Rio de Janeiro, 8 de setembro de 2004
Por Brigitte THIERION
(Estudante de Letras na Universidade de Rennes, França)
Para a complementação de um estudo comparativo dos romances Meu Querido Canibal, de Antônio Torres, e Rouge Brésil, de Jean-Christophe Rufin, sob orientação da professora Rita Godet.
1) – A minha primeira pergunta diz respeito ao seu empenho em contradizer todos os sinais visíveis da História oficial. Será em nome de uma “contra-cultura”? Estaria nisso algo representativo de sua geração?
Antônio TORRES – Vamos por partes. Primeiro: os sinais visíveis da História sempre foram dados de acordo com a ótica dos vencedores, sabemos todos. Também no caso das guerras entre os portugueses e os indígenas brasileiros isso fica bastante claro. Segundo: os índios não dominavam a escrita. Logo, não escreveram, eles mesmos, a sua própria História. Tudo o que sabemos deles é através dos relatos dos brancos, ou seja, dos vencedores. Terceiro: o grande chefe Cunhambebe, o meu querido canibal, teve toda a sua história resumida em verbetes de poucas linhas e notas de pé de página. Os historiadores em geral o trataram “como a expressão mais repelente do selvagem,” ou como o canibal “que se orgulhava de ter nas veias o sangue de mais de 5 mil inimigos, a maioria portugueses.” Ler coisas assim, e perceber, ao longo das minhas pesquisas, que ele na verdade foi o guerreiro que levou o seu povo a preferir morrer de pé, lutando, a se deixar escravizar pelos conquistadores, me instigou bastante a transformá-lo num personagem emblemático. E nisso, radicalizei. Quer dizer: como a História oficial se encarregou de louvar os feitos dos vencedores nestas águas e florestas de sonho, som e fúria, avancei na contra-mão, numa viagem de volta ao passado, para tentar entendê-lo pelo ponto de vista dos vencidos. Essa minha tentativa de desoficialização ou revisão da História certamente traz no seu bojo os ecos da “contra-cultura,” que embasou os movimentos de contestação ao pensamento dominante, aí pelos anos de 1960, e que, sem dúvida, foi significativa para a minha geração. Em princípio, porém, o que me moveu na escritura do Meu Querido Canibal foi a convicção de ter nas mãos um grande personagem ignorado pela História oficial. Além disso, esse personagem, o morubixaba Cunhambebe, foi o protagonista, ao lado de Aimberê (o fundador da Confederação dos Tamoios, cujo comando entregou a Cunhambebe), e outros grandes caciques, das epopéicas lutas de resistência dos “mais velhos do lugar” ao colonizador escravagista recém-chegado. Mergulhei nas pesquisas dessa história mítica e trágica cheio de afeição por esse velho povo e de indignação pela forma como ele foi exterminado, inapelavelmente. E o fiz com vontade de dar o meu grito de guerra para os historiadores: “PERÓS!”
2) – Você retoma o canibal como elemento constitutivo da identidade brasileira. Maria Cândida Ferreira de Almeida, num estudo chamado Tornar-se Outro: o Topos Canibal na Literatura Brasileira, salienta o paradoxo do imaginário brasileiro que retoma uma “auto-identificação que traz a marca da barbárie que toda nação ocidental deseja desvincular de seu povo.” Que pensa dessa afirmação? Como se define em relação ao movimento modernista?
A.T.: – Bela afirmação, essa de Maria Cândida Ferreira de Almeida. Tanto que vou procurar o seu estudo, cuja leitura em muito me enriquecerá, tenho certeza disso. Mas pergunto: quem foi mais bárbaro? O selvagem, com os seus rituais antropofágicos, ou o civilizado europeu que o exterminou, em nome de Deus e de seus interesses? E não vejo como desvincular o canibalismo do nosso imaginário. O Modernismo dos anos de 1920 o pôs em movimento, com um sentido simbólico, a partir da famosa boutade de Oswald de Andrade – “Tupi or not tupi -,” que soou como um grito de independência dos modelos literários importados da Europa. Nos anos de 1930 surge no Brasil – e na esteira do Modernismo – um poderoso ciclo das letras que inclui no seu ideário ético e estético a libertação da escrita da norma lusitana. É então que uma linguagem brasileira, com toda a sua expressividade, de extração popular, se impõe. Estou me referindo aqui à geração de Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rego que, aliás, teve como abridor de caminhos o José Américo de Almeida de A Bagaceira, de 1928. Em tempos relativamente recentes, Glauber Rocha iria canibalizar o cinema de Akira Kurosawa, Roberto Rossellini, o faroeste de John Ford, possivelmente também o Jean-Luc Godard; José Celso Martinez Correia faria o mesmo com o teatro europeu; Tom Jobim canibalizou o jazz e por aí vai. E como fui um garoto que amava William Faulkner e Scott Fitzgerald, vez por outra percebo que os devoro, em algumas páginas da minha modesta lavra.
3) – O peso da História parece insuperável no seu romance. O caos do presente, com a sua força opressiva, impede qualquer projeção do futuro. Em que medida o seu trabalho pode ajudar nesta construção?
A.T: – Se houve um ganho nas comemorações dos 500 anos do descobrimento, ou achamento, do Brasil, em 2000, foi esse: o despertar de um interesse maior pela nossa História. Como se de repente nós, brasileiros, parássemos para nos indagar sobre quem somos e de onde viemos. Uma outra questão fica parada no ar: para aonde iremos? E esta ainda parece irrespondível. Nosso sentimento é o de que vivemos uma realidade de violência ameaçada pelo caos. A terra continua boa e, nela, em se plantando dará tudo, tal qual preconizou Pero Vaz de Caminha, o escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral, o descobridor deste imenso país. O problema é que, mais de 500 anos depois do achamento dos portugueses, o Brasil ainda não se libertou da cobiça dos aventureiros que marcaram a sua História e nos legaram uma mentalidade predatória. Some-se a isso a voracidade antropofágica do capitalismo global, do qual o mundo se tornou refém, e temos aí um quadro inquietante, a impedir, como você diz, qualquer projeção para o futuro. No entanto, ainda acreditamos nisso: “Brasileiro, profissão: esperança.” Acreditamos no nosso potencial econômico, cultural e humano. Estou sendo utópico? “Um mapa mundi que não inclua a utopia não merece ser consultado,” é o que se lê na tumba de Oscar Wilde, num cemitério de Paris. Agora, em que medida o meu modesto trabalho pode ajudar na construção do futuro, é algo que escapa à minha avaliação. O que penso haver proposto em Meu Querido Canibal(tanto quanto em O Nobre Seqüestrador) é uma reflexão do passado para um entendimento do presente e lição para o futuro. Bem, pretensão e água benta nunca fizeram mal a ninguém, diz o povo, sábio por natureza.
4) – O Brasil e a França tiveram sempre relações privilegiadas. Sendo francesa, apreciei muito o “chauvinisme,” ou seja, a sua simpatia marcada, em contraste nítido com a sua aversão pelos colonizadores portugueses. Acha que haveria nisso um “jeito” francês (além do sexo, da farra etc)?
A.T.: – Vi com simpatia o jeito francês de lidar com os indígenas brasileiros nas primeiras décadas do século 16. De acordo com os relatos dos primeiros viajantes, era um jeito diplomático e foi marcado pelo encantamento em relação à terra e ao homem. Mas é preciso levar em conta que os interesses dos franceses, numa primeira fase, eram diferentes dos dos portugueses. Estes, vieram para ocupar o país e dominar os seus habitantes. Os franceses vieram para tratar de negócios, através dos escambos. E caíram na farra. Alguns até nem quiseram regressar à França, preferindo o sistema de vida tribal. Já no século 18, na era do ouro das Minas Gerais, a coisa muda, quando corsários como Jean-François Duclerc e René Duguay-Trouin, a serviço do rei (Luís XIV), enchem o Rio de Janeiro de medo e terror. Passado esse período aterrorizante, o Rio iria ter de novo uma presença simpática de franceses, aqueles que integraram a Missão Artística de 1816, patrocinada por D. João VI, que trouxe o Debret e o Montgny. Este chegou a formar dezenas de engenheiros e legou uma enorme contribuição à arquitetura da cidade. Ainda hoje há franceses que lembram aqueles dos primeiros tempos, sobretudo os dos serviços diplomáticos. Eles acabam criando uma relação tão sincera e intensa com a cidade, que abominam a hora de deixá-la, quando o seu tempo de permanência chega ao fim. De minha parte, convivo muito bem com os franceses, desde quando, aos 24 anos, pisei em Paris pela primeira vez. Era janeiro e eu tremia de frio numa esquina do Quartier Latin. De repente um táxi parou ao meu lado e o motorista abriu a porta. Ao entrar, ele me perguntou de que país eu era. Ao saber que se tratava de um brasileiro, ele começou a dar murros no volante do seu táxi, exclamando: “Brésil! Brésil! Pelé! O sol!” Depois, abaixou o tom da sua voz, dizendo, um tanto lamuriante, que só lamentava que eu tivesse ido do Brasil sem levar o sol. Considerei aquilo uma recepção extraordinária, que me marcaria por todo o sempre. De alguma maneira, o jeito simpático com que os franceses lidam comigo até hoje influenciou no tipo de tratamento que lhes dei, na revisão da história dos índios tupinambás. E quando falo de simpatia estou, naturalmente, incluindo a forma como você, Brigitte Thiérion, estudou este canibal das letras e a ele se dirigiu, através de um simpaticíssimo e-mail. Merci mille fois!
5) – Villegagnon foi uma personagem controvertida. Jean-Christophe Rufin empenha-se em retificar a visão histórica. Qual é o seu sentimento?
A.T.: – Minha boa amiga Solange Parvaux teve a bondade de me pôr à mesa com o Jean-Christophe Rufin, no encerramento da Expolangues de 2002. Então eu disse que nossos livros são complementares. O Rouge Brésil trata dos franceses que vieram para cá, na malfadada aventura da França Antártica. E o Meu Querido Canibal trata dos que estavam aqui – e do encontro entre esses dois povos. O que veio, dominava a escrita e deixou muita história; daí porque o livro do Rufin é gordo. O que estava aqui, não escrevia, portanto, não deixou história; da í porque o meu livro é magro. Agora, posso falar de outra diferença: o dele ganhou o Prêmio Goncourt e vendeu cerca de 1 milhão de exemplares na França, o que com toda certeza deixou o Rufin sorrindo de orelha a orelha, ao conferir os gordos extratos de sua conta bancária. E eu me contentei com o entusiasmo da crítica brasileira, um prêmio nacional, o interesse acadêmico – crescente, diga-se – e uma bela edição na Espanha, neste ano de 2004, e outra já programada em Portugal. Mas, na hora do acerto de contas, até agora só contabilizei magras tiragens, que totalizam uns 12 mil exemplares, em 5 edições brasileiras. E isso ainda não é o pior. O trágico mesmo é que nenhuma editora francesa se interessou em publicá-lo. No entanto, o desempenho do livro, em termos mercadológicos, não chega a ser um fracasso tão grande quanto o de Villegaignon, o vice-almirante bretão que pôs o marco da cidade do Rio de Janeiro, em 1555, ao construir a fortaleza na ilha que hoje tem o seu nome, e onde ele se auto-proclamou vice-rei do Brasil. Ele fracassou em seu intento de fundar aqui uma França americana. Militar austero, empedernido, e homem perturbado, Villegagnon, nos 4 anos em que esteve no Rio, passou a maior parte do seu tempo a desgastar-se insensatamente em querelas religiosas, algumas delas levando-o a desfechos dramáticos, como o assassinato de alguns calvinistas. Deixando-se dominar por suas próprias contradições – ora agia como católico, ora como calvinista -, Villegagnon não só perdeu o controle da sua colônia de cerca de 800 homens, como levou a sua perturbação ao extremo de tratar os seus comandados barbaramente. Ele não produziu nada de útil para a França nestes trópicos. Para o Rio, fez apenas a sua primeira fortaleza, pois dela necessitava, para instalar os seus homens. A única coisa digna de nota a seu favor foi o fato de haver recebido Cunhambebe com honras de chefe de Estado, de rei do Brasil – e por 30 dias. Em resumo, o meu sentimento é este: o Cavaleiro de Malta acabou se tornando, em sua expedição ao Rio, um cavaleiro de triste figura.
6) – A intolerância e o extremismo, em parte responsáveis pelo fracasso da França Antártica, impediram o verdadeiro contato dos franceses com o Novo Mundo. Os conflitos religiosos hoje, como ontem, repetem-se a nível mundial. Como se situa o Brasil em relação a isso?
A.T. – O Brasil se situa nesse contexto de forma tolerante. Civilizada, até. Sendo a maior nação católica do mundo, aceita os que rezam por outros credos sem conflitos. Venho de um Estado, o da Bahia – duas vezes maior do que a França, e os baianos dizem isso de boca cheia -, onde o sincretismo religioso se tornou um dado exponencial da sua cultura, sobretudo no litoral. Naquela vasta região, os ritos afros fazem parte das suas manifestações culturais. Hoje, pelo país a dentro e a fora, assiste-se ao crescimento espantoso das igrejas evangélicas que, pela simplicidade de seus templos, seu assistencialismo e linguagem pragmática – que exime o capitalismo de qualquer sentimento de culpa, no sentido em que incute nos seus fiéis que ganhar dinheiro não é pecado -, tornam-se muito atraentes para as classes menos favorecidas da população. Enquanto isso, a Igreja católica tenta reagir, procurando se adaptar aos novos tempos, através de formas mais populares, digamos assim, para os seus rituais, tradicionalmente solenes, quando não suntuosos. A competição não deixa de ter o seu aspecto mercadológico, para entrarmos nas instâncias contemporâneas. Mas posso afirmar, com total convicção, que as atuais disputas pelo mercado da fé não têm conseqüências drásticas, resultando em mortos e feridos, como acontece pelo mundo, hoje, ou já aconteceu por aqui, no tempo dos índios – os sem fé, sem rei e sem lei -, de Villegagnon e das Inquisições, que no Brasil também fizeram as suas vítimas. Enfim, o que temos aqui é uma competividade religiosa pacífica. Deo gracias ! Amém!