Entrevista a Brigitte Thiérion

Rio de Janeiro, 8 de setembro de 2004

Por Brigitte THIERION
(Estudante de Letras na Universidade de Rennes, França)

Para a complementação de um estudo comparativo dos romances Meu Querido Canibal, de Antônio Torres, e Rouge Brésil, de Jean-Christophe Rufin, sob orientação da professora Rita Godet.

1) – A minha primeira pergunta diz respeito ao seu empenho em contradizer todos os sinais visíveis da História oficial. Será em nome de uma “contra-cultura”? Estaria nisso algo representativo de sua geração?

Antônio TORRES – Vamos por partes. Primeiro: os sinais visíveis da História sempre foram dados de acordo com a ótica dos vencedores, sabemos todos. Também no caso das guerras entre os portugueses e os indígenas brasileiros isso fica bastante claro. Segundo: os índios não dominavam a escrita. Logo, não escreveram, eles mesmos, a sua própria História. Tudo o que sabemos deles é através dos relatos dos brancos, ou seja, dos vencedores. Terceiro: o grande chefe Cunhambebe, o meu querido canibal, teve toda a sua história resumida em verbetes de poucas linhas e notas de pé de página.  Os historiadores em geral o trataram “como a expressão mais repelente do selvagem,” ou como o canibal “que se orgulhava de ter nas veias o sangue de mais de 5 mil inimigos, a maioria portugueses.” Ler coisas assim, e perceber, ao longo das minhas pesquisas, que ele na verdade foi o guerreiro que levou o seu povo a preferir morrer de pé, lutando, a se deixar escravizar pelos conquistadores,  me instigou bastante a transformá-lo num personagem emblemático. E nisso, radicalizei. Quer dizer: como a História oficial se encarregou de louvar os feitos dos vencedores nestas águas e florestas de sonho, som e fúria, avancei na contra-mão, numa viagem de volta ao passado, para tentar entendê-lo pelo ponto de vista dos vencidos. Essa minha tentativa de desoficialização ou revisão da História certamente traz no seu bojo os ecos da “contra-cultura,” que embasou os movimentos de contestação ao pensamento dominante, aí pelos anos de 1960, e que, sem dúvida, foi significativa para a minha geração. Em princípio, porém, o que me moveu na escritura do Meu Querido Canibal foi a convicção de ter nas mãos um grande personagem  ignorado pela História oficial. Além disso, esse personagem, o morubixaba Cunhambebe, foi o protagonista, ao lado de Aimberê (o fundador da Confederação dos Tamoios, cujo comando entregou a Cunhambebe), e outros grandes caciques, das epopéicas lutas de resistência dos “mais velhos do lugar” ao colonizador escravagista recém-chegado. Mergulhei nas pesquisas dessa história mítica e trágica cheio de afeição por esse velho povo e de indignação pela forma como ele foi exterminado, inapelavelmente. E o fiz com vontade de dar o meu grito de guerra para os historiadores: “PERÓS!”

2) – Você retoma o canibal como elemento constitutivo da identidade brasileira. Maria Cândida Ferreira de Almeida, num estudo chamado Tornar-se Outro: o Topos Canibal na Literatura Brasileira, salienta o paradoxo do imaginário brasileiro que retoma uma “auto-identificação que traz a marca da barbárie que toda nação ocidental deseja desvincular de seu povo.” Que pensa dessa afirmação? Como se define em relação ao movimento modernista?

A.T.: – Bela afirmação, essa de Maria Cândida Ferreira de Almeida. Tanto que vou procurar o seu estudo, cuja leitura em muito me enriquecerá, tenho certeza disso. Mas pergunto: quem foi mais bárbaro? O selvagem, com os seus rituais antropofágicos, ou o civilizado europeu que o exterminou, em nome de Deus e de seus interesses?  E não vejo como desvincular o canibalismo do nosso imaginário. O Modernismo dos anos de 1920 o pôs em movimento, com um sentido simbólico, a partir da famosa boutade de Oswald de Andrade – “Tupi or not tupi -,” que soou como um grito de independência dos modelos literários importados da Europa. Nos anos de 1930 surge no Brasil – e na esteira do Modernismo – um poderoso ciclo das letras que inclui no seu ideário ético e estético a libertação da escrita da norma lusitana. É então que uma linguagem brasileira, com toda a sua expressividade, de extração popular, se impõe. Estou me referindo aqui à geração de Rachel  de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rego que, aliás, teve como abridor de caminhos o José Américo de Almeida de A Bagaceira, de 1928. Em tempos relativamente recentes, Glauber Rocha iria canibalizar o cinema de Akira Kurosawa, Roberto Rossellini, o faroeste de John Ford, possivelmente também o Jean-Luc Godard; José Celso Martinez Correia faria o mesmo com o teatro europeu; Tom Jobim canibalizou o jazz e por aí vai. E como fui um garoto que amava William Faulkner e Scott Fitzgerald, vez por outra percebo que os devoro, em algumas páginas da minha modesta lavra.

3) – O peso da História parece insuperável no seu romance. O caos do presente, com a sua força opressiva, impede qualquer projeção do futuro. Em que medida o seu trabalho pode ajudar nesta construção?

A.T: – Se houve um ganho nas comemorações dos 500 anos do descobrimento, ou achamento, do Brasil, em 2000, foi esse: o despertar de um interesse maior pela nossa História. Como se de repente nós, brasileiros, parássemos para nos indagar sobre quem somos e de onde viemos. Uma outra questão fica parada no ar: para aonde iremos? E esta ainda parece irrespondível. Nosso sentimento é o de que vivemos uma realidade de violência ameaçada pelo caos. A terra continua boa e, nela, em se plantando dará tudo, tal qual preconizou Pero Vaz de Caminha, o escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral, o descobridor deste imenso país. O problema é que, mais de 500 anos depois do achamento dos portugueses, o Brasil ainda não se libertou da cobiça dos aventureiros que marcaram a sua História e nos legaram uma mentalidade predatória. Some-se a isso a voracidade antropofágica do capitalismo global, do qual o mundo se tornou refém, e temos aí um quadro inquietante, a impedir, como você diz, qualquer projeção para o futuro. No entanto, ainda acreditamos nisso: “Brasileiro, profissão: esperança.” Acreditamos no nosso potencial econômico, cultural e humano. Estou sendo utópico? “Um mapa mundi que não inclua a utopia não merece ser consultado,” é o que se lê na tumba de Oscar Wilde, num cemitério de Paris. Agora, em que medida o meu modesto trabalho pode ajudar na construção do futuro, é algo que escapa à minha avaliação. O que penso haver proposto em Meu Querido Canibal(tanto quanto em O Nobre Seqüestrador) é uma reflexão do passado para um entendimento do presente e lição para o futuro. Bem, pretensão e água benta nunca fizeram mal a ninguém, diz o povo, sábio por natureza.

4) – O Brasil e a França tiveram sempre relações privilegiadas. Sendo francesa, apreciei muito o “chauvinisme,” ou seja, a sua simpatia marcada, em contraste nítido com a sua aversão pelos colonizadores portugueses. Acha que haveria nisso um “jeito” francês (além do sexo, da farra etc)?

A.T.: – Vi com simpatia o jeito francês de lidar com os indígenas brasileiros nas primeiras décadas do século 16. De acordo com os relatos dos primeiros viajantes, era um jeito diplomático e foi marcado pelo encantamento em relação à terra e ao homem. Mas é preciso levar em conta que os interesses dos franceses, numa primeira fase, eram diferentes dos dos portugueses. Estes, vieram para ocupar o país e dominar os seus habitantes. Os franceses vieram para tratar de negócios, através dos escambos. E caíram na farra. Alguns até nem quiseram regressar à França, preferindo o sistema de vida tribal. Já no século 18, na era do ouro das Minas Gerais, a coisa muda, quando corsários como Jean-François Duclerc e René Duguay-Trouin, a serviço do rei (Luís XIV), enchem o Rio de Janeiro de medo e terror. Passado esse período aterrorizante, o Rio iria ter de novo uma presença simpática de franceses, aqueles que integraram a Missão Artística de 1816, patrocinada por D. João VI, que trouxe o Debret e o Montgny. Este chegou a formar dezenas de engenheiros e legou uma enorme contribuição à arquitetura da cidade. Ainda hoje há franceses que lembram aqueles dos primeiros tempos, sobretudo os dos serviços diplomáticos. Eles acabam criando uma relação tão sincera e intensa com a cidade, que abominam a hora de deixá-la, quando o seu tempo de permanência chega ao fim. De minha parte, convivo muito bem com os franceses, desde quando, aos 24 anos, pisei em Paris pela primeira vez. Era janeiro e eu tremia de frio numa esquina do Quartier Latin. De repente um táxi parou ao meu lado e o motorista abriu a porta. Ao entrar, ele me perguntou de que país eu era. Ao saber que se tratava de um brasileiro, ele começou a dar murros no volante do seu táxi, exclamando: “Brésil! Brésil! Pelé! O sol!” Depois, abaixou o tom da sua voz, dizendo, um tanto lamuriante, que só lamentava que eu tivesse ido do Brasil sem levar o sol. Considerei aquilo uma recepção extraordinária, que me marcaria por todo o sempre. De alguma maneira, o jeito simpático com que os franceses lidam comigo até hoje influenciou no tipo de tratamento que lhes dei, na revisão da história dos índios tupinambás. E quando falo de simpatia estou, naturalmente, incluindo a forma como você, Brigitte Thiérion, estudou este canibal das letras e a ele se dirigiu, através de um simpaticíssimo e-mail. Merci mille fois!

5) – Villegagnon foi uma personagem controvertida. Jean-Christophe Rufin empenha-se em retificar a visão histórica. Qual é o seu sentimento?

A.T.: – Minha boa amiga Solange Parvaux teve a bondade de me pôr à mesa com o Jean-Christophe Rufin, no encerramento da Expolangues de 2002. Então eu disse que nossos livros são complementares. O Rouge Brésil trata dos franceses que vieram para cá, na malfadada aventura da França Antártica. E o Meu Querido Canibal trata dos que estavam aqui – e do encontro entre esses dois povos. O que veio, dominava a escrita e deixou muita história; daí porque o livro do Rufin é gordo. O que estava aqui, não escrevia, portanto, não deixou história; da í porque o meu livro é magro. Agora, posso falar de outra diferença: o dele ganhou o Prêmio Goncourt e vendeu cerca de 1 milhão de exemplares na França, o que com toda certeza deixou o Rufin sorrindo de orelha a orelha, ao conferir os gordos extratos de sua conta bancária. E eu me contentei com o entusiasmo da crítica brasileira, um prêmio nacional, o interesse acadêmico – crescente, diga-se – e uma bela edição na Espanha, neste ano de 2004, e outra já programada em Portugal. Mas, na hora do acerto de contas, até agora só contabilizei magras tiragens, que totalizam  uns 12 mil exemplares, em 5 edições brasileiras. E isso ainda não é o pior. O trágico mesmo é que nenhuma editora francesa se interessou em publicá-lo. No entanto, o desempenho do livro, em termos mercadológicos, não chega a ser um fracasso tão grande quanto o de Villegaignon, o vice-almirante bretão que pôs o marco da cidade do Rio de Janeiro, em 1555, ao construir a fortaleza na ilha que hoje tem o seu nome, e onde ele se auto-proclamou vice-rei do Brasil. Ele fracassou em seu intento de fundar aqui uma França americana. Militar austero, empedernido, e homem perturbado, Villegagnon, nos 4 anos em que esteve no Rio, passou a maior parte do seu tempo a desgastar-se insensatamente em querelas religiosas, algumas delas levando-o a desfechos dramáticos, como o assassinato de alguns calvinistas. Deixando-se dominar por suas próprias contradições – ora agia como católico, ora como calvinista -, Villegagnon não só perdeu o controle da sua colônia de cerca de 800 homens, como levou a sua perturbação ao extremo de tratar os seus comandados barbaramente. Ele não produziu nada de útil para a França nestes trópicos. Para o Rio, fez apenas a sua primeira fortaleza, pois dela necessitava, para instalar os seus homens. A única coisa digna de nota a seu favor foi o fato de haver recebido Cunhambebe com honras de chefe de Estado, de rei do Brasil – e por 30 dias. Em resumo, o meu sentimento é este: o Cavaleiro de Malta acabou se tornando, em sua expedição ao Rio, um cavaleiro de triste figura.

6) – A intolerância e o extremismo, em parte responsáveis pelo fracasso da França Antártica, impediram o verdadeiro contato dos franceses com o Novo Mundo. Os conflitos religiosos hoje, como ontem, repetem-se a nível mundial. Como se situa o Brasil em relação a isso?

A.T. – O Brasil se situa nesse contexto de forma tolerante. Civilizada, até. Sendo a maior nação católica do mundo, aceita os que rezam por outros credos sem conflitos. Venho de um Estado, o da Bahia – duas vezes maior do que a França, e os baianos dizem isso de boca cheia -, onde o sincretismo religioso se tornou um dado exponencial da sua cultura, sobretudo no litoral. Naquela vasta região, os ritos afros fazem parte das suas manifestações culturais. Hoje, pelo país a dentro e a fora, assiste-se ao crescimento espantoso das igrejas evangélicas que, pela simplicidade de seus templos, seu assistencialismo e linguagem pragmática – que exime o capitalismo de qualquer sentimento de culpa, no sentido em que incute nos seus fiéis que ganhar dinheiro não é pecado -, tornam-se muito atraentes para as classes menos favorecidas da população. Enquanto isso, a Igreja católica tenta reagir, procurando se adaptar aos novos tempos, através de formas mais populares, digamos assim, para os seus rituais, tradicionalmente solenes, quando não suntuosos. A competição não deixa de ter o seu aspecto mercadológico, para entrarmos nas instâncias contemporâneas. Mas posso afirmar, com total convicção, que as atuais disputas pelo mercado da fé não têm conseqüências drásticas, resultando em mortos e feridos, como acontece pelo mundo, hoje, ou já aconteceu por aqui, no tempo dos índios – os sem fé, sem rei e sem lei -, de Villegagnon e das Inquisições, que no Brasil também fizeram as suas vítimas. Enfim, o que temos aqui é uma competividade religiosa pacífica. Deo gracias ! Amém!

Entrevista a Rita-Olivieri Godet – da Universidade de Rennes, França

Entrevista com Antônio Torres
Rita Olivieri-Godet (Maître de Conférences de literatura brasileira, Université Paris 8)
Paris, fevereiro de 2002

Entre janeiro e fevereiro 2002, Antônio Torres realizou uma “tournée” na França para a qual contou com o apoio financeiro do Consulado Geral da França no Rio de Janeiro. O premiado escritor brasileiro desenvolveu uma intensa atividade, proferindo palestras, debatendo sua obra com estudantes e especialistas de literatura brasileira em várias universidades francesas (Paris 8, Lille 3, Bordeaux 3, Nantes) e participando de eventos promovidos pela Association Bateau-Brésil de Lyon, com o apoio da Librairie Flammarion e do Espace Culturel Grands Voyageurs, e da mesa redonda na Expolangues organizada pela Association pour le Développement des Etudes Portugaises, brésiliennes, d’Afrique et d’Asie lusophones com a participação do escritor francês Jean-Christophe Rufin, ganhador do prêmio Goncourt 2001, além de conferências-debates na FNAC de Lille e na Librairie La Machine à Lire de Bordeaux.

Por ocasião da conferência-debate em Paris 8 sobre Essa terra e Meu querido canibal, tive oportunidade de lhe dirigir algumas perguntas que serviram de base para a realização dessa entrevista.

Rita Olivieri Godet – Em várias entrevistas você se refere à sua admiração pela obra do escritor americano William Faulkner (1897-1962). Perguntado sobre a existência de uma fórmula a seguir para se tornar um bom romancista Faulkner respondeu : « Noventa e nove por cento de talento…noventa e nove por cento de disciplina…noventa e nove por cento de trabalho. Não se deve estar nunca satisfeito com o que se faz. » Como você se situa em relação a essa fórmula ?

Antônio Torres – O velho Faulkner sabia das coisas e legou-nos uma fórmula indescartável. E foi mais longe ainda quando disse: “Você escreve um livro pensando que vai contar tudo. Depois descobre que não contou nada. Parte para o segundo achando que agora, sim, vai contar tudo. E chega ao final dele com a mesma sensação de antes. Resolve então escrever outro e assim vai, até o fim da vida, sempre achando que ainda não contou tudo.” E é exatamente nisso que está a graça do ofício de escrever. Bom, procuro seguir o exemplo dos escritores rigorosos em seus processos de trabalho. Aqueles que estão querendo sempre dar o máximo de si mesmos em cada página. Como foi o caso do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, que nunca parecia estar satisfeito com o que escrevia. A ponto de outro poeta, o português Alexandre O´Neill, dizer dele: “João Cabral me dá a impressão de estar o tempo todo afiando a ponta do lápis. A sua obsessão com a perfeição é tão grande, que vai acabar cortando as pontas dos dedos.” Mas, por favor, não pense que estou querendo aqui me comparar a estes gigantes das letras. Apenas tenho-os em boa conta e guardo muito bem guardadas as suas fórmulas, num canto escuro da alma.

R.O.G. – Até que ponto o estilo do escritor Antônio Torres é marcado por outros tipos de experiência com a escrita como o jornalismo e a publicidade ?

A.T. – O jornalismo me ensinou a ver o mundo. E a publicidade a contar isso rapidinho. A literatura é uma esponja que absorve todas as linguagens. Absorvi muito da cultura oral do sertão de onde vim, que era um mundo de contadores de histórias. E me impregnei de música, o baião, o bolero, a seresta, o samba, a bossa nova e… muito jazz! Como diria Gilberto Gil, a Bahia me deu régua e compasso. Mas o piano de Thelonious Monk me dá o ritmo das frases, enquanto o trompete de Miles Davis e o sax de John Coltrane levam o meu texto a uma certa introspecção. Em outros momentos, pego um táxi com Wolfgang Amadeus Mozart. E sonho com um concerto na catedral de Santo Estevão, em Viena d´Áustria, regido por ninguém menos que o próprio Deus, em pessoa. Mozart me leva ao delírio.

R.O.G. – Uma parte importante da sua produção romanesca baseia-se na representação literária de sua cidade natal. Quais os processos que marcam a transformação do espaço geográfico em espaço literário ? Em que medida a experiência vivida está incorporada em sua criação, num romance como Essa terra ?

A.T. – Os cenários, os rostos e as vozes da minha infância contribuíram imensamente para a formação do meu imaginário. Agora, quanto ao momento em que os espaços geográficos se transformaram em espaços literários, eu me lembro: foi numa noite, na cidade de São Paulo, quando minha mulher, a Sonia, me pediu para lhe contar uma história do meu tempo de menino. Contei-lhe. E percebi que ela ficou muito emocionada. No dia seguinte escrevi um conto, ao qual dei o título de Segundo Nego de Roseno, que hoje está num livrinho chamado Meninos, eu conto. É uma historinha singela, passada no Junco, que é hoje a cidade de Sátiro Dias, onde nasci. E foi exatamente esse conto que deu origem ao Essa Terra, que é o meu terceiro romance. Aí o Junco transformou-se definitivamente em matéria da minha memória, com todos os desdobramentos conhecidos, pelo menos para quem já me leu, como no recente O Cachorro e o Lobo. No meu caso, o vivido conta muito. Tanto que há quem pense que tudo o que escrevo é autobiográfico. Nem tanto. E o ficcionista, onde é que fica?

R.O.G. – As diferentes partes do livro « Essa terra me chama » ; « Essa terra me enxota » ; « Essa terra me enlouquece » ; « Essa terra me ama » evidenciam as relações contraditórias que se estabelecem entre a terra e os personagens. Que terra é essa ? Junco ? Alagoinhas? Feira de Santana? São Paulo ? Ou simplesmente as duas faces – a rural e a urbana – de um mesmo Brasil que exclui e condena seu povo à miséria e à morte?

A.T. – Quando estava escrevendo o Essa Terra, me lembrava o tempo todo de um hino que a professora Serafina, e a professora Teresa depois, nos faziam cantar, na escola: “Glória aos homens/ heróis dessa terra/ essa pátria querida/ que é o nosso Brasil…” E quanto mais o romance avançava, mais eu pensava em dar-lhe o título de Minha mãe não é gentil, referência irônica, ou cáustica, ao Hino Nacional. Eu me criei ouvindo hinos e recitando poemas patrióticos retumbantes. Na idade adulta, percebi que “as divinas promessas da esperança” não se cumpriram. E aí chegaram os militares com o ufanismo do “Brasil Grande.” Enquanto morriam quatro por minuto à razão de mil dólares, para citar um verso de Ferreira Gullar. Em Essa Terra tentei mostrar um país do qual não me ufano.

R.O.G. – No final do romance Essa terra, o narrador-personagem Totonhim decide refazer a trajetória do irmão Nelo, abandonar o sertão e partir para São Paulo. Poderíamos ler nessa decisão, o desenraizamento como destino trágico do sertanejo? Por outro lado, a migração nordestina não poderia também ser vista como uma forma específica dos movimentos migratórios do mundo atual ? Na pós-modernidade, o homem moderno estaria condenado a ser um errante?

A.T. – O corte epistemológico do sertão deu-se com a chegada do primeiro caminhão. Muitos endoideceram com o cheiro da gasolina. As mulheres se assanharam com o motorista e já não queriam mais saber dos homens do lugar, que viviam no cabo de uma enxada e exalavam o cheiro de suor por todos os poros. E aí aqueles homens passaram a querer ser como ele, o motorista. Foram caindo fora. Isso é para dizer que não é só a seca e as más condiçõs de vida que expulsam o sertanejo do seu sertão. Há também a sedução da civilização. Claro que existem os fatores econômicos no eixo do deslocamento. Mas a tal da civilização atrai – é preciso levar isso em conta, também. Sim, hoje vivemos num mundo de errantes. As migrações internas passaram a ultrapassar fronteiras. E, pelo visto, o fenômeno parece ser mundial. Já há quem sonhe com um mapa mundi sem fronteiras. Como se fosse uma nova utopia, no pós-tudo, inclusive das utopias.

R.O.G. – O texto híbrido de Meu querido canibal coloca de maneira radical a questão da fronteira dos gêneros ao incorporar uma diversidade de formas narrativas como o relato histórico, a crônica, o diário, a narrativa mítica, sem contudo renunciar à ficção. Inscreve-se, dessa forma, numa das tendências modernas da ficção contemporânea que questiona os seus limites pela heterogeneidade de formas e de vozes que absorve. Além de Cunhambebe um outro herói antropófago está presente no texto : o próprio narrador que se dedica a uma prática intertextual intensa. Em que medida a temática do livro determinou a escolha dessa forma de narrar ?

A.T. – O que determinou a forma de narrar do Meu Querido Canibal foi a falta de história. Ou seja: como os índios não tinham escrita, não deixaram relatos de sua existência nessa terra. E a História oficial os condenou ao esquecimento. Em anos de pesquisa, cheguei à uma conclusão óbvia: o índio é o excluído da História. Tive que me virar e encontrar o meu recorte, valendo-me de minhas estratégias de romancista. Saiu este texto híbrido, como você o define, com precisão.

R.O.G. – Meu querido canibal, já anuncia no próprio título o envolvimento afetivo do narrador com o seu personagem, o que se confirmará logo na leitura das primeiras páginas do livro. Assim, a sua versão da história, assume-se plenamente como um exercício de heroicização dos índios Tupinambás, e em particular de Cunhambebe. Ao longo da narração, o narrador indica os limites da reconstrução dos fatos históricos como sublinha o uso recorrente à palavra « presumivelmente ». O texto problematiza assim a narrativa histórica. Poderíamos inferir dessa leitura que toda narrativa histórica é uma narrativa construída ? Para o escritor Antônio Torres, a história é sempre uma ficção ?

A.T. – De uma certa maneira. Porque todo livro de História foi escrito por alguém que não deixou de dar a sua versão particular dos fatos. Quando bati os olhos num verbete que definia o Cunhambebe como “o selvagem na sua expressão mais repelente,” fiquei tentado a tratá-lo como um herói, porque era assim que o seu povo o via. Até Villegaignon, o vice-almirante bretão que fez o primeiro assentamento de europeus no Rio de Janeiro, entre os anos de 1555-1559, com seu malfadado projeto de criação de uma França Antártica nos trópicos, pois até o Cavaleiro de Malta recebeu Cunhambebe por trinta dias, com todas as pompas e honras de chefe de Estado, de rei do Brasil. Ao recuperar a legenda de grande guerreiro de Cunhambebe, eu iria problematizar as narrativas históricas que minimizaram o seu papel de líder da resistência aos colonizadores. Meu livro é uma revanche, com indignação e afeto, como já disse o poeta baiano Ruy Espinheira Filho.

R.O.G. – A organização do romance em três partes marca também, temporalidades diversas : na primeira parte – “O canibal e os cristãos” – a ação situa-se no tempo histórico do primeiro século da colonização brasileira, focalizando a disputa entre portugueses e franceses pela conquista do território que hoje corresponde à cidade do Rio de Janeiro ; a segunda parte – « No princípio Deus se chamava Monan » – transporta-nos para o tempo mítico das narrativas sobre a criação do mundo, confrontando o livro do Gênesis a uma narrativa dos índios tupinambás ; a terceira parte – « Viagem a Angra dos Reis » – situa a ação « no limiar do sexto século do descobrimento do Brasil », deslocando abruptamente o leitor para o tempo da sua contemporaneidade, estabelecendo um paralelo entre as formas atuais da violência, e aquelas que levaram ao massacre dos índios. A violência interliga as partes distintas : estaria a espécie humana condenada a auto-devorar-se ?

A.T. – Não há relato histórico que não fale de conflitos, desde a Bíblia. Caim matou Abel etc. A Europa vivia ensangüentada quando os brancos deram com os seus costados nessas bandas. E aqui também o pau comia: tupiniquim e tupinambá se entre-devoravam. Com a chegada dos europeus, o pau passou a comer mais fortemente ainda. Do quadro atual nem é preciso falar. Guerras tribais no Oriente Médio, guerras de religião, tudo como antigamente. E os Estados Unidos da América faturando a sua parte. Quando Deus disse a Noé, segundo a Escritura, “Da próxima vez, o fogo,” estaria fazendo um prenúncio da terceira guerra mundial? Estaremos condenados à auto-devoração atômica? Do tempo das cavernas aos nossos dias, o ser humano inventou coisas inimagináveis. Está na hora de inventar a paz.

R.O.G. – Na representação do embate que se trava entre duas civilizações – a ocidental e a dos índios brasileiros que, como assinala o narrador de Meu querido canibal, não sabiam que eram índios até a chegada dos brancos – o livro discute um problema crucial que é o da alteridade, denunciando as consequências dramáticas de um olhar etnocêntrico. Você acredita que a literatura possa contribuir para a construção de relações interculturais que escapem ao etnocentrismo ?

A.T. – Dizia o finado Eistein que é mais fácil destruir um átomo do que um preconceito. Penso nisso quando você toca na questão do etnocentrismo, que é preconceituoso. “Se não está no centro, é inferior.” Pelo fato de não serem brancos e viverem como viviam, os índios foram vistos pelos europeus como “bestas em forma de gente.” Quando ponho isso no papel, fico com a esperança de que o leitor reaja: “Mas que absurdo!” Essa é a utopia da arte: que poderá transformar corações e mentes. Sejemos utópicos e acreditemos nisso: que a literatura possa contribuir para a construção de relações interculturais que escapem ao etnocentrismo. Afinal, como já disse Oscar Wilde, “um mapa mundi que não inclua a utopia não merece ser consultado.”

R.O.G. – Entre franceses e portugueses que disputavam entre si a posse da terra dos índios, Meu querido canibal constrói um perfil simpático dos primeiros em oposição à imagem cruel que elabora dos colonizadores do Brasil. Que elementos fundamentam esse tipo de construção ?

A.T. – O que fundamenta a minha visão é a diferença de interesses entre uns e outros. Os franceses foram mais diplomáticos com os índios por uma razão muito simples: estavam interessados em fazer negócios e não em tomar posse da terra. Trouxeram seus espelhinhos, perfuminhos e algumas utilidades da civilização européia, para trocar pela madeira, o pau-brasil, o pau de tinta tão disputado pela indústria têxtil, especiarias, aves e suas frondosas plumagens etc. E se encantaram com a terra e o homem, principalmente com a fartura de mulheres nuas. Caíram na farra com os índios. Muitos não quiseram regressar, passando a viver no sistema de vida tribal. É preciso entender também que os portugueses demoraram 60 anos, a partir do Descobrimento do Brasil, para se interessarem pelo Rio de Janeiro, que é o cenário do meu relato. Logo, os franceses farrearam sozinhos pelo Rio e suas maravilhosas adjacências durante um bom meio século. Quando os portugueses chegaram para expulsar os franceses, tinham como objetivo maior liquidar as tribos aglutinadas na Confederação dos Tamoios. E foi uma carnificina. Mas quero deixar claro que os franceses foram mais simpáticos do que os portugueses, nas relações com os nativos, nos primeiros tempos da colonização. Quando mudaram de idéia, mais tarde, e quiseram dominar a terra, aí já foi outra história. E vomitaram fogo nas suas invasões ao Rio de Janeiro, no começo do século XVIII, em busca de ouro.

R.O.G. – Como você avalia o contato com o meio universitário, editorial e com o público em geral, durante sua estadia na França?

A.T. – Desde 1984, quando do lançamento da edição francesa do Essa Terra, que vivo pra lá e pra cá. Sempre fui muito bem recebido em Paris. Mas confesso a você que desta vez a coisa me surpreendeu. Desta vez não era só Paris: estendi meus laços também por Lille, Bordeaux, Lyon e Nantes, além de belas esticadas a Bruges, La Rochelle, Rochefort e Saint Malo. Fui tratado como um passageiro de primeira classe, tanto nas universidades, quanto nos eventos nas livrarias e outros espaços públicos. E tudo por quê? Porque uma certa baiana que é hoje Maitre de Conférences na Universidade de Paris 8, a mesma que me dirige estas perguntas, organizou tudo com uma competência que deixou os franceses de queixos caídos. Meus editores parisienses eram só sorrisos. Claro, meus livros traduzidos voltaram a vender. Obrigado, Rita Olivieri Godet. Merci mille fois!

Entrevista para Marzia Figueira

Entrevista para Marzia Figueira, para A Gazeta, Caderno Dois, Vitória (ES), domingo, 28/06/1992.

A bordo de um táxi Rio-Viena

Brasileiro “até os ossos”, ele carrega o sertão no coração aonde quer que vá. A Vitória veio para estréia do projeto Teatro do Texto, em que Paulo Betti e Luís Lima (autor da adaptação) representaram um compacto de seu Best seller, Um Táxi para Viena d’Áustria, editado em 91 pela Cia das Letras. Esta entrevista começou no saguão do hotel, continuou num táxi, mas não para Viena e sim até a Biblioteca Pública Estadual, onde terminou, minutos antes da apresentação… Antônio Torres, que vai virar biblioteca em agosto em sua terra, Sátiro Dias, na Bahia, falou desse Táxi que já foi traduzido na França e na Alemanha e espera apenas que ele suma na poeira que levantou para se dedicar a outro projeto: um romance urbano, político (e que “de certa forma” o leva de volta às origens), passado num quarto de hoje, em São Paulo. Já está praticamente pronto, dentro de sua cabeça. Mas não tem nada a ver com a viagem delirante do táxi tomado por um passageiro estranho e estressado numa das esquinas caóticas do Rio de Janeiro, onde tudo começa – e acaba.

“Um Táxi para Viena d’Áustria” é um delírio? Uma “viagem” entre aspas?

Um Táxi para Viena d’Áustria é a viagem imaginária de um homem que depois de cometer um crime entra num táxi e como está muito estressado adormece. E o rádio do táxi está tocando a Missa em Dó Maior do Mozart e é essa música que faz o passageiro delirar, ele delira ao som dessa música. E a Missa fica um contraponto para a barulheira em volta, do Rio de Janeiro, todo aquele caos urbano.

– Uma viagem no plano da fantasia…

– É, a viagem é a não-viagem, e com isso eu acredito que o livro passa é muito dos sonhos, das ilusões e desilusões de um homem do Terceiro Mundo em relação ao Primeiro Mundo.

– Essa leitura teatralizada, ou seja, no caso do projeto Teatro no Texto a transposição do romance para o palco, não muda totalmente o conceito de comunicação entre escritor e leitor? Não acha que muita gente vai preferir ver a peça a ler o livro?

– Não acredito, não. Devo dizer a você da minha emoção com esse trabalho do Luís de Lima, em que fez a adaptação do livro. Ele fez inicialmente um compacto de 30 minutos, que é o que nós vamos ver hoje na Biblioteca Estadual e é o que foi apresentado na Biblioteca Nacional. Lá foi uma coisa apoteótica, empolgante mesmo. As pessoas saíram dali correndo para comprar o livro, dentro da própria biblioteca. Então, acontece o contrário, a apresentação no palco aumenta o interesse pelo romance. Mas o maravilhoso é que o próprio Luís de Lima se interessou em fazer do Táxi uma peça de teatro. E depois dele o Stepan Nercessian me procurou, dizendo que era uma peça de teatro. E todos os diretores de cinema que conheço, e alguns que não conhecia, também me procuraram para dizer que é um filme pronto e acabado.

– Talvez porque quando se lê seu livro parece que de vez em quando você está com uma câmera na mão.

– É… A sensação que eu tive ao escrever é que tinha duas câmeras na mão. Uma estava na porta do prédio, esperando o homem descer pelas escadas para entrar no táxi. A outra câmera estava na esquina, no tumulto com a capotagem do caminhão da coca-cola. Quando o homem entrou no táxi a sensação foi de que eu jogava as duas câmeras nele, uma na cabeça e outra no coração, na alma.

– Num filme pronto, realmente. E vai sair esse filme?

– O problema é o que todos me dizem, como Geraldo Sarlo, que fez Delmiro Gouveia. Ele me disse que depois de ler o Táxi ficou muito chateado comigo por não ter dinheiro para sair correndo filmá-lo. Esse é o grande problema nacional, a falta de verba, que não precisa nem explicar. Mas só o fato de todo mundo me dizer isso já é uma coisa que me alegra muito. Cada um tem suas idéias, idéias diferentes.

– E cada leitor pode interpretar o “Táxi” à sua própria maneira, não acha?

– Acho. Eu acho que a vantagem de um livro, em principio, é essa. Como ele não é uma obra pronta, como um filme é, ou uma peça de televisão, por exemplo, ele abre muito a imaginação do leitor.

– É o livro, o leitor e sua imaginação.

– Exatamente! O leitor constrói sua própria história a partir daquela história.

– E o “Táxi” é aquele romance definitivo, enfim, que você vem buscando desde que estreou na literatura em 72 com “Um Cão Uivando para a Lua”?

– Certamente não, porque eu pretendo escrever ainda muitos livros. Mas dentro desse momento ele foi aquele que eu estava buscando.

– Quer dizer que você encontrou uma forma nova de escrever, é isso?

– Eu preciso lhe contar o seguinte: eu sonhei com a história desse livro. Uma noite eu sonhei que matava um amigo meu, um escritor, e passei a noite toda, no sonho, fugindo de táxi…

– Então o personagem, o Rosavelti, o Veltinho, é você? “Táxi” é autobiográfico?

– Deve ter muita coisa de mim, mas eu não diria que o romance seja necessariamente autobiográfico, mas eu acho que tudo que escrevo contém muito das minhas vivências, da minha experiência de vida, dos meus roteiros de viagens, do sertão da Bahia até a Europa, São Paulo, Rio, todo esse Brasil que eu já rodei muito, tudo isso aparece dentro dos meus livros. Mas, claro, eu espero ser um romancista e, portanto, alguém dotado de imaginação. E que esses referenciais todos, meu corpo-a-corpo com a vida, me sirva de material, mas um material que apenas dê o toque de partida para as minhas histórias.

– E o sonho com o “Táxi”?

– Pois, é, como eu estava contando, acordei apavorado, suado, me perguntando que violência é essa que carrego dentro de mim… Que crime é esse? Não adianta me perguntar que amigo era porque não posso contar… (Risos). Fiquei extenuado, contei para minha mulher, Sônia, comentando como fora um sonho apavorante. Só mais tarde, quando estava fazendo a barba é que me deu conta de que não era um sonho, era um romance pronto. Enquanto eu dormia, meu inconsciente trabalhava para mim.

– Foi só colocar, então, a história no papel?

– Não, ai daria só uma página. Comecei a escrever esse romance em 87, mas no meio do caminho achei que havia algo de falso nele. Eu trabalhava em propaganda e me desempreguei.

– Já virou peça, pode virar filme, foi exportado…

– Pois é, pode virar o que se quiser, é só o Brasil ter condições porque as pessoas querem fazer dele muitas coisas. Antes de sair aqui foi comprado lá fora. Já recebi as provas da tradução francesa, sai em novembro em Paris, estarei lá para o lançamento.

– Mas você acha que o “Táxi” vai ser bem recebido pelo leitor que não conhece nem vive a realidade do Brasil atual, tão amarga? Esse leitor vai entender? Tem muito leitor brasileiro que não decifra.

– Ah! A primeira carta que recebi da editora Gallimard, nada menos que a Gallimard, da Sra. Alice Raillard, conselheira editorial da Gallimard, crítica literária famosíssima, tradutora de Jorge Amado, João Ubaldo, me dizia o seguinte: “Brésilien, oui, mais contemporainement universal”… O que quer dizer que ela considera o livro muito brasileiro mas universalmente contemporâneo.

– Como traduzir o linguajar, as gírias, as frases feitas, tão tipicamente brasileiras?

– Meu amigo Henri Raillard estava no Rio quando eu estava escrevendo, acompanhou muita coisa, deu palpite, é jovem, ator, jornalista, escreve muito, tem uma vivência da linguagem moderna do Brasil, eu o escolhi para traduzir. Ele fez um trabalho perfeito, levou seis meses traduzindo, mas a reação da Gallimard diante do livro foi esta: não parece tradução, parece um livro escrito em francês! Fiquei muito feliz com isso, e se depender da tradução dele tenho certeza de que será um sucesso.

– Lá como cá… E na Alemanha?

– A tradutora alemã veio conferir algumas coisas comigo e eu lhe mostrei a cópia da tradução do Henri. Ela achou brilhante. Para a Alemanha, ela me deu uma idéia de mudar um pouco o título, que em francês ficou Un Taxi pour Vienne d’Austriche (porque na França também chamam Viena d’Áustria como em Portugal). Mas na Alemanha ela me deu uma sugestão que achei muito inteligente: mudar para Um Táxi Rio – Viena. Não ficou bonito? E dá o mesmo sentido da viagem. Essa semana eu tive duas grandes alegrias: uma foi ver as provas do Táxi em francês e a outra vou lhe mostrar. (Levanta-se e pega a edição do Essa Terra que está saindo em Israel). É uma emoção muito grande! Essa Terra saiu primeiro na França, depois na Alemanha, na Inglaterra, nos Estados Unidos e, agora sai em Israel. Um Cão Uivando para a Lua saiu na Argentina e Balada para um velha infância perdida teve uma bela edição também na Inglaterra e nos Estados Unidos.

– Como se sente como um escritor brasileiro mais conhecido no exterior do que em seu país? Ou não concorda com isso?

– Não, não concordo. Não sou mais conhecido lá fora, não. É que o Brasil é um país grande demais e isso complica muito. Mas no quadro dos escritores contemporâneos, eu me sinto muito bem no Brasil, já vendi muito livro. O Essa Terra já passou dos 100 mil exemplares.

– Você é considerado na Europa como um dos melhores escritores da América Latina, ao lado de Jorge Amado, Drummond, Graciliano Ramos, por exemplo. Mas no Brasil um crítico do Estadão disse que às vezes você “macaqueia” o estilo de Rubem Fonseca e que Táxi faz parte do “besteirol” que Kundera escancarou. O que pensa dessa opinião, e da crítica de modo geral?

– A única crítica negativa que o Táxi recebeu foi essa, do Estadão. Eu viajei o país inteiro de Passo Fundo a Manaus, a bordo desse Táxi, ganhando críticas esplendidas, no Rio, São Paulo, em todo lugar. É uma questão de opinião e com opiniões divergentes a gente aprende muito… Acho que o artista brasileiro tem uma posição um tanto infantil diante da crítica, se melindra, mas acredito que aprendo mais com críticas negativas que com críticas positivas. Entretanto, é preciso ver quando o crítico está exercendo realmente a crítica ou quando ele está tendo uma postura meramente pessoal. A crítica, para mim, está assim equacionada. Se o Táxi fosse ruim, puxa, todo mundo teria dito que era ruim, mas a maioria esmagadora aplaudiu. O livro foi capa de tudo quanto é Caderno, teve primeira página do Globo, Jornal do Brasil, de A Gazeta… Agora, para você ver como são as visões, o crítico da Folha, por exemplo, achou que meu livro era exatamente na contramão da literatura urbana que se faz hoje. Ficou até chato para mim. Imagine, na contramão de um Rubem Fonseca, de um Loyola, de um Roberto Drummond. Veja você, uma opinião completamente diversa, achando até que meu texto criticava os outros textos. Ele fez uma entrevista comigo por telefone e queria saber se eu concordava que meu trabalho era um trabalho de oposição a esses outros tipos de trabalho.

– E é?

– Claro que não. Eu respondi que não estou em briga nem em luta com meus colegas escritores contemporâneos. Eu quero mais é que eles tenham muito sucesso porque o sucesso deles me ajuda. O sucesso que não me ajuda em nada é o do Sidney Sheldon… Quando um leitor brasileiro está lendo um escritor brasileiro ele está assimilando uma dicção, uma linguagem, que é a minha, um comportamento, um texto, que é também o meu.

– A propósito de Sidney Sheldon, você disse (aqui em Vitória mesmo) uma vez que nunca leu um Best seller. Por quê? Preconceitos? Ou agora que Saramago, Rubens Fonseca, Chico Buarque e Antônio Torres entraram para a lista, você mudou e já lê Best seller? Mudou você ou mudou o público que compra livro?

– Não é isso… (Risos). É que quando a gente fala em best seller não está incluindo essa categoria de escritor. Uma coisa é um livro de qualidade que vira best seller. E aí eu acho que a Companhia das Letras mudou, num certo sentido, o gosto do público. Ela conseguiu introduzir no mercado o best seller de qualidade literária. E eu não estou contra as pessoas que entram para a lista de best seller, não é isso. É que existe uma indústria do best seller, aquela coisa que é feita quase que por computador. Bota-se uma pitada de sexo, uma pitada de espionagem…

– É uma fórmula, não?

– É uma fórmula! É uma fórmula infalível, claro. Esses caras ficaram donos do mercado. Mas no Brasil recentemente começou a surgir um outro tipo de leitor. Um leitor mais sofisticado, que começou a exigir mais.

– Como carioca que já se tornou, você esqueceu a “seca, miséria e fome”? O que ainda conserva das raízes do sertão baiano?

– Bom, eu carrego o sertão comigo onde vou e ele está sempre presente. Mesmo que eu não queira, ele me chama de volta. Agora mesmo eu virei biblioteca na terra em que nasci. Uma terra sem rádio, sem notícias das terras civilizadas, como cantava Luiz Gonzaga, o rei do baião… sei uma estantezinha, eu descobri Castro Alves, Gonçalves Dias e também Alan Kardec e Humberto de Campos… Aí chegou a professora Teresa lá e descobriu que eu gostava de ler e começou a fazer curso intensivo diário de leitura… E me botava para escrever todo dia, e em botava para ler em voz alta e até hoje adoro ler em voz alta!

– Então você devia estar no palco no lugar do Paulo Betti, dentro do “Táxi”, não acha?

– Acho que eu devo ter alguma coisa de ator, sim, por causa dessa professora… Voltando a sua pergunta, esse sertão me chama de volta, ao criar uma biblioteca pública com meu nome em Sátiro Dias. Quero aproveitar a oportunidade para fazer um apelo aos escritores do Espírito Santo para enviarem seus livros para lá. A terra é pobre, o lugar é pobre. Por isso, enviem seus livros aos cuidados do prefeito José Robério Batista, Biblioteca Pública Antônio Torres, Sátiro Dias, Bahia. O CEP é 48 485, não tem erro. Quando recebi a carta do prefeito dizendo que a escolha não tinha sido dele mas da terra, do povo, fiquei com aquele papel na mão, timbrado com o nome da biblioteca, emocionado, pensando que eu ainda não tinha idade para isso…

– Homenageado em vida, é a glória, não é não?

– E não é? Fui convidado para inauguração, vai ser dia 6 de agosto, e é claro que vou.

– Falar em idade, você ultrapassou a barreira dos 50. Em que acredita agora? Continua acreditando na Loto e na Sena, já ganhou? Na Santa Madre Igreja? E no Partido Comunista, que não existe mais?…

– Estou com 51, é uma boa idade… Não ganhei na Loto (risos) e tenho minhas religiosidades. Mas agora só acredito mesmo é no trabalho.

– E no Brasil, você acredita?

– Está difícil de acreditar. Está duro para encarar o Brasil de hoje, do jeito que está. Eu sempre me pergunto como é que um país como este, com tanta beleza, tanta terra, com tanto potencial humano e criativo, com tanto potencial econômico, pode ter chegado à situação em que está.

– A que conclusão você chegou?

– Que deram um nó no Brasil e agora não sabem desatar. Essa “yuppada” que tomou conta do poder, essa “yuppada” jeca, que só fez o caos, esses enriquecimentos rápidos que a gente está vendo aí, enquanto tudo empobrecia, num país que não é pobre, é rico. Então o que precisamos é de boa administração e honestidade.

Entrevista à Vandré Abreu e André de Lleones

Entrevista à Vandré Abreu e André de Lleones   http://www.canissapiens.blogspot.com/

Sem perder o ritmo e rumo das horas

Em entrevista exclusiva, o escritor Antônio Torres fala sobre Pelo Fundo da Agulha, seu romance recém-lançado, suas influências e a finalidade da literatura nos dias de hoje, dentre outras coisas.

Antônio Torres é um menino. Um menino nascido em 1940, no interior da Bahia. Autor de mais de uma dezena de livros, muitos dos quais traduzidos em países como Holanda, Estados Unidos, Israel, França, Itália, Bulgária e Alemanha, Torres recém-lançou Pelo Fundo da Agulha (Ed. Record, R$ 34,90). Com ele, fecha a trilogia iniciada há trinta anos com Essa Terra, já em sua vigésima edição, e que teve prosseguimento com O Cachorro e o Lobo. Nesses livros, escreve, para usar expressão de Affonso Romano de Sant’Anna, sobre o “seu Nordeste”, a sua Junco natal, da qual muitos fogem e para a qual outros tantos convergem. São romances habitados por homens partidos ao meio, divorciados de sua terra e de si mesmos. Para gente assim, muitas vezes só resta o suicídio.

Poucos escritores contemporâneos escrevem sobre temas tão complexos de forma marcante, e Antônio Torres é um deles. Com uma vantagem: mantém, “por malandragem”, um diálogo efetivo com as novas gerações de autores. Torres conversou conosco sobre este e outros assuntos de sua residência em Copacabana, no Rio de Janeiro.

“Pelo fundo da agulha” encerra uma trilogia iniciada com “Essa Terra” e “O Cachorro e o Lobo”. Quando escreveu “Essa Terra”, já tinha isso planejado? Se não, quando lhe ocorreu isso?

ANTÔNIO TORRES – Nunca tinha pensado antes em fazer desdobramentos da história do Essa Terra. A coisa começou num dia de chuva aqui em Copacabana, onde moro. Senti o cheiro da terra com as primeiras pancadas da água e me lembrei de uma canção do belga Jacques Brell, Ne me quittes pas, na qual ele canta: “Eu te oferecerei pérolas de chuvas vindas de um país onde nunca chove”. Aí me lembrei do lugar onde nasci, que antigamente se chamava Junco (hoje, cidade de Sátiro Dias), no sertão da Bahia. Lá era seco. Depois de longas estiagens, quando chovia, os homens vestiam terno branco e rolavam na lama de tanta alegria. Foi aí, com essa lembrança, que me veio a idéia de escrever O Cachorro e o Lobo, que é uma revisita ao Essa Terra 20 anos depois. Nesse livro, há uma imagem forte, de uma mãe passando a linha pelo fundo de uma agulha, sem óculos. Essa imagem viria a ser o ponto de partida para a escritura de Pelo Fundo da Agulha, que aí está, causando emoções e machucando corações.

Um dos temas desses livros é o suicídio. Em O Mito de Sísifo, Albert Camus argumenta que o suicídio é o único problema filosófico relevante. O que pensa acerca disso?

AT – Assino embaixo. Tanto que, em dado momento de Pelo Fundo da Agulha, eu reproduzo um longo trecho de O Mito de Sísifo.

Que escritores ajudaram a definir seu estilo?

AT – Meu estilo começa na infância no sertão, ou seja, na cultura popular que vem da literatura de cordel, das lendas de um povo, dos cânticos religiosos e profanos, das festas populares. Venho de um mundo de contadores de história e isso formatou meu imaginário. Quanto às influências eruditas, incluo Machado de Assis, os romancistas da chamada Geração de 30 (Jorge Amado, Graciliano Ramos etc.), e os norte-americanos, como William Faulkner, Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Truman Capote, e tudo mais, de Dostoievski ao francês Boris Vian, de James Joyce ao português José Cardoso Pires.

A esmagadora maioria das pessoas não lê ou procura apenas livros de auto-ajuda. Por que tantos ignoram ou desconhecem a grande Literatura?

AT – Outro dia fizeram uma pergunta parecida para o escritor norte-americano Gore Vidal. A questão era: “Por que os grandes autores dos Estados Unidos há muito tempo não figuram mais nas listas de best-sellers?”. Ele respondeu que literatura sempre foi mesmo para poucos, mas, no nosso tempo, os leitores de literatura estão se tornando menos ainda. No ano passado, durante uma conferência numa universidade francesa, um estudante me perguntou: “Como o senhor explica o seu país, que deu escritores como Machado de Assis, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, e até o senhor (risos), ter as listas de best-sellers que tem hoje?”. Respondi: “São as mesmas de Paris. Porque o mundo ficou igual naquilo que tem de pior. Não eram vocês que queriam derrubar o Muro de Berlim? Agora, agüentem a auto-ajuda”.

Ainda é preciso escrever? Ou a literatura, para citar Kant, é uma finalidade sem fim?

AT – Para mim, é uma razão de viver. Então, como pode ser uma atividade sem fim? Apesar de tudo, ou talvez por causa de tudo, nunca houve tantos escritores no mundo quanto hoje. E me refiro aos de literatura. Basta ver o exemplo do Brasil. A quantidade de jovens escritores que vêm surgindo, e alguns muito bons, é um espanto! Melhor assim.

O senhor é um dos poucos autores consagrados que mantém um diálogo efetivo com as novas gerações. Em que medida essa troca é importante?

AT – Para mim, é fundamental. Como dizia o poeta João Cabral de Melo Neto, “o novo infecciona o velho”. Procuro acompanhar a produção dos jovens e dialogar com eles por pura malandragem. Assim, espero, não perderei a dicção do nosso tempo. Mantenho-me atualizado com as técnicas de linguagem, maneiras de ver o mundo e de fazer literatura. Logo, não pense que é porque eu sou bonzinho que me relaciono bem com os escritores mais novos. É para não perder o ritmo e o rumo das horas.

Entrevista à Heloisa Buarque de Hollanda

Entrevista publicada no Portal Liberal www.portalliberal.com.br (dezembro de 2002)

Antônio Torres conta a Heloisa Buarque de Hollanda o caminho até seu primeiro livro, relançado trinta anos depois

Antônio Torres, um de nossos mais consagrados ficcionistas, acaba de relançar seu livro de estreia, “Um cão uivando para a lua”, de 1972. De lá para cá publicou nada menos do que 12 romances, com traduções em Cuba, Argentina, França, Alemanha, Itália, Inglaterra, Estados Unidos, Israel e Holanda, e recebeu varios prêmios, como o Chevalier des Arts et des Lettres, o Machado de Assis e o Zaffari & Bourbon. A conversa que se segue toma o rumo de juntar os fios do Brasil de hoje com a época de sua estréia literária, conhecida como os anos de chumbo, seus impasses geracionais e o boom da literatura que já se anunciava e veio à tona com insuspeito vigor por volta de 1975.

H: Por que essa reedição agora? Que ventos são esses que andam nos trazendo os Doces Bárbaros e tantos outros remakes dos tempos em que o sonho ainda não tinha acabado?

AT: Permita-me começar puxando um Freud de bolso: os sonhos só acabam quando a gente morre. Quanto aos remakes, eles estão tirando do baú do tempo produções que de alguma maneira marcaram uma época, assim os entendo. Tipo assim: “recordar é viver”. Ou um breve ato contra a ditadura do Novo! Chegou! Agora no Brasil!  No caso desta reedição, porém, trata-se da disposição da Record de reunir todos os meus cacos e com eles fazer um belo mosaico. A partir da publicação de “O cachorro e o lobo”, em 1997 – meu primeiro livro publicado lá -, essa editora vem trabalhando nesse sentido. Tanto que, de 1999 para cá, já relançou cinco dos meus títulos: “Os homens dos pés redondos”, “Balada da infância perdida”, “Essa terra”, “Um táxi para Viena d’Áustria”, e, agora, “Um cão uivando para a lua”. O fato de “Um cão…” ter feito 30 anos no finalzinho de 2002 acabou servindo de gancho para o seu relançamento, com prefácio do autor e posfácio com a fortuna crítica do livro. Com isso, a Record vem me dando um verdadeiro banho de loja, pois as edições são muito bacanas, capas bonitas etc. A empresa não está apenas publicando e republicando os meus livros. Tem um projeto para eles, obedecendo a uma programação muito bem planejada. A repaginação do acervo deste velho autor deixa-o se sentindo com pinta de quem acabou de sair da clínica do doutor Ivo Pitanguy. Agora, quero deixar claro que existe nos meios editoriais brasileiros um certo tabu de que reedição não funciona, porque o leitor brasileiro só gosta de novidade. Nos casos expostos acima, editora e autor não podem se queixar. Os resultados têm sido satisfatórios. Onde foi que erramos?

H: Esse livro reflete os anos de chumbo ou os tempos do “sufoco”, como diziam os poetas. Qual sua lembrança como artista e intelectual daquele momento? Como foi sua experiência pessoal e literária nesses anos negros?

AT: Tinha todo aquele clima (os da minha idade ainda devem se lembrar): ditadura, censura, prisões, desaparecimentos, mortes. O chumbo era de grosso calibre mesmo. Mas um ufanismo de inspiração fascista ou algo parecido tentava abafar os uivos, que eram interpretados pelos artistas – os que tinham voz e souberam usá-la -, tornando-se uma frase bíblica metáfora do protesto: “Pai, afasta de mim este cálice/ afasta de mim este cálice/ de vinho tinto de sangue”. Bom, minha experiência pessoal foi a de estar ligado nos acontecimentos como um parceiro desse tempo – era preciso estar atento e forte; não tínhamos tempo de temer a morte, cantava a Gal. À minha volta, havia os que caíam nas drogas até irem parar debaixo dos eletrochoques. Outros pegavam em armas. Por causa de um deles, que era meu amigo, acabei tendo que andar me escondendo da polícia, por um bom tempo. Foi um sufoco. Também tive amigos que se exilaram. Meu exílio foi aqui mesmo. Lendo muito. E tentando escrever.

H: A questão da loucura do personagem era também sinal dos tempos? O que seria a loucura nos anos 70 e a loucura hoje, no século XXI? Lembro que naquela época loucura era sinônimo de experiência interessante, sensibilidade, transgressão. Sentido que ficou ainda mais carregado e múltiplo com o clima sombrio da ditadura.

AT: Agora você me faz lembrar do meu primeiro analista (passei por três, dos anos 70 aos 90, pois voltava aos divãs, sempre que a barra pesava). A primeira vez foi análise em grupo, que estava na moda – e era mais barato. Quando o grupo começou a falar muito em loucura, o terapeuta disse: “Vocês não sabem o que é isso.” Naqueles anos, falava-se em loucura como quem dizia: “Me traz aí uma coca-cola.” Não deixava de haver uma certa tendência a romantizá-la, glamourizá-la. A loucura funcionava esteticamente como metáfora, creio, ou sinônimo de rebeldia. O que fosse loucão era maravilhoso: o filme, o romance, o poema, a pintura, o sujeito. Havia qualquer coisa de importado nisso (do conde de Lautréamont com seus fantásticos “Cantos de Maldoror”, escritos sob o efeito de ervas alucinógenas, aos hipsters que faziam o contraponto para os squares, antecessores dos caretas). Criativamente, a loucura sempre foi sedutora. Quanto ao personagem de “Um cão uivando para a lua”, ele surgiu a partir do impacto provocado ao me deparar com um amigo que havia sido internado como louco. Logo, o ponto de partida para a sua construção partiu de um alicerce real. Como o autor aqui estava “inserido no contexto”, como era também moda dizer-se, tentei buscar a loucura do outro (está no livro: “O universo são dois. Quero ir ao outro para ver vocês de lá.”) e introjetá-la em mim. Como se quisesse entender, afinal, onde estava a fronteira entre sanidade e loucura. Agora, o que existe de modo generalizado é a caretice, a platitude das imagens globalizadas.  Mas agora, dizemos “que loucura!” quando vemos o presidente dos Estados Unidos da América gritar “fogo, fogo!”. E quando os petardos no morro ao pé de nossas camas nos tiram o sono. Ou assustados com o fanatismo religioso e outros. Ah, quanta loucura.

H: Como foi fazer esse livro? Voce pensava em ser escritor naquela época?

AT: “Um cão uivando para a lua” começa assim: “Passei o dia todo subindo e descendo escada.” Relendo isso quando tive de fazer a revisão das provas do livro, pensei: essa frase diz muito sobre todas as minhas tentativas anteriores de escrever. Ah, quantas páginas tive que jogar na cesta do lixo antes daquele começo! Sim, claro, escrever era – e continua sendo – o meu sonho de criança. Se você, depois de brincar de esconde-esconde comigo, me perguntasse o que eu queria ser quando crescesse, a resposta viria na ponta da língua: “Castro Alves!” Tive uma professora chamada Tereza que percebeu isso e todo dia me escalava para ler um texto literário em voz alta. Depois, passava um exercício de redação, que ela chamava de composição. Era sofisticadíssima aquela professora da minha escola rural, lá no Junco – hoje Sátiro Dias -, no sertão da Bahia. Um dia aquela bendita professora pegou pesado, me pedindo para escrever sobre um dia de chuva. Como eu vivia num lugar chegado a uma seca, tive que apelar para a imaginação. Hoje, acho que ela estava mesmo querendo fazer de mim um romancista. E aí saí pelo mundo borrando papel – para o lixo. Até chegar a Lisboa. No meu primeiro dia lá (passou-se isto em 25 de junho de 1965), sentado à mesa de um café, passei a observar os homens que iam e vinham pela calçada, dando voltas no quarteirão. Achei que eles tinham os pés redondos de tanto andar em torno de si mesmos. Eureca! “Os homens dos pés redondos”. O título estava achado. Fiquei três anos em Portugal tentando achar o resto. Acabei vindo embora com apenas um título na bagagem. No regresso, em São Paulo, depois de muito batucar numa Lettera 22 – a mais fantástica máquina de escrever que o mundo foi capaz de inventar -, consegui chegar à primeira frase: “A julgar por ele, todos aqui são homens sem mulheres, porque as mães de seus filhos não contam.” Mas, e aí, como era que se fazia para continuar? Empaquei. Até o dia em que, no Rio de Janeiro, fui visitar um amigo que estava internado num hospital psiquiátrico, onde vinha sendo tratado a eletrochoques. Fiquei chocado. Desse choque nasceu o “Um cão uivando para a lua”, que foi escrito de um jato, com toda a urgência deste mundo. A minha urgência de parir um livro. Que resultou cheio de gafes literárias, pouca ou nenhuma elaboração, um texto sujo, como diz o meu filho Tiago, acrescentando: “Por isso mesmo é o seu livro de que mais gosto.”

H: Como esse livro sinalizou sua longa e definitiva trajetória, que o tornou um dos mais respeitados ficcionistas de nossa geração?

AT: Bom, tão logo cheguei ao ponto final de “Um cão…”, voltei ao outro, que empacara. E aí o teclado continuou andando, em velocidade de cruzeiro. E quando o telefone tocou e uma voz se anunciou como repórter do “Jornal do Brasil”, e disse que queria me entrevistar, pensei que era algum amigo querendo me sacanear, me passando um trote. Eu ainda não sabia que escritor dava entrevista. Depois vieram as críticas, as cartas, os livros. E aí percebi que o país estava cheio de escritores da minha idade, que adentravam a minha casa, dentro dos envelopes. Eram tantos que cheguei a pensar que, se eles comprassem os livros uns dos outros, todos viravam best-sellers. Até àquela altura, meus conhecimentos de literatura brasileira paravam em Clarice Lispector e Antônio Callado. Havia lido o “Quarup”, quando ainda morava em Portugal, onde também li Borges, Cortázar, todos os italianos do pós-guerra, os franceses e ingleses (os young angry men estavam na onda), enquanto o poeta português Alexandre O’Neill me pedia para ler o “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa, em voz alta, “por causa da oralidade do texto, da sua sonoridade”. Aliás: o O’Neill me apresentava aos seus amigos assim: “Este gajo chegou cá falando de Scott Fitzgerald, de quem cita de memória páginas e páginas. Temos que o levar a sério.” Um dia fiquei desempregado lá. Aí ele me disse: “Não precisas de emprego. Na minha casa tem um quarto para ti. Vou te trancar a pão e água, pois tudo o que tens a fazer é escrever.” Voltei a Lisboa em 1973, já com dois livros publicados. E casado com a Sonia. O O’Neill me saudou assim: “Oh pá, leste bem os norte-americanos!” Aí me lembrei do tempo em que ele lia J. D. Sallinger em voz alta. Aquilo que acabava de me dizer era um elogio, com certeza. Ah, não me fale dos norte-americanos. Malditos escritores! Eles contribuíram muito para que eu retardasse o meu começo. Porque vivia com a cabeça totalmente ocupada com as primeiras frases, as primeirs linhas, os começos deles. Eram de humilhar: “Todos estavam bêbados” (Hemingway). “Era precisamente meio-dia nesse domingo quando o xerife chegou à cadeia com o Lucas Beauchamp embora toda a cidade (e todo o conselho, para falar a verdade) já soubesse desde a véspera que o Lucas havia matado um branco” (Faulkner). “Havia um homem e um cão também desta vez. Duas feras, considerando-se Old Ben, o urso, e dois homens, contando-se Boon Hogganbeck, em cujas veias corria um pouco do sangue que corria em Sam Fathers, embora a linhagem de Boon fosse plebéia e apenas Old Ben e o mestiço Leão fossem puros e incorrupitíveis” (idem). “Imagine uma manhã no fim de novembro. A chegada de uma manhã de inverno há mais de vinte anos. Pense na cozinha de um velho casarão numa cidade do interior. A peça principal é um grande fogão preto; mas há também uma ampla mesa redonda e uma lareira com duas cadeiras de balanço em frente. Exatamente hoje a lareira começou seu rugido sazonal” (Truman Capote). “Começa-se com um personagem e, antes de se dar conta, descobre-se que se criou um tipo; começa-se com um tipo e descobre-se que não se criou coisa nenhuma” (Scott Fitzgerald). E mais os outros, daqui e d’alhures. Guimarães Rosa: “… era uma viagem inventada no feliz.” Juan Rulfo: “Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia o meu pai, um tal de Pedro Páramo.” Albert Camus: “Hoje, minha mãe morreu.” E chega. “Esqueça os outros”, dizia-me Alexandre O’Neill. “Escreva, pá, escreva. Depois os críticos vão descobrir com quem te pareces.” E não deu outra. É, doutora Heloisa: demorei a começar. Depois que o teclado pegou o embalo, escrevi o primeiro livro num jato, como já disse. Porque tinha pressa em chegar ao segundo. (Atenção! Esta frase aí está me soando a Borges, em “O fim”. Também pudera. Já li esse conto dele mais de 30 vezes. E em voz alta). O terceiro livro veio devagar. Houve quem o classificasse de maduro. Fiquei preocupado. Fruto maduro cai da árvore. Depois apodrece. Temeridades à parte, a (presumível) maturidade literária não veio só com o tempo e o fazer e refazer. A crítica teve sua (digamos, inestimável) parcela de contribuição. Porque prestei mais atenção nas restrições do que nos elogios. Se tive algum crescimento ao longo dessa trajetória, se deve também a isso. Ou principalmente foi isso. Mas já que o motivo desta entrevista é a minha estréia nas letras, há 30 anos, termino dizendo que tenho uma saudade danada do tempo em que vivia escrevendo sem saber que existia vida literária, com seus padrões, regras, jogos de poder, panelas, cascas de banana, uma tremenda mão-de-obra. Mas acho entrevista um barato. Me faz pensar, refletir. Conferência também: é uma maneira de fazer da fala uma extensão da escrita. Ou de escrever em voz alta.

H: Diz aqui em primeira mão: qual seu próximo projeto????

AT: Um romance que tem como personagem principal René Duguay-Trouin (o corsário de Luiz XIV, o Rei Sol), que em 1711 fez o primeiro seqüestro do Rio de Janeiro – o da própria cidade, que tomou como refém durante os 50 dias em que esperava o pagamento do resgate, para devolvê-la a seus habitantes. Foi uma loucura! Venho pesquisando isso desde 1998, quando estive pela primeira vez em Saint-Malo, na França, a terra natal de Duguay-Trouin e fortaleza dos corsários. Voltei lá em fevereiro de 2002, e fui também a La Rochelle, de onde ele partiu com 17 navios e quase 6 mil homens para arrasar o Rio e pegar todo o ouro que aqui era embarcado para Portugal. Em La Rochelle passei um dia inteiro com um historiador chamado Laurent Vidal, diretor do Espaço do Novo Mundo, que marcou encontro às nove da manhã no Aquário da Marinha. Cheguei pontualmente, levado por uma tropa da Universidade Michel de Montagne, de Bordeaux. Para começo de conversa ele me deu uma revista na qual acabava de publicar um ensaio sobre a invasão francesa ao Rio de Janeiro, com a seguinte dedicatória: “Na esperança de que você escreva um ótimo romance sobre esse assunto.” Como esse historiador havia lido o “Meu querido canibal”, isso facilitou o papo. Nem precisei lhe dar maiores explicações sobre o meu projeto. Durante aquele dia falamos de Duguay-Trouin o tempo todo. Ele me ajudou muito a ajustar a alça de mira. Já estou na metade do livro e com contrato assinado com a Record. Se o teclado continuar correndo bem, poderá ser publicado em 2003. Por fim, mas não por último: ao escrever um livrinho sobre o Centro do Rio, para a coleção Cantos do Rio (Rioarte-Relume-Dumará), me encantei com a história desta cidade, que tem personagens fascinantes, como o Cunhambebe, o meu querido canibal, e o Duguay-Trouin, o audaz corsário.

Com a palavra o escritor

“Prezadíssimo Carlos Ribeiro: reescrevi tudo. Enxuguei tudo, reduzindo o texto praticamente à metade, tentando torná-lo publicável. Do jeito que estava – longo, repetitivo, chato – parecia que dei aí a minha pior palestra de todos os meus anos de palestrante nacional e internacional. Menino, achei um horror. De me matar de vergonha. Espero que tenha melhorado, pelo menos um pouquinho. Ainda assim, me sinto devedor de uma palestra decente para os meus conterrâneos. Outra coisa: acabo de escrever uma crônica sobre Jorge Amado, sob encomenda do “site”do Banco do Brasil, que está disponível no seguinte endereço: www.cultura-e.com.br(depois busque orbita e depois estado da arte.) Se achar, e achar que vale a pena, por favor, peça aos amigos para darem uma olhada (Aleilton, Gerana e quem mais possa se interessar). Bom, já são 4 da matina de domingo. Essa revisão acabou sendo uma refação. Deu um trabalho do cão. Um abração e obrigadão. Antônio Torres.”

Com a palavra o escritor Antônio Torres
Data: 13/06/97

Em primeiro lugar, meus agradecimentos a Ildásio Tavares pela brilhante apresentação. Realmente, ele tem razão: depois da sua fala não tenho muito mais a dizer (risos).

Bem, quero agradecer às instituições baianas que tornaram possível essa minha presença aqui em Salvador. Refiro-me à Fundação Casa de Jorge Amado e à Universidade Federal da Bahia. E, claro, a todos vocês.

Fiquei muito contente com o que o meu querido Ildásio Tavares falou  sobre O Cachorro e o Lobo, ao dizer que é um momento muito diferente na minha literatura. Acrescentaria que este romance coincide com um momento diferente na minha vida. É a idade avançando e, quem sabe, a maturidade chegando.

Permitam-me contar-lhes a curiosa reação de Luciana Vilas Boas, a diretora editorial da Record, logo que o leu, ainda nos originais. Ela me telefonou para perguntar como era que eu tinha conseguido criar um personagem “tão bem resolvido.” Se eu era uma pessoa “bem resolvida.” Respondi-lhe que certamente que não; que talvez o personagem estivesse na contra-mão dos meus próprios impasses pessoais. A verdade, porém, é que quando escrevi o livro, ele me deu, em primeiro lugar, muito prazer, e, em segundo, me trouxe um certo apaziguamento. Assim que o terminei, enviei uma cópia pra Paris, para Alice Raillard, que é tradutora de Jorge Amado e conselheira para a língua portuguesa, na editora Gallimard. E ela me mandou uma carta tão bonita, tão entusiástica, que eu pensei que não precisava mais publicar o livro: aquela carta já me bastava. Andei um tempão com ela no bolso, já me dando por satisfeito.

Deixei O Cachorro e o Lobo na gaveta e parti para outra empreitada: a de escrever um livrinho de encomenda para uma coleção chamada Cantos do Rio, do Rio-Arte, instituto da Secretaria de Cultura do Município do Rio de Janeiro. A nova tarefa resultou num volumezinho intitulado O Centro das nossas desatenções, que me fez bater perna pelo centro da cidade, vasculhando-o em seus becos, bares, espaços culturais, legados históricos e, até, nos cocorutos de seus arranha-céus. Perigrinei também pelas ilhas, que são marcos da história do Rio: a de Villegagnon, a das Cobras e a Fiscal – esta, a do famoso baile que derrubou o Império. Além desse corpo-a-corpo, também mergulhei num trabalho de pesquisa que, passo a passo, ia se revelando fascinante. Tanto que esqueci O Cachorro e o Lobo por uns tempos. Até porque o livro sobre o Centro do Rio era uma encomenda com prazo de entrega e publicação.

Durante as minhas pesquisas percebi que, assim como eu, a maioria dos cariocas andam pelo Centro da cidade sem dar a menor atenção à história que existe nele, e que é riquíssima. Daí ter me ocorrido esse título de O Centro das nossas desatenções. E que colou. E olhem que eu temia o que os naturais do Rio de Janeiro iam dizer. “Como que um baiano se atreve a contar a nossa própria história?” Para minha surpresa, a recepção foi extremamente simpática. Até hoje continuo recebendo caixas e caixas de livros ensebados, alfarrábios caindo aos pedaços, com pedidos de leitores para que eu escreva mais sobre o Rio. Logo, o resultado foi altamente compensador.

Se O Cachorro e o Lobo foi apaziguador em relação ao meu passado de retirante, o livro sobre o Centro do Rio poderá me abrir perspectivas futuras, pois me deixou fascinado pelo estudo da História, e, sobretudo, o estudo da História das nossas cidades, como Rio de Janeiro, Salvador e Recife, por exemplo. Ainda não sei aonde esse novo interesse vai me levar, literariamente falando. Mas, para já, concluo que o conhecimento da História é fundamental para um romancista.

E já que o escritor aqui está com a palavra, permitam-me mostrar como a história que escrevi sobre o Centro do Rio se inicia. Porque as linhas que vou ler tem muito a ver com a trajetória deste narrador que vos fala – um baiano que passou boa parte da vida se descolando de um lugar para outro: do Junco para a Alagoinhas, depois Salvador, São Paulo, Lisboa, Porto e outras Oropas e, finalmente, Rio de Janeiro. Vejamos:

“Comecemos pelo aeroporto Santos Dumont, onde um dia um rapaz de vinte anos chegou, olhou a cidade de longe e foi embora. Eu me lembro: era uma bela tarde de janeiro, o mês do Rio. Céu de brigadeiro. O esplêndido azul de Machado de Assis. O azul demais de Vinícius de Moraes. Ano: 1961. O passageiro estava em trânsito. Vinha da Bahia com destino a São Paulo. Desceu aqui para fazer uma conexão, depois de cinco horas preso numa cadeira de uma geringonça ensurdecedora e vagarosa, relíquia aeronáutica da Segunda Grande Guerra. Um pau de arara do ar chamado kurtis commander que, mal avistava uma pista de aterrissagem, ia baixando.

Descer no Rio havia sido uma bênção. Para os seus ouvidos, suas pernas, seus olhos. Assim o vejo: olhando a cidade por trás dos vidros que o enjaulavam no saguão do aeroporto, enquanto aguardava a  chamada para o embarque. Azul era também a cor do seu paletó. Ele estava convenientemente vestido para sua primeira viagem de avião. Trajava até uma gravata vermelha, sobre uma camisa branca. E seus sapatos espelhavam, de tão bem lustrados. Numa das mãos, portava uma maleta com tudo que possuía de seu, aos 20 anos – o que incluía meia dúzia de livros -, além da roupa do corpo. Já que não podia sair, contentou-se em olhar à distância a cidade que só conhecia de prosa e verso, cinema e canções, e tudo nela, o que vinha dela, o fascinava. E dava medo. Imaginava-a fora da rota dos imigrantes, inatingível para principiantes. O Rio era a Corte – dos sabidos e malandros. Suas artes e letras, sua natureza deslumbrante (“ Deus fez o mundo em sete dias, dos quais tirou um para fazer o Rio de Janeiro,” dizia a voz de ouro de Luiz Jatobá, num documentário de Jean Manzon), o atraíam. Mas a manchete do jornal comprado na banca do aeroporto o amedrontava. Era sobre uma operação de extermínio chamada chamada de mata-mendigos. E ali estava ele,  entre duas visões da cidade: uma sedutora, outra assustadora. Teve vontade de ficar. A chamada para o vôo o levou em frente. Tinha que ir para São Paulo. Assim estava escrito na sua passagem. Era um baiano do interior, um tímido roceiro, e estava indo para a locomotiva da nação, onde sempre haveria de cabermais um. Voltaria ao Rio um dia, para vê-lo de perto, entrar nele, conhecê-lo nas solas dos seus sapatos, se para tanto não lhe faltasse coragem. O Rio não era uma cidade para capiaus, tabaréus da roça.

Trinta e cinco anos depois, um passageiro diário das linhas urbanas de Copacabana-Centro, Centro-Copacabana, vai retornar ao Santos Dumont. A pé. Para tentar descobrir o que foi mesmo que aquele garoto interiorano viu – e se por um momento poderiam voltar a ser a mesma pessoa -, ainda capaz de ver a cidade com um olhar de novidade. E vai chegar moído. Esbodegado. Como se tivesse batido nos cascos a longa estrada Bahia-São Paulo, embora seu fique logo ali. Aqui mesmo, no miolo do Centro, o número 110 da avenida Rio Branco, entre a rua do Ouvidor e a 7 de Setembro, onde era o Jornal do Brasil.”

Até aí, não é ainda a História do Rio que está no centro da narrativa, mas a do narrador, que se move sobre o seu próprio eixo de deslocamento. Todos os meus livros contém esse núcleo. Em alguns dos meus romances, acho que de alguma maneira em todos eles, tento buscar um entendimento do que se passa com os homens que trocam a sua terra por outra e que – é minha percepção – lá no fundo de si mesmos perdem a que tinham e não conquistam a outra. Isso a partir de minhas vivências junto aos baianos que foram para São Paulo.

Os que migravam do Junco, digo, de Sátiro Dias, se instalavam em São Miguel Paulista, na periferia da cidade. Quando chegava o mês de junho, eles pegavam uma sanfona, um zabumba e um triângulo e iam para os botequins, para comemorar os famosos santos do mês, como se estivessem na Bahia. A vizinhança chamava a polícia, que chegava e os revistava. Assim que a polícia ia embora, pediam um rabo-de-galo, despejavam um pouco para o santo e diziam: “Eles estão na sina deles e nós na nossa. Vamos lá!” E o forró varava o tempo, até a polícia voltar. E quando cheguei àquelas bandas, todos me perguntavam: “Sabe dizer se está chovendo por lá?” Então entendi tudo: se dissesse que sim, muitos pegariam a estrada de volta.

Eis aí o substrato de romances como Essa Terra, que é a trágica história de uma viagem de regresso às origens. Carta ao Bispo e Adeus, Velho seguem a trilha do ir-e-vir, só que com personagens procurando um lugar dentro do mapa da Bahia mesmo. Em Adeus, Velho o deslocamento é do interior para a capital, depois do pólo petroquímico, da insdustrialização do estado, com novas oportunidades de trabalho, que reduzem os fluxos migratórios para o Sul.

Balada da Infância Perdida é essa Bahia  nas paredes de um quarto em Copacabana. Inspirado num poema de Garcia Lorca – Balada da pracinha -, é a história de um desfile de crianças vestidas de azul e branco levando os anjinhos para o céu – ou seja, os caixõezinhos azuis. Isso às 5 horas da manhã, com um narrador de porre, com um olho na parede e outro no despertador. Nessa parede desfilam 25 anos da história do Brasil contemporâneo. É um delírio.

Tanto quanto há algo de delirante em Um táxi para Viena d’Áustria, que tem por cenário uma esquina de Ipanema, e por ingredientes a violência urbana e o desemprego, na era Collor, pré-globalização. E mais: uma banda com Mozart ao piano, Art Blakey à bateria, Charlie Parker ao saxofone, Miles Davis ao trompete, nosso Baden Powell ao violão, Charles Mingus no contrabaixo e Sigmund Freud ao reco-reco. Todos regidos pelo próprio Deus, em pessoa. E a decretação da morte de todos os escritores do mundo, incluindo também a entrega dos restos mortais de Dostoiévski aos urubus de Niterói. Tanto na Balada, como no Táxi, os personagens centrais são nordestinos. E cada um, à sua maneira, está às voltas com o seu deslocamento.

Queria aqui falar da minha ligação com a música, que vem da minha infância, quando o Jazz de Inhambupe ia tocar na missa solene e, à noite, no baile do Mercado do Junco. E depois, na adolescência, ouvi muito todos aqueles maravilhosos e inesquecíveis vidas-tortas da minha terra, que ficavam na calçada da igreja tocando para a Lua ou improvisando bailes, para animar a moçada. O Junco (naquele tempo Sátiro Dias ainda era o Junco, um distrito de Inhambupe) exportou muitos músicos para o Sul. Em São Paulo, peguei muita carona na carava de um trompetista meu conterrâneo, chamado Zé Bispo, que tocava nos bailes de São Miguel Paulista, Itaquera, Ermelino Matarazzo e outras cidades periféricas. Esse foi um dos que voltaram, não para se matar, como o personagem de Essa Terra, mas para morar em Feira de Santana, de onde arrasta a sua banda aí pelo interior. Mas há um outro, o Zito de Zé de Satu, o professor de violão e maestro Zito de Oliveira, que assentou praça em Presidente Prudente, no Oeste paulista, montando uma escola de música também em Presidente Venceslau, e que ainda faz a festa até às margens do rio Paraná. E há ainda  o João do Bolero, cujo cavaquinho exerce seus domínios lá para os lados de Marília, também no Estado de São Paulo, derretendo os corações paulistas com os sons do Junco. Tenho um irmão, aqui em Salvador, chamado José Raineldes, Nem para a família, que é profissional do baixo elétrico. E um filho baterista, para desespero dos meus vizinhos. Eles compensam um pouco a minha frustração de só tocar o teclado das letras. Mas antes que eu me esqueça: foi o trompete de Miles Davis, um gigante do jazz, que inspirou um de meus títulos: Um Cão Uivando para a Lua. E o piano de Thelonius Monk sempre dá uma certa cadência às minhas mal-traçadas linhas, que batuco dando razão a Caetano Veloso: “Como é bom poder tocar um instrumento!”

Foi a lembrança de uma música, e as minhas memórias da chuva – com licença do poeta Ruy Espinheira Filho – que me levaram a escrever O Cachorro e o Lobo. A música se chama Ne me quites pas e é do belga Jacques Brel. A chuva veio num domingo. Cheguei à minha janela em Copacabana e senti o cheiro da terra, com as primeiras gotas caindo no terreno baldio ao lado do prédio onde moro. Os passarinhos cantavam. As árvores se eriçavam. Então me lembrei de Jacques Brel, quando cantava: “Eu te oferecerei, pérolas de chuva, vindas de um país, onde nunca chove.” Então pensei: “Este país é o meu. E se chama Junco.” E me lembrei de que, quando chovia no sertão, os homens vestiam terno branco e rolavam na lama, loucos de alegria. Corri para o teclado e bati nele: “Eis aí. Eis-me de regresso a essa terra de filósofos e loucos, a começar pelo meu pai, que disso tudo tem um pouco.” Pronto, foi como se o espírito de Totonhim, o narrador de Essa Terra que partiu para São Paulo, aos 20 anos, houvesse baixado em minhas mãos, entrando em cena e pedindo para voltar às páginas, ou seja, para fazer uma viagem de regresso à Bahia. O narrador aqui rendeu-se ao apelo do personagem e deu-lhe estrada. O que significou uma volta da volta. E se as coisas não tivessem acontecido deste modo, eu não teria voltado também, para ter o prazer de estar aqui com vocês.

Para terminar, queria lembrar que se a volta de Nelo, o personagem de Essa Terra, foi um desencontro com final trágico, a de seu irmão Totonhim foi um reencontro. Ou por outra: a recuperação da sua memória afetiva, do seu passado, de sua história, de si mesmo. Essa é a diferença entre um livro e outro, entre esse romance de agora e os outros, o que nosso amigo Ildásio Tavares percebeu. É como se o Totonhim afinal me fizesse compreender que esse mundo está mesmo perdido, vai ver ele até já acabou faz tempo, e o que nos resta a fazer é cuidar bem dos nossos afetos.

Na mesma medida digo a vocês: muitíssimo obrigado pela atenção afetuosa com que me ouvem nesta Universidade Federal da Bahia. E fico por aqui, por não ter mais palavras para lhes agradecer.

Entrevista para a Revista Iararana

Entrevista para a Revista Iararana n° 6, de Salvador, BA. Por Antônio Brasileiro, Cid Seixas, Aleilton Fonseca e Rubens Pereira

Antônio Brasileiro – Você é simpaticíssimo, cativa as pessoas, é tido como uma pessoa que incentiva os outros. Isto é uma característica muito pessoal, ou se deve ao fato de você ter nascido no Junco, ter vivido a infância no interior da Bahia?

Torres – Jamais pensei ser visto assim, com tanta simpatia. É possível que eu seja um tanto gregário, por ter nascido no sertão, numa família muito grande – eu sou o primeiro de uma fila de onze irmãos, só de tios do lado materno eram dezessete. E aquela criação na vida rural, ao natural… O trabalho tinha um sentido coletivo. Quando eu era garoto, meu pai contratava trabalhadores para trabalhar na lavoura, e eu ia trabalhar junto com eles. Na hora do rancho, sentávamos todos nós debaixo de um pé de umbuzeiro para comer. Os trabalhadores dormiam em nossa casa, nas redes, ou na casa de farinha, onde espalhávamos esteiras. Fui criado assim: todo mundo junto. Isto, de alguma maneira, deve ter tido alguma influência no meu temperamento, no meu comportamento. É uma coisa da experiência humana, das relações de trabalho e convívio. Como era que se fazia farinha? Era todo mundo junto, raspando mandioca e proseando. Como era um mutirão para fazer a casa de um compadre? Era todo mundo junto. Como era a despalha do milho? Uma festa! Bater o feijão? Era todo mundo batendo e cantando! Tudo era um trabalho comunitário na minha infância. E hoje sinto falta disso, porque nosso tempo urbano e cosmopolita é um tempo muito individualista.  cada um na sua. A minha infância me marcou muito. E eu me reencontrei com ela ao fazer o livro Meu Querido Canibal. Quando fui à aldeia dos Guaranis, lá na Serra da Bocaina, no município de Angra dos Reis, levei um susto, ao ver aqueles indiozinhos brincando com gravetos lá em cima daquela pirambeira, mães com criancinhas sujinhas e nuas. Puxa, eu fui índio e não sabia! E quando eu cheguei ao platô, onde a turma da aldeia se reúne, eu vi que os índios estavam levantando uma casa de reza. Era igualzinho ao Junco. Quer dizer, eu fui tribal e não sabia. Eu vim de uma aldeia indígena e não sabia. Fui descobrir isso ao pesquisar para escrever o livro.

Cid Seixas – Quando vi anunciar Meu querido canibal, eu esperava um romance, devido ao hábito de lê-lo como um romancista. O que o levou a não fazer disto um romance, mas sim uma crônica histórica?

Torres – Levei muito tempo para encontrar o meu recorte na história. Primeiro,  pesquisei muito. Eu tinha um grande personagem nas mãos. E, como romancista, a primeira coisa que me encanta é o personagem. E Cunhambebe é tão forte que eu não precisava “ficcionalizá-lo.” Mesmo assim, tive de me valer de estratégias de romancista para preencher os vazios, os buracos da história, não só a de Cunhambebe como a da Confederação dos Tamoios. Ora, como os índios não tinham escrita, não deixaram registros de sua própria história. Aí temos que nos contentar com os relatos dos brancos, que reduziram a existência de Cunhambebe nessa terra a notas de pés-de-páginas ou verbetes mínimos. Referem-se a ele como como o tipo acabado do selvagem mais repelente. Então, eu entrei na história com muita paixão, em busca das trilhas do guerreiro Cunhambebe, sem medo do meu próprio delírio, do que iam dizer do meu delírio. É uma história em que eu  procurei soltar a mão entre o delírio e a indignação. A indignação pelos fatos que eu ia encontrando, e pelo esquecimento, mais do que esquecimento, o fato de terem relegado esta história, de a terem colocado debaixo do tapete. Porque ninguém se preocupou em trazer a história do nativo para a festa dos quinhentos anos. Agora, alguns amigos, como você, tinham a expectativa de que fosse um romance. Alguns estão lendo como um romance, outros lêem como uma crônica, outros lêem como uma biografia. Eu vejo no jornal os comentários. Uns dizem que é uma biografia romanceada ou um romance biografado. Outros dizem que eu ficcionalizei a história e historicizei a ficção. Agora, o que eu te digo é o seguinte: fiz o que o meu coração e o meu querido canibal, o grande chefe Cunhambebe, mandaram.

Aleilton Fonseca – A história tende a fechar no factual, no registro da realidade, enquanto a ficção privilegia a abertura. Como o romancista que se serve da história como matéria equaciona este problema?

Torres – Meu querido canibal foi produto de uma obsessão. Eu fiquei obcecado pelo grande guerreiro Cunhambebe, que era um gigante, tinha quase dois metros de altura e se orgulhava de ter nas veias o sangue de mais de cinco mil inimigos. Eu me fascinei por este tipo. O meu fascínio veio da percepção que eu tive, que virou um mote para mim. Eles, os índios, não tiveram escolha. Era a escravidão ou a morte. E o fato deste país ter tido um guerreiro que levou todo o seu povo a morrer de pé para não se deixar escravizar, se tornou uma questão emblemática para mim. Comecei a me perguntar se não é de Cunhambebes que este país precisa. Embarquei neste delírio do herói. Encontrei nele as possibilidades para desenvolver um relato. A outra questão é a seguinte: eu sempre busco o sonho de não ser um sambista de uma nota só. O fato de eu ter feito determinados romances em uma determinada linha não significa que eu vou ficar a vida inteira trilhando aquela picada. Porque pra mim não vai ter graça, não é para o leitor não, é pra mim, como criador. Eu quero experimentar relatos variados. Eu começo o livro: “Era uma vez um índio”. Pronto. Já coloquei o livro em tom de fábula. Isto vai me levar a ir buscar as fábulas, os mitos e as lendas dessa história. Porque a maioria dos livros que eu li não me ajudaram em nada. Foram livros importantes, que explicam a história, com interpretações brilhantes, mas cadê as fábulas, os mitos?  Aí que foi o meu trabalho. O de fazer ligações, levantar hipóteses, criar brincadeiras até, para construir este personagem. Foi aí que entraram as estratégias do romancista para cobrir os vazios da história e criar um relato.

Brasileiro – Você tem sua raízes na Bahia, mas isto não impede que você tenha aberto o coração para escrever um livro sobre o Rio de Janeiro. O que o levou a escrever este livro, amorosamente?

Torres – O Rio de Janeiro é uma cidade adorável. Cheguei lá depois de ter rodado o mundo, ter vivido muito tempo em São Paulo, três anos em Portugal, corrido a Europa. Quando finalmente cheguei ao Rio, como última etapa de uma longa perigrinação, senti que essa cidade aceita bem todo o país. Os melhores cronistas do Rio – depois do carioca Machado de Assis, bem entendido – são o capixaba Rubem Braga, o pernambucano Antônio Maria, os mineiros Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos, e outro capixaba, Carlinhos de Oliveira. O Rio é a cidade com o maior número de escritores de outros estados. Dos baianos João Ubaldo e Marcos Santarrita ao amazonense Márcio Souza, sempre cabe mais um. E quem instala a sua tenda no Rio, acaba um dia por cantar a cidade, seja em verso, seja em prosa. Fui convidado pelo RioArte, instituto da Secretaria Municipal de Cultura, para escrever um livro sobre o Centro da cidade, para uma coleção chamada Cantos do Rio. Topei. A primeira fornada da coleção tinha o Carlos Heitor Cony, escrevendo sobre a Lagoa; Aldyr Blanc, sobre Vila Isabel; José Almino, sobre o Baixo Gávea; e Geraldo Carneiro, sobre o Leblon. Como já tenho um longo convívio com a cidade, na qual nasceram minha mulher e meus filhos, e como de fato gosto muito do Rio, não foi difícil cumprir a tarefa. E a reação dos leitores cariocas a esse livro foi a melhor possível.

Rubens Pereira – Seu trabalho sobre o centro do Rio surpreendeu os próprios cariocas, no sentido de explicitar aspectos que o olhar do carioca não enxergava mais. Foi um trabalho de estrangeiro, por ser de uma pessoa que não é carioca de nascença?  Você se sente estrangeiro em algum lugar?

Torres –   Deve haver alguma razão muito forte nisto, que eu acho que responde a você. Foi a minha identificação total quando eu li O estrangeiro, de Albert Camus. Eu acho que o criador, o artista, se sente estrangeiro. Mas, de repente, você passeia por um país que, por ser grande demais, cria uma solidão enorme. E as pessoas estão sempre se deslocando de um lugar para outro, e vivendo numa espécie de não-lugar. O baiano que saiu do Junco e foi para São Miguel Paulista, tal qual eu fui, ele estava lá fisicamente, o corpo dele estava lá, mas a cabeça dele estava no Junco. Eu nunca me esqueço de quando eu cheguei lá na primeira vez, em São Miguel Paulista, e a primeira pergunta que me fizeram (os conterrâneos) foi: “Você sabe se está chovendo por lá?”. Eu sabia qual era o resultado da minha resposta. Se eu dissesse: “Tá chovendo”,  nego voltava (para o Junco). E é nesta piração de ir e vir que acabei, ao longo do tempo, tendo o insight para criar o personagem Nelo de Essa terra, o que vai, vem, e se mata. Por quê? Porque ele ficou solto no espaço, num entre-lugar, que é uma teoria pós-moderna que está rolando, mas que eu acho que meus personagens se encaixam perfeitamente nesta teoria. Faz pouco tempo o cineasta Paulo Thiago me ligou, ele queria fazer Essa terra   no cinema, acabou não fazendo… Ele me disse: “Eu reli Essa terra em Miami, e vi teus personagens lá, eles não estão mais em São Paulo, eles já estão em Miami”. Porque aí começa a outra questão da pós-modernidade, que é a fuga do brasileiro para fora do Brasil, um fato absolutamente novo. Este estrangeiro, que era um estrangeiro psicológico, está virando um estrangeiro real.

Aleilton – O seu romance Essa terra é perpassado pela angústia e o fracasso no ir e vir do sertão para ao centro-sul, vividos pelo personagem Nelo. Vinte anos depois este mesmo cenário retorna, em O cachorro e o lobo,  romance  perpassado pelo ternura da compreensão, da resposta, da experiência. O que representou para o homem e o escritor Antônio Torres a volta ao tema e seu cenário?

Torres – É difícil dizer porque eu voltei. Mas são as buscas permanentes do romancista. Quando eu terminei Essa terra eu me senti muito mal. Não foi nem quando eu terminei. Mais ou menos na primeira metade dele eu fui parar na psicanálise. Eu fiquei apavorado com aquele suicida que havia no livro. E escrevendo na primeira pessoa – e eu costumo escrever na primeira pessoa não porque seja uma narrativa autobiográfica, mas para eu entrar mais no personagem, para eu grudar mais nele. E neste grudar no personagem, eu comecei a me apavorar com aquele suicida. E Essa terra também tinha um quadro de época muito pesado, da ditadura militar, um país muito polarizado, todo mundo vivendo aqueles impasses, luta armada, prisões, assassinatos, todo um quadro político nada suave. Já em O cachorro e o lobo o tempo não era mais leve mas, formalmente, vivemos numa democracia. E, por outro lado, entra a questão da maturidade. Você vai tendo umas certas compreensões de vida. Com os impasses e transes de nosso tempo, você acaba concluindo de alguma maneira que o que nos resta é a salvação pelo afeto. Como se o mundo já tivesse acabado mesmo, e como se eu estivesse andando por ele como mais um zumbi martirizado no tempo. Então eu quero encontrar as pessoas, bater um papo com elas sobre as durezas da vida, mas vamos nos divertir um pouco, vamos contar uma piada, vamos relaxar um pouco. Porque não há muito mais a fazer. Eu penso que tem uma saída por aí. Essa terra é um livro de desencontro, e O cachorro e o lobo é um reencontro. Há um reencontro do personagem, quando ele chega cheio de fantasmas, todo assustado. Mas, com o passar do dia – o livro se passa num dia, ele gira com o movimento do sol, manhã, tarde e noite –, é como se este personagem  fosse recuperando a sua memória, sua afetividade, sua história, a história daquele lugar, e isto lhe faz bem. Mas vocês estão mais preparados pra dizer sobre essas coisas do que o autor, até porque eu parto do princípio de que, quando o autor explica seu trabalho, corre o risco de reduzi-lo.

Rubens – Nesta questão filosófica do ter e do ser, já foi dito que “os artistas são a antena da raça”. Eu queria saber se novas questões filosóficas não surgiriam nesses novos tempos de mundo virtual, da informática, da multiplicação de informações? Será se a pergunta sobre o ser e o ter não se deslocaria para o “tornar-se e o transformar-se”? Como suas antenas, enquanto artista, captam o novo mundo?

Torres – A questão básica do artista me parece que é a busca do autoconhecimento. Essa busca leva à abertura de novas fronteiras dentro de si mesmo. Por esse caminho pode-se chegar ao “tornar-se e transformar-se.” Nestes tempos de pragmatismo desbragado, seria isto uma ilusão de filósofos e loucos? Certo, vivemos uma era mais da técnica do que da arte, e, menos ainda, da filosofia. Tenho um amigo que anda desesperado: sua filha decidiu estudar filosofia… logo num tempo deste?, ele reclama. Bom, creio que ainda é cedo para sabermos que novas questões filosóficas surgirão do mundo virtual. Esse mundo ainda não foi capaz de dimensionar o seu próprio alcance, de criar regras de competividade, legislação etc. Mas já produziu mudanças de mentalidades. E um insuportável deslumbramento, diga-se.

Brasileiro – Você esperava o reconhecimento que tem hoje? O que significa isto psicologicamente, em termos de vaidade, de prazer, de auto-estima?

Torres – Escrever foi o meu sonho de criança, lá no Junco, digo, Sátiro Dias. Todo o chão que bati, todos os caminhos que andei, foram em busca de um texto, que só começou a aparecer depois dos trinta, com Um Cão Uivando para a Lua. Foi uma estréia com uma recepção simpaticíssima, calorosa, animadora. Houve até quem achasse que eu não ia agüentar o rojão: com tão entusiástica crítica, logo no primeiro livro, ia tomar um porre e sumir. Só que eu já estava imbuído do espírito de Scott Fitzgerald, o que dizia que o fim de uma tarefa significava o começo de outra. Tanto que quando um repórter (era do Jornal do Brasil) me telefonou dizendo que queria me entrevistar, achei que era algum amigo me passando um trote. Eu estava tão por fora da vida literária que nem sabia que escritor dava entrevista. Eu só queria escrever e publicar para quem quisesse ler. Mas agora estava enredado num novo romance e o telefone tocava sem parar por causa da boa recepção ao primeiro livro. Claro que fiquei vaidoso, e com a auto-estima em alta. Mas não perdi o ritmo e o rumo das horas: mal terminei o primeiro, voltei a trabalhar no segundo, que já estava começado, antes do primeiro. Conto isso para dizer a você, poeta Brasileiro, que o meu trabalho literário tem sido uma construção, tijolo a tijolo. Todos os meus doze livros, cada um a seu tempo, foram bem recebidos. Não posso me queixar. O melhor de tudo é que o interesse pelo meu trabalho não diminuiu, com o passar do tempo. Tenho a impressão que vem crescendo, até. Só posso dizer que isso me dá um certo conforto dentro do quadro da literatura brasileira contemporânea. No entanto queria aqui falar de outra coisa.  Eu acho até que a literatura está um pouco em baixa no mundo, não é só no Brasil, não. Porque o leitor de hoje não é mais aquele leitor que eu fui. Eu não comprava livro por causa de lista de best-seller, nem por televisão, nem por jornal, eu não sabia que tinha resenha! Como é que eu lia em Alagoinhas? Eu ia lá na biblioteca do IBGE catar, num rodapé que tinha lá, o agente do IBGE gostava de mim e me deixava ficar fuçando, e eu ia descobrindo um Tolstoi. Chegou um professor de Geografia, o Carloman Borges – hoje na UEFS -, e me emprestou Jorge Amado, Mar Morto. Achei uma maravilha! Quando eu devolvi ele me deu Angústia, de Graciliano Ramos. Depois me taca um Tolstoi. Aí eu fui despertando o gosto. Quando fui morar em São Paulo comprei toda a obra de José Lins do Rego, no Viaduto do Chá, vendida no chão. Não foi nenhum jornal que me mandou, não foi nenhuma pressão publicitária. Aí eu chego na avenida São João e tem uma coleção chamada “Violão de Rua”, da Editora Civilização Brasileira. Aí descubro Ferreira Gullar, e outros poetas que na época eram muito lidos, como Geir Campos, Ledo Ivo, Moacyr Félix. Então, eu acho que há também uma mudança dos tempos, que a gente está assim meio sem saber para onde vai o bonde desta História. Mas, voltando ao começo, esta coisa de sucesso tem muito de aparência. Sucesso literário no Brasil, para mim, é pura ficção.

PERGUNTA – A recente 15a edição do romance Essa Terra mobilizou a mídia e ampliou o interesse por sua obra. A que você atribui a força desse romance em sua carreira?

Torres – Incrível. O relançamento do Essa Terra, pela Record, está tendo uma repercussão tão grande quanto o seu lançamento, em 1976, pela Ática. Isso é mesmo surpreendente. Até porque existe um tabu de que brasileiro só gosta de novidade, não gosta de reedição. O que mais me surpreende ainda: há uma nova geração de leitores que está descobrindo o livro agora. E o está lendo como se fosse um livro de agora. Já tive provas disso, principalmente em algumas universidades onde tenho feito palestras. Não sei, sinceramente, a que atribuir a força do livro. Mas alguma ele deve ter. A força da terra, talvez. A força do sertão, com certeza.

PERGUNTA – O que o Prêmio Machado de Assis para o conjunto da obra, que lhe foi conferido pela Academia Brasileira de Letras, em 2000, representa para sua condição de escritor?

Torres – Não há como negar: os prêmios literários mais respeitados do Brasil são os da ABL. E o Prêmio Machado de Assis é o mais importante deles, sem dúvida. Também, pudera: o prêmio tem o nome do escritor que fundou a instituição que o patrocina, a Casa de Machado de Assis! Senti o peso dessa premiação ao recebê-la, ano passado. Diria que, no plano nacional, foi o maior incentivo que recebi até agora à minha carreira de escritor. No internacional, foi o título de Chevalier des Arts e des Lettres, que me foi concedido pelo governo francês, em 1998, pelos meus livros publicados na França até então (“Essa Terra” e “Um táxi para Viena d’Áustria”). É isso aí: reconhecimento nunca é demais e faz bem à saúde.