Entrevista com Antônio Torres
Rita Olivieri-Godet (Maître de Conférences de literatura brasileira, Université Paris 8)
Paris, fevereiro de 2002
Entre janeiro e fevereiro 2002, Antônio Torres realizou uma “tournée” na França para a qual contou com o apoio financeiro do Consulado Geral da França no Rio de Janeiro. O premiado escritor brasileiro desenvolveu uma intensa atividade, proferindo palestras, debatendo sua obra com estudantes e especialistas de literatura brasileira em várias universidades francesas (Paris 8, Lille 3, Bordeaux 3, Nantes) e participando de eventos promovidos pela Association Bateau-Brésil de Lyon, com o apoio da Librairie Flammarion e do Espace Culturel Grands Voyageurs, e da mesa redonda na Expolangues organizada pela Association pour le Développement des Etudes Portugaises, brésiliennes, d’Afrique et d’Asie lusophones com a participação do escritor francês Jean-Christophe Rufin, ganhador do prêmio Goncourt 2001, além de conferências-debates na FNAC de Lille e na Librairie La Machine à Lire de Bordeaux.
Por ocasião da conferência-debate em Paris 8 sobre Essa terra e Meu querido canibal, tive oportunidade de lhe dirigir algumas perguntas que serviram de base para a realização dessa entrevista.
Rita Olivieri Godet – Em várias entrevistas você se refere à sua admiração pela obra do escritor americano William Faulkner (1897-1962). Perguntado sobre a existência de uma fórmula a seguir para se tornar um bom romancista Faulkner respondeu : « Noventa e nove por cento de talento…noventa e nove por cento de disciplina…noventa e nove por cento de trabalho. Não se deve estar nunca satisfeito com o que se faz. » Como você se situa em relação a essa fórmula ?
Antônio Torres – O velho Faulkner sabia das coisas e legou-nos uma fórmula indescartável. E foi mais longe ainda quando disse: “Você escreve um livro pensando que vai contar tudo. Depois descobre que não contou nada. Parte para o segundo achando que agora, sim, vai contar tudo. E chega ao final dele com a mesma sensação de antes. Resolve então escrever outro e assim vai, até o fim da vida, sempre achando que ainda não contou tudo.” E é exatamente nisso que está a graça do ofício de escrever. Bom, procuro seguir o exemplo dos escritores rigorosos em seus processos de trabalho. Aqueles que estão querendo sempre dar o máximo de si mesmos em cada página. Como foi o caso do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, que nunca parecia estar satisfeito com o que escrevia. A ponto de outro poeta, o português Alexandre O´Neill, dizer dele: “João Cabral me dá a impressão de estar o tempo todo afiando a ponta do lápis. A sua obsessão com a perfeição é tão grande, que vai acabar cortando as pontas dos dedos.” Mas, por favor, não pense que estou querendo aqui me comparar a estes gigantes das letras. Apenas tenho-os em boa conta e guardo muito bem guardadas as suas fórmulas, num canto escuro da alma.
R.O.G. – Até que ponto o estilo do escritor Antônio Torres é marcado por outros tipos de experiência com a escrita como o jornalismo e a publicidade ?
A.T. – O jornalismo me ensinou a ver o mundo. E a publicidade a contar isso rapidinho. A literatura é uma esponja que absorve todas as linguagens. Absorvi muito da cultura oral do sertão de onde vim, que era um mundo de contadores de histórias. E me impregnei de música, o baião, o bolero, a seresta, o samba, a bossa nova e… muito jazz! Como diria Gilberto Gil, a Bahia me deu régua e compasso. Mas o piano de Thelonious Monk me dá o ritmo das frases, enquanto o trompete de Miles Davis e o sax de John Coltrane levam o meu texto a uma certa introspecção. Em outros momentos, pego um táxi com Wolfgang Amadeus Mozart. E sonho com um concerto na catedral de Santo Estevão, em Viena d´Áustria, regido por ninguém menos que o próprio Deus, em pessoa. Mozart me leva ao delírio.
R.O.G. – Uma parte importante da sua produção romanesca baseia-se na representação literária de sua cidade natal. Quais os processos que marcam a transformação do espaço geográfico em espaço literário ? Em que medida a experiência vivida está incorporada em sua criação, num romance como Essa terra ?
A.T. – Os cenários, os rostos e as vozes da minha infância contribuíram imensamente para a formação do meu imaginário. Agora, quanto ao momento em que os espaços geográficos se transformaram em espaços literários, eu me lembro: foi numa noite, na cidade de São Paulo, quando minha mulher, a Sonia, me pediu para lhe contar uma história do meu tempo de menino. Contei-lhe. E percebi que ela ficou muito emocionada. No dia seguinte escrevi um conto, ao qual dei o título de Segundo Nego de Roseno, que hoje está num livrinho chamado Meninos, eu conto. É uma historinha singela, passada no Junco, que é hoje a cidade de Sátiro Dias, onde nasci. E foi exatamente esse conto que deu origem ao Essa Terra, que é o meu terceiro romance. Aí o Junco transformou-se definitivamente em matéria da minha memória, com todos os desdobramentos conhecidos, pelo menos para quem já me leu, como no recente O Cachorro e o Lobo. No meu caso, o vivido conta muito. Tanto que há quem pense que tudo o que escrevo é autobiográfico. Nem tanto. E o ficcionista, onde é que fica?
R.O.G. – As diferentes partes do livro « Essa terra me chama » ; « Essa terra me enxota » ; « Essa terra me enlouquece » ; « Essa terra me ama » evidenciam as relações contraditórias que se estabelecem entre a terra e os personagens. Que terra é essa ? Junco ? Alagoinhas? Feira de Santana? São Paulo ? Ou simplesmente as duas faces – a rural e a urbana – de um mesmo Brasil que exclui e condena seu povo à miséria e à morte?
A.T. – Quando estava escrevendo o Essa Terra, me lembrava o tempo todo de um hino que a professora Serafina, e a professora Teresa depois, nos faziam cantar, na escola: “Glória aos homens/ heróis dessa terra/ essa pátria querida/ que é o nosso Brasil…” E quanto mais o romance avançava, mais eu pensava em dar-lhe o título de Minha mãe não é gentil, referência irônica, ou cáustica, ao Hino Nacional. Eu me criei ouvindo hinos e recitando poemas patrióticos retumbantes. Na idade adulta, percebi que “as divinas promessas da esperança” não se cumpriram. E aí chegaram os militares com o ufanismo do “Brasil Grande.” Enquanto morriam quatro por minuto à razão de mil dólares, para citar um verso de Ferreira Gullar. Em Essa Terra tentei mostrar um país do qual não me ufano.
R.O.G. – No final do romance Essa terra, o narrador-personagem Totonhim decide refazer a trajetória do irmão Nelo, abandonar o sertão e partir para São Paulo. Poderíamos ler nessa decisão, o desenraizamento como destino trágico do sertanejo? Por outro lado, a migração nordestina não poderia também ser vista como uma forma específica dos movimentos migratórios do mundo atual ? Na pós-modernidade, o homem moderno estaria condenado a ser um errante?
A.T. – O corte epistemológico do sertão deu-se com a chegada do primeiro caminhão. Muitos endoideceram com o cheiro da gasolina. As mulheres se assanharam com o motorista e já não queriam mais saber dos homens do lugar, que viviam no cabo de uma enxada e exalavam o cheiro de suor por todos os poros. E aí aqueles homens passaram a querer ser como ele, o motorista. Foram caindo fora. Isso é para dizer que não é só a seca e as más condiçõs de vida que expulsam o sertanejo do seu sertão. Há também a sedução da civilização. Claro que existem os fatores econômicos no eixo do deslocamento. Mas a tal da civilização atrai – é preciso levar isso em conta, também. Sim, hoje vivemos num mundo de errantes. As migrações internas passaram a ultrapassar fronteiras. E, pelo visto, o fenômeno parece ser mundial. Já há quem sonhe com um mapa mundi sem fronteiras. Como se fosse uma nova utopia, no pós-tudo, inclusive das utopias.
R.O.G. – O texto híbrido de Meu querido canibal coloca de maneira radical a questão da fronteira dos gêneros ao incorporar uma diversidade de formas narrativas como o relato histórico, a crônica, o diário, a narrativa mítica, sem contudo renunciar à ficção. Inscreve-se, dessa forma, numa das tendências modernas da ficção contemporânea que questiona os seus limites pela heterogeneidade de formas e de vozes que absorve. Além de Cunhambebe um outro herói antropófago está presente no texto : o próprio narrador que se dedica a uma prática intertextual intensa. Em que medida a temática do livro determinou a escolha dessa forma de narrar ?
A.T. – O que determinou a forma de narrar do Meu Querido Canibal foi a falta de história. Ou seja: como os índios não tinham escrita, não deixaram relatos de sua existência nessa terra. E a História oficial os condenou ao esquecimento. Em anos de pesquisa, cheguei à uma conclusão óbvia: o índio é o excluído da História. Tive que me virar e encontrar o meu recorte, valendo-me de minhas estratégias de romancista. Saiu este texto híbrido, como você o define, com precisão.
R.O.G. – Meu querido canibal, já anuncia no próprio título o envolvimento afetivo do narrador com o seu personagem, o que se confirmará logo na leitura das primeiras páginas do livro. Assim, a sua versão da história, assume-se plenamente como um exercício de heroicização dos índios Tupinambás, e em particular de Cunhambebe. Ao longo da narração, o narrador indica os limites da reconstrução dos fatos históricos como sublinha o uso recorrente à palavra « presumivelmente ». O texto problematiza assim a narrativa histórica. Poderíamos inferir dessa leitura que toda narrativa histórica é uma narrativa construída ? Para o escritor Antônio Torres, a história é sempre uma ficção ?
A.T. – De uma certa maneira. Porque todo livro de História foi escrito por alguém que não deixou de dar a sua versão particular dos fatos. Quando bati os olhos num verbete que definia o Cunhambebe como “o selvagem na sua expressão mais repelente,” fiquei tentado a tratá-lo como um herói, porque era assim que o seu povo o via. Até Villegaignon, o vice-almirante bretão que fez o primeiro assentamento de europeus no Rio de Janeiro, entre os anos de 1555-1559, com seu malfadado projeto de criação de uma França Antártica nos trópicos, pois até o Cavaleiro de Malta recebeu Cunhambebe por trinta dias, com todas as pompas e honras de chefe de Estado, de rei do Brasil. Ao recuperar a legenda de grande guerreiro de Cunhambebe, eu iria problematizar as narrativas históricas que minimizaram o seu papel de líder da resistência aos colonizadores. Meu livro é uma revanche, com indignação e afeto, como já disse o poeta baiano Ruy Espinheira Filho.
R.O.G. – A organização do romance em três partes marca também, temporalidades diversas : na primeira parte – “O canibal e os cristãos” – a ação situa-se no tempo histórico do primeiro século da colonização brasileira, focalizando a disputa entre portugueses e franceses pela conquista do território que hoje corresponde à cidade do Rio de Janeiro ; a segunda parte – « No princípio Deus se chamava Monan » – transporta-nos para o tempo mítico das narrativas sobre a criação do mundo, confrontando o livro do Gênesis a uma narrativa dos índios tupinambás ; a terceira parte – « Viagem a Angra dos Reis » – situa a ação « no limiar do sexto século do descobrimento do Brasil », deslocando abruptamente o leitor para o tempo da sua contemporaneidade, estabelecendo um paralelo entre as formas atuais da violência, e aquelas que levaram ao massacre dos índios. A violência interliga as partes distintas : estaria a espécie humana condenada a auto-devorar-se ?
A.T. – Não há relato histórico que não fale de conflitos, desde a Bíblia. Caim matou Abel etc. A Europa vivia ensangüentada quando os brancos deram com os seus costados nessas bandas. E aqui também o pau comia: tupiniquim e tupinambá se entre-devoravam. Com a chegada dos europeus, o pau passou a comer mais fortemente ainda. Do quadro atual nem é preciso falar. Guerras tribais no Oriente Médio, guerras de religião, tudo como antigamente. E os Estados Unidos da América faturando a sua parte. Quando Deus disse a Noé, segundo a Escritura, “Da próxima vez, o fogo,” estaria fazendo um prenúncio da terceira guerra mundial? Estaremos condenados à auto-devoração atômica? Do tempo das cavernas aos nossos dias, o ser humano inventou coisas inimagináveis. Está na hora de inventar a paz.
R.O.G. – Na representação do embate que se trava entre duas civilizações – a ocidental e a dos índios brasileiros que, como assinala o narrador de Meu querido canibal, não sabiam que eram índios até a chegada dos brancos – o livro discute um problema crucial que é o da alteridade, denunciando as consequências dramáticas de um olhar etnocêntrico. Você acredita que a literatura possa contribuir para a construção de relações interculturais que escapem ao etnocentrismo ?
A.T. – Dizia o finado Eistein que é mais fácil destruir um átomo do que um preconceito. Penso nisso quando você toca na questão do etnocentrismo, que é preconceituoso. “Se não está no centro, é inferior.” Pelo fato de não serem brancos e viverem como viviam, os índios foram vistos pelos europeus como “bestas em forma de gente.” Quando ponho isso no papel, fico com a esperança de que o leitor reaja: “Mas que absurdo!” Essa é a utopia da arte: que poderá transformar corações e mentes. Sejemos utópicos e acreditemos nisso: que a literatura possa contribuir para a construção de relações interculturais que escapem ao etnocentrismo. Afinal, como já disse Oscar Wilde, “um mapa mundi que não inclua a utopia não merece ser consultado.”
R.O.G. – Entre franceses e portugueses que disputavam entre si a posse da terra dos índios, Meu querido canibal constrói um perfil simpático dos primeiros em oposição à imagem cruel que elabora dos colonizadores do Brasil. Que elementos fundamentam esse tipo de construção ?
A.T. – O que fundamenta a minha visão é a diferença de interesses entre uns e outros. Os franceses foram mais diplomáticos com os índios por uma razão muito simples: estavam interessados em fazer negócios e não em tomar posse da terra. Trouxeram seus espelhinhos, perfuminhos e algumas utilidades da civilização européia, para trocar pela madeira, o pau-brasil, o pau de tinta tão disputado pela indústria têxtil, especiarias, aves e suas frondosas plumagens etc. E se encantaram com a terra e o homem, principalmente com a fartura de mulheres nuas. Caíram na farra com os índios. Muitos não quiseram regressar, passando a viver no sistema de vida tribal. É preciso entender também que os portugueses demoraram 60 anos, a partir do Descobrimento do Brasil, para se interessarem pelo Rio de Janeiro, que é o cenário do meu relato. Logo, os franceses farrearam sozinhos pelo Rio e suas maravilhosas adjacências durante um bom meio século. Quando os portugueses chegaram para expulsar os franceses, tinham como objetivo maior liquidar as tribos aglutinadas na Confederação dos Tamoios. E foi uma carnificina. Mas quero deixar claro que os franceses foram mais simpáticos do que os portugueses, nas relações com os nativos, nos primeiros tempos da colonização. Quando mudaram de idéia, mais tarde, e quiseram dominar a terra, aí já foi outra história. E vomitaram fogo nas suas invasões ao Rio de Janeiro, no começo do século XVIII, em busca de ouro.
R.O.G. – Como você avalia o contato com o meio universitário, editorial e com o público em geral, durante sua estadia na França?
A.T. – Desde 1984, quando do lançamento da edição francesa do Essa Terra, que vivo pra lá e pra cá. Sempre fui muito bem recebido em Paris. Mas confesso a você que desta vez a coisa me surpreendeu. Desta vez não era só Paris: estendi meus laços também por Lille, Bordeaux, Lyon e Nantes, além de belas esticadas a Bruges, La Rochelle, Rochefort e Saint Malo. Fui tratado como um passageiro de primeira classe, tanto nas universidades, quanto nos eventos nas livrarias e outros espaços públicos. E tudo por quê? Porque uma certa baiana que é hoje Maitre de Conférences na Universidade de Paris 8, a mesma que me dirige estas perguntas, organizou tudo com uma competência que deixou os franceses de queixos caídos. Meus editores parisienses eram só sorrisos. Claro, meus livros traduzidos voltaram a vender. Obrigado, Rita Olivieri Godet. Merci mille fois!