“Prezadíssimo Carlos Ribeiro: reescrevi tudo. Enxuguei tudo, reduzindo o texto praticamente à metade, tentando torná-lo publicável. Do jeito que estava – longo, repetitivo, chato – parecia que dei aí a minha pior palestra de todos os meus anos de palestrante nacional e internacional. Menino, achei um horror. De me matar de vergonha. Espero que tenha melhorado, pelo menos um pouquinho. Ainda assim, me sinto devedor de uma palestra decente para os meus conterrâneos. Outra coisa: acabo de escrever uma crônica sobre Jorge Amado, sob encomenda do “site”do Banco do Brasil, que está disponível no seguinte endereço: www.cultura-e.com.br(depois busque orbita e depois estado da arte.) Se achar, e achar que vale a pena, por favor, peça aos amigos para darem uma olhada (Aleilton, Gerana e quem mais possa se interessar). Bom, já são 4 da matina de domingo. Essa revisão acabou sendo uma refação. Deu um trabalho do cão. Um abração e obrigadão. Antônio Torres.”
Com a palavra o escritor Antônio Torres
Data: 13/06/97
Em primeiro lugar, meus agradecimentos a Ildásio Tavares pela brilhante apresentação. Realmente, ele tem razão: depois da sua fala não tenho muito mais a dizer (risos).
Bem, quero agradecer às instituições baianas que tornaram possível essa minha presença aqui em Salvador. Refiro-me à Fundação Casa de Jorge Amado e à Universidade Federal da Bahia. E, claro, a todos vocês.
Fiquei muito contente com o que o meu querido Ildásio Tavares falou sobre O Cachorro e o Lobo, ao dizer que é um momento muito diferente na minha literatura. Acrescentaria que este romance coincide com um momento diferente na minha vida. É a idade avançando e, quem sabe, a maturidade chegando.
Permitam-me contar-lhes a curiosa reação de Luciana Vilas Boas, a diretora editorial da Record, logo que o leu, ainda nos originais. Ela me telefonou para perguntar como era que eu tinha conseguido criar um personagem “tão bem resolvido.” Se eu era uma pessoa “bem resolvida.” Respondi-lhe que certamente que não; que talvez o personagem estivesse na contra-mão dos meus próprios impasses pessoais. A verdade, porém, é que quando escrevi o livro, ele me deu, em primeiro lugar, muito prazer, e, em segundo, me trouxe um certo apaziguamento. Assim que o terminei, enviei uma cópia pra Paris, para Alice Raillard, que é tradutora de Jorge Amado e conselheira para a língua portuguesa, na editora Gallimard. E ela me mandou uma carta tão bonita, tão entusiástica, que eu pensei que não precisava mais publicar o livro: aquela carta já me bastava. Andei um tempão com ela no bolso, já me dando por satisfeito.
Deixei O Cachorro e o Lobo na gaveta e parti para outra empreitada: a de escrever um livrinho de encomenda para uma coleção chamada Cantos do Rio, do Rio-Arte, instituto da Secretaria de Cultura do Município do Rio de Janeiro. A nova tarefa resultou num volumezinho intitulado O Centro das nossas desatenções, que me fez bater perna pelo centro da cidade, vasculhando-o em seus becos, bares, espaços culturais, legados históricos e, até, nos cocorutos de seus arranha-céus. Perigrinei também pelas ilhas, que são marcos da história do Rio: a de Villegagnon, a das Cobras e a Fiscal – esta, a do famoso baile que derrubou o Império. Além desse corpo-a-corpo, também mergulhei num trabalho de pesquisa que, passo a passo, ia se revelando fascinante. Tanto que esqueci O Cachorro e o Lobo por uns tempos. Até porque o livro sobre o Centro do Rio era uma encomenda com prazo de entrega e publicação.
Durante as minhas pesquisas percebi que, assim como eu, a maioria dos cariocas andam pelo Centro da cidade sem dar a menor atenção à história que existe nele, e que é riquíssima. Daí ter me ocorrido esse título de O Centro das nossas desatenções. E que colou. E olhem que eu temia o que os naturais do Rio de Janeiro iam dizer. “Como que um baiano se atreve a contar a nossa própria história?” Para minha surpresa, a recepção foi extremamente simpática. Até hoje continuo recebendo caixas e caixas de livros ensebados, alfarrábios caindo aos pedaços, com pedidos de leitores para que eu escreva mais sobre o Rio. Logo, o resultado foi altamente compensador.
Se O Cachorro e o Lobo foi apaziguador em relação ao meu passado de retirante, o livro sobre o Centro do Rio poderá me abrir perspectivas futuras, pois me deixou fascinado pelo estudo da História, e, sobretudo, o estudo da História das nossas cidades, como Rio de Janeiro, Salvador e Recife, por exemplo. Ainda não sei aonde esse novo interesse vai me levar, literariamente falando. Mas, para já, concluo que o conhecimento da História é fundamental para um romancista.
E já que o escritor aqui está com a palavra, permitam-me mostrar como a história que escrevi sobre o Centro do Rio se inicia. Porque as linhas que vou ler tem muito a ver com a trajetória deste narrador que vos fala – um baiano que passou boa parte da vida se descolando de um lugar para outro: do Junco para a Alagoinhas, depois Salvador, São Paulo, Lisboa, Porto e outras Oropas e, finalmente, Rio de Janeiro. Vejamos:
“Comecemos pelo aeroporto Santos Dumont, onde um dia um rapaz de vinte anos chegou, olhou a cidade de longe e foi embora. Eu me lembro: era uma bela tarde de janeiro, o mês do Rio. Céu de brigadeiro. O esplêndido azul de Machado de Assis. O azul demais de Vinícius de Moraes. Ano: 1961. O passageiro estava em trânsito. Vinha da Bahia com destino a São Paulo. Desceu aqui para fazer uma conexão, depois de cinco horas preso numa cadeira de uma geringonça ensurdecedora e vagarosa, relíquia aeronáutica da Segunda Grande Guerra. Um pau de arara do ar chamado kurtis commander que, mal avistava uma pista de aterrissagem, ia baixando.
Descer no Rio havia sido uma bênção. Para os seus ouvidos, suas pernas, seus olhos. Assim o vejo: olhando a cidade por trás dos vidros que o enjaulavam no saguão do aeroporto, enquanto aguardava a chamada para o embarque. Azul era também a cor do seu paletó. Ele estava convenientemente vestido para sua primeira viagem de avião. Trajava até uma gravata vermelha, sobre uma camisa branca. E seus sapatos espelhavam, de tão bem lustrados. Numa das mãos, portava uma maleta com tudo que possuía de seu, aos 20 anos – o que incluía meia dúzia de livros -, além da roupa do corpo. Já que não podia sair, contentou-se em olhar à distância a cidade que só conhecia de prosa e verso, cinema e canções, e tudo nela, o que vinha dela, o fascinava. E dava medo. Imaginava-a fora da rota dos imigrantes, inatingível para principiantes. O Rio era a Corte – dos sabidos e malandros. Suas artes e letras, sua natureza deslumbrante (“ Deus fez o mundo em sete dias, dos quais tirou um para fazer o Rio de Janeiro,” dizia a voz de ouro de Luiz Jatobá, num documentário de Jean Manzon), o atraíam. Mas a manchete do jornal comprado na banca do aeroporto o amedrontava. Era sobre uma operação de extermínio chamada chamada de mata-mendigos. E ali estava ele, entre duas visões da cidade: uma sedutora, outra assustadora. Teve vontade de ficar. A chamada para o vôo o levou em frente. Tinha que ir para São Paulo. Assim estava escrito na sua passagem. Era um baiano do interior, um tímido roceiro, e estava indo para a locomotiva da nação, onde sempre haveria de cabermais um. Voltaria ao Rio um dia, para vê-lo de perto, entrar nele, conhecê-lo nas solas dos seus sapatos, se para tanto não lhe faltasse coragem. O Rio não era uma cidade para capiaus, tabaréus da roça.
Trinta e cinco anos depois, um passageiro diário das linhas urbanas de Copacabana-Centro, Centro-Copacabana, vai retornar ao Santos Dumont. A pé. Para tentar descobrir o que foi mesmo que aquele garoto interiorano viu – e se por um momento poderiam voltar a ser a mesma pessoa -, ainda capaz de ver a cidade com um olhar de novidade. E vai chegar moído. Esbodegado. Como se tivesse batido nos cascos a longa estrada Bahia-São Paulo, embora seu fique logo ali. Aqui mesmo, no miolo do Centro, o número 110 da avenida Rio Branco, entre a rua do Ouvidor e a 7 de Setembro, onde era o Jornal do Brasil.”
Até aí, não é ainda a História do Rio que está no centro da narrativa, mas a do narrador, que se move sobre o seu próprio eixo de deslocamento. Todos os meus livros contém esse núcleo. Em alguns dos meus romances, acho que de alguma maneira em todos eles, tento buscar um entendimento do que se passa com os homens que trocam a sua terra por outra e que – é minha percepção – lá no fundo de si mesmos perdem a que tinham e não conquistam a outra. Isso a partir de minhas vivências junto aos baianos que foram para São Paulo.
Os que migravam do Junco, digo, de Sátiro Dias, se instalavam em São Miguel Paulista, na periferia da cidade. Quando chegava o mês de junho, eles pegavam uma sanfona, um zabumba e um triângulo e iam para os botequins, para comemorar os famosos santos do mês, como se estivessem na Bahia. A vizinhança chamava a polícia, que chegava e os revistava. Assim que a polícia ia embora, pediam um rabo-de-galo, despejavam um pouco para o santo e diziam: “Eles estão na sina deles e nós na nossa. Vamos lá!” E o forró varava o tempo, até a polícia voltar. E quando cheguei àquelas bandas, todos me perguntavam: “Sabe dizer se está chovendo por lá?” Então entendi tudo: se dissesse que sim, muitos pegariam a estrada de volta.
Eis aí o substrato de romances como Essa Terra, que é a trágica história de uma viagem de regresso às origens. Carta ao Bispo e Adeus, Velho seguem a trilha do ir-e-vir, só que com personagens procurando um lugar dentro do mapa da Bahia mesmo. Em Adeus, Velho o deslocamento é do interior para a capital, depois do pólo petroquímico, da insdustrialização do estado, com novas oportunidades de trabalho, que reduzem os fluxos migratórios para o Sul.
Balada da Infância Perdida é essa Bahia nas paredes de um quarto em Copacabana. Inspirado num poema de Garcia Lorca – Balada da pracinha -, é a história de um desfile de crianças vestidas de azul e branco levando os anjinhos para o céu – ou seja, os caixõezinhos azuis. Isso às 5 horas da manhã, com um narrador de porre, com um olho na parede e outro no despertador. Nessa parede desfilam 25 anos da história do Brasil contemporâneo. É um delírio.
Tanto quanto há algo de delirante em Um táxi para Viena d’Áustria, que tem por cenário uma esquina de Ipanema, e por ingredientes a violência urbana e o desemprego, na era Collor, pré-globalização. E mais: uma banda com Mozart ao piano, Art Blakey à bateria, Charlie Parker ao saxofone, Miles Davis ao trompete, nosso Baden Powell ao violão, Charles Mingus no contrabaixo e Sigmund Freud ao reco-reco. Todos regidos pelo próprio Deus, em pessoa. E a decretação da morte de todos os escritores do mundo, incluindo também a entrega dos restos mortais de Dostoiévski aos urubus de Niterói. Tanto na Balada, como no Táxi, os personagens centrais são nordestinos. E cada um, à sua maneira, está às voltas com o seu deslocamento.
Queria aqui falar da minha ligação com a música, que vem da minha infância, quando o Jazz de Inhambupe ia tocar na missa solene e, à noite, no baile do Mercado do Junco. E depois, na adolescência, ouvi muito todos aqueles maravilhosos e inesquecíveis vidas-tortas da minha terra, que ficavam na calçada da igreja tocando para a Lua ou improvisando bailes, para animar a moçada. O Junco (naquele tempo Sátiro Dias ainda era o Junco, um distrito de Inhambupe) exportou muitos músicos para o Sul. Em São Paulo, peguei muita carona na carava de um trompetista meu conterrâneo, chamado Zé Bispo, que tocava nos bailes de São Miguel Paulista, Itaquera, Ermelino Matarazzo e outras cidades periféricas. Esse foi um dos que voltaram, não para se matar, como o personagem de Essa Terra, mas para morar em Feira de Santana, de onde arrasta a sua banda aí pelo interior. Mas há um outro, o Zito de Zé de Satu, o professor de violão e maestro Zito de Oliveira, que assentou praça em Presidente Prudente, no Oeste paulista, montando uma escola de música também em Presidente Venceslau, e que ainda faz a festa até às margens do rio Paraná. E há ainda o João do Bolero, cujo cavaquinho exerce seus domínios lá para os lados de Marília, também no Estado de São Paulo, derretendo os corações paulistas com os sons do Junco. Tenho um irmão, aqui em Salvador, chamado José Raineldes, Nem para a família, que é profissional do baixo elétrico. E um filho baterista, para desespero dos meus vizinhos. Eles compensam um pouco a minha frustração de só tocar o teclado das letras. Mas antes que eu me esqueça: foi o trompete de Miles Davis, um gigante do jazz, que inspirou um de meus títulos: Um Cão Uivando para a Lua. E o piano de Thelonius Monk sempre dá uma certa cadência às minhas mal-traçadas linhas, que batuco dando razão a Caetano Veloso: “Como é bom poder tocar um instrumento!”
Foi a lembrança de uma música, e as minhas memórias da chuva – com licença do poeta Ruy Espinheira Filho – que me levaram a escrever O Cachorro e o Lobo. A música se chama Ne me quites pas e é do belga Jacques Brel. A chuva veio num domingo. Cheguei à minha janela em Copacabana e senti o cheiro da terra, com as primeiras gotas caindo no terreno baldio ao lado do prédio onde moro. Os passarinhos cantavam. As árvores se eriçavam. Então me lembrei de Jacques Brel, quando cantava: “Eu te oferecerei, pérolas de chuva, vindas de um país, onde nunca chove.” Então pensei: “Este país é o meu. E se chama Junco.” E me lembrei de que, quando chovia no sertão, os homens vestiam terno branco e rolavam na lama, loucos de alegria. Corri para o teclado e bati nele: “Eis aí. Eis-me de regresso a essa terra de filósofos e loucos, a começar pelo meu pai, que disso tudo tem um pouco.” Pronto, foi como se o espírito de Totonhim, o narrador de Essa Terra que partiu para São Paulo, aos 20 anos, houvesse baixado em minhas mãos, entrando em cena e pedindo para voltar às páginas, ou seja, para fazer uma viagem de regresso à Bahia. O narrador aqui rendeu-se ao apelo do personagem e deu-lhe estrada. O que significou uma volta da volta. E se as coisas não tivessem acontecido deste modo, eu não teria voltado também, para ter o prazer de estar aqui com vocês.
Para terminar, queria lembrar que se a volta de Nelo, o personagem de Essa Terra, foi um desencontro com final trágico, a de seu irmão Totonhim foi um reencontro. Ou por outra: a recuperação da sua memória afetiva, do seu passado, de sua história, de si mesmo. Essa é a diferença entre um livro e outro, entre esse romance de agora e os outros, o que nosso amigo Ildásio Tavares percebeu. É como se o Totonhim afinal me fizesse compreender que esse mundo está mesmo perdido, vai ver ele até já acabou faz tempo, e o que nos resta a fazer é cuidar bem dos nossos afetos.
Na mesma medida digo a vocês: muitíssimo obrigado pela atenção afetuosa com que me ouvem nesta Universidade Federal da Bahia. E fico por aqui, por não ter mais palavras para lhes agradecer.