passagem de volta. E com apenas 600 dólares no bolso. Ele tem 24 anos, nasceu na Bahia, mas veio de São Paulo. Viera na classe turística de um navio italiano bonitão, o Augustus – que fazia a linha Buenos Aires-Gênova – no qual embarcara no porto de Santos, ao anoitecer de um dia cinzento. Chegou a Lisboa nesse domingo, num fim de tarde ensolarado, oito dias depois”. (“Relações transatlânticas”, p 38. Em homenagem a Alexandre O´Neill, um poeta bestial, pá, neto de irlandês e parente de Santo Antônio.”)

Ou, ainda, na abertura de um outro livro excepcional, bem definido pelo poeta, ensaísta e membro da Academia Brasileira de Letras, Antonio Carlos Secchin, como uma pequena obra-prima, O centro das nossas desatenções (Record, 2015), misto de ensaio histórico e reportagem literária, ou como mais o queiram chamar.

“Comecemos pelo Aeroporto Santos Dumont, onde um dia um rapaz de 20 anos chegou, olhou a cidade de longe e foi embora. Eu me lembro: era uma bela tarde de janeiro, o mês do Rio. Céu de brigadeiro. O esplêndido azul de Machado de Assis. O azul demais de Vinícius de Moraes. Ano: 1961”.


Caminhando já para a conclusão desta leitura, quero destacar mais algumas questões suscitadas por esses livros, a começar por um dado interessante para quem conhece o autor ou já o ouviu falar, com sua habitual eloquência, em suas inúmeras palestras, conferências e entrevistas: a perfeita correspondência entre o ritmo de sua escrita e a cadência e o som de sua voz.

Lemos suas crônicas como se o estivéssemos ouvindo falar.

Nele se aplica muito bem a definição da crônica como uma “conversa ao pé do ouvido”, tornando-nos de certa forma íntimos de sua experiência existencial, da expressão dos seus valores, da fruição de seus gostos literários e musicais, de suas perdas e ganhos. Aqui o autor, em afinada relação com o narrador, nos acolhe sem reservas tornando-nos caminhantes de uma mesma estrada, de uma mesma trajetória onde nada se perde.

Saltando de um século para o outro, contextualizando seus personagens e situando-os entre tantos outros do seu tempo, Antonio Torres oferece ao leitor, em textos curtos e ágeis, uma instigante rede de relações, dramas, amores, paixões, intrigas e imensos talentos, num painel fragmentário da nossa história – política, literária, afetiva – com olhar arguto e, devemos dizer, quase sempre profundamente compreensivo.


A generosidade é uma marca significativa desse livro. Nele, o autor salienta o lado mais luminoso de seus personagens, mas não hesita em expor, aqui e ali, explicitamente ou nas entrelinhas, algumas de suas idiossincrasias – ou, mesmo, vilanias. É o caso do festejado Jorge Luís Borges, cujo reacionarismo e abjeto preconceito é exposto no texto O lado infame do genial Borges. Trata-se, no entanto, de uma exceção. Na maior parte do livro, o autor prefere mesmo traçar perfis brilhantes e generosos de escritores e artistas como Fernando Sabino, João Saldanha, Murilo Rubião, Dalton Trevisan, João Antônio, Rubem Braga, Tônia Carrero, Juan Rulfo, Othon Bastos, Márcio Souza, Ignácio de Loyola Brandão, Miles Davis e Tom Jobim. A partir, geralmente, de encontros fugazes, e, portanto, sem qualquer pretensão de retratar, de forma definitiva, esses autores.

Os destaques vão para quatro textos memoráveis: um já antológico, no qual rememora dois encontros com Glauber Rocha, em 1964, quando ambos estavam ainda na casa dos vinte anos (acrescido de um resumo da entrevista que fez, então, com o cineasta para uma “revisteca” paulista chamada Finesse, no dia da estreia de Deus e o Diabo na Terra do Sol, em São Paulo); o que retrata o encontro do autor com o poeta português Alexandre O’Neill, em Lisboa (acrescido de alguns poemas do autor, morto em 1986, aos 62 anos); o Roteiro sentimental de um leitor de Jorge Amado, no qual retrata a lendária simplicidade e generosidade do romancista baiano com os escritores mais novos; e um brilhante perfil de Monteiro Lobato (Idéias de Jeca Tatu).Primorosas, também, as escassas linhas sobre a infância do autor em Quando o Natal não tinha Papai Noel – texto emblemático do tempo mítico que alimenta a ficção de Torres e que tem no não-pertencimento a chave para a sua decifração. Eis, como diz Seffrin, citando um poeta, o “baú de espantos” deste autor que não cessa de nos surpreender.