Entrevista a Raquel Queiroz – Rio de Janeiro, Copacabana, 6 de setembro de 2005

ENTREVISTA COM ANTÔNIO TORRES

Antônio Torres iniciou sua carreira literária aos 32 anos quando lançou seu primeiro romance Um cão uivando para a lua, que causou grande impacto, tendo sido considerado pela crítica “a revelação do ano”. O segundo “Os homens dos pés redondos”, confirmou as qualidades do primeiro livro. O grande sucesso, porém, veio em 1976, quando com a publicação de Essa terra, narrativa de fortes pinceladas autobiográficas que aborda a questão do êxodo rural de nordestinos em busca de uma vida melhor nas grandes metrópoles do Sul, principalmente São Paulo. Essa terra ganhou uma edição francesa em 1984, abrindo o caminho para a carreira internacional do escritor, que hoje tem seus livros publicados em Cuba, na Argentina, França, Alemanha, Itália, Inglaterra, Estados Unidos, Israel e Holanda, onde foram muito bem recebidos. Torres, porém, ampliou seu universo ficcional com a publicação de Um táxi para Viena d’ Áustria, em 1991, mostrando que possui a mesma desenvoltura para transitar por cenários rurais e urbanos.

Nessa entrevista, o escritor fez revelações surpreendentes do processo de criação e dos personagens no romance Um Táxi para Viena d’Áustria, que é o nosso objeto de estudo. Falou da experiência de viver na pele de um desempregado, não de modo conativo, mas de fato, como mais um, no início dos anos 90, época das fusões e do Plano Collor. Também, se posicionou quanto às questões da atualidade: o papel do escritor, do intelectual na sociedade do espetáculo. E, de como ele se vê fazendo parte desse cenário. Falou sobre sua experiência nas salas de oficina literária e de como o convívio com os alunos modificou o seu fazer literário. Apesar

de sua lucidez quanto às perspectivas presentes e futuras da literatura, ele dá mostras de que está presente na luta pela vitalidade do “contador de estórias”, como ele mesmo se define. Acreditando, principalmente, que sua participação como palestrante tem influenciado de maneira positiva junto às novas gerações de leitores.

Voilà, M. Torres a literatura brasileira penhorada, agradece.

1)- Em quem você se inspirou para criar o personagem Veltinho?

Primeiro, esse livro nasceu de um sonho. Uma noite, eu sonhei que matava um amigo no apartamento que eu descrevo, exatamente aquele apartamento que aparece no livro, naquele mesmo prédio, naquele lugar. Só, que o camarada que eu matava era outro, não era o dono real do apartamento. E, durante o sonho, eu matava o cara. Eu via uma arma, como está descrito no romance, e com aquela arma, que eu achava que era uma quinquilharia, uma coisa de decoração, dessas coisas compradas em brechó. E, então, quando o camarada, está escrito na “Barriga falante”, começava a falar de suas dores, e a barriga dele começava a falar, eu achava aquilo ali apavorante e atirava na barriga, meio a sério, meio de brincadeira. Quer dizer, eu não sabia no sonho que tinha bala, que a arma estava carregada, e que ela funcionava. Então, era como se fosse um teste da arma na barriga do sujeito e no sonho a minha intenção era matar a dor que aquela barriga estava sentindo. Bom, depois ele caía em câmara lenta e eu dava um segundo tiro pra acabar com a cara de horror dele. E, no sonho eu ficava muito feliz. Mas, eu nunca peguei numa arma na vida real, e no sonho isso aparece. Eu não era alguém que sabia atirar, não sei atirar, eu nunca tinha atirado, e pela primeira vez eu tinha dado dois tiros e tinha acertado os dois. Então, aquilo me dava uma euforia desgraçada, eu saía correndo, entrava num táxi e começava a rodar por todos os lugares das minhas referências. Ia pra Rodoviária, ia pra Bahia, aparecia na casa do meu avô na roça, encontrava um tio meu que me perguntava: o que é que você está fazendo aqui? Então, eu disse, bom, já deve ter chegado o jornal e ele já sabe que matei um homem. E, aí, eu perguntava, chegaram os jornais, já? Eles me diziam: jornal aqui na roça? Você está maluco. E, assim, eu ia pra São Paulo, como aparece no livro, modificado, quer dizer. Enfim, quando

eu acordei, estava extenuado, porque tudo aquilo parecia ter sido de verdade, ter acontecido mesmo. E, eu parei, fiquei pensando, e comecei a refletir: que violência! Sobre essa violência que eu carregava dentro de mim, que aparecia dentro de mim nesse sonho. Aí, fui fazer análise, fiquei um tempão, fazendo análise quatro vezes por semanas, deitava no divã, enquanto eu dava um tiro naquela barriga a analista remetia aquele tiro pra barriga da minha mãe. Quer dizer, eram meus irmãos que eu tava matando. Quer dizer, foi uma viagem fantástica. Enquanto isso, eu fui escrevendo o romance.

2)- E, a partir daí, veio primeiro o personagem ou a história?

Não, primeiro veio a história e a história era eu. Eu era o agente, eu era o ator principal da história, o personagem mesmo, eu e aquele outro, que eu matava, que é, como se fosse duas faces de uma mesma pessoa, quer dizer, os dois lados de uma mesma moeda. Mas, daí, claro que esse sonho contado dava uma página. Então, eu tive que criar um personagem que é o Veltinho, criar toda a história, e pôr aquele táxi, o engarrafamento, quer dizer o táxi parado, porque no sonho, o táxi está em movimento o tempo todo. Mas, a cabeça, a mente do Veltinho é que está fazendo a viagem imaginária para Viena, pra São Paulo, etc. Então, foi isso, primeiro veio o sonho, do sonho, eu concluí que era o meu subconsciente que tava trabalhando pra mim, me fornecendo de bandeja um material pra eu criar um romance. E, foi assim, que eu criei o personagem do Veltinho e o do Cabralzinho tal e qual aparece no sonho. Mas aí, tive que enriquecer com a dialética do discurso ficcional, o Cabralzinho vai crescendo, e vai se tornando um personagem forte.

3)- Então, com isso, você responde a pergunta, se houve algum dado da realidade que disparou o processo criativo a partir do qual você desenvolveu todo o enredo. No caso, não foi um dado da realidade, mas foi um dado onírico.

Mas teve um dado de realidade. Naquela noite, um amigo meu me telefonou, dizendo que estava com umas dores esquisitas nas pernas, e ele estava apavorado, porque o pai dele teve que amputar uma perna por

problemas circulatórios. E esse meu amigo estava muito queixoso e muito preocupado ao mesmo tempo, porque tinha que ir a um hospital público e não tinha nem aparelho de raios-X funcionando. Então, eu liguei para um médico meu amigo, que me deu o telefone do diretor do Hospital da Lagoa, dizendo pra ele, para esse meu amigo ir lá no Hospital da Lagoa procurar esse médico no nome dele, e que ele seria atendido. Fui dormir com essa preocupação, daquele amigo em relação às dores nas pernas dele. No sonho, as dores aparecem na barriga, e a barriga é que fala.

No dia seguinte, de fato, esse meu amigo foi lá, e, já depois que eu tinha sonhado e tudo, ele telefonou dizendo que foi muito bem atendido no Hospital da Lagoa, que o diretor lá tinha resolvido a situação dele. Mas teve esse dado de realidade. Isso me influenciou psicologicamente.

4)- Seguindo, então, essa linha de raciocínio, o perfil do sujeito em Um Táxi é marcado pelo trânsito e pela fragmentação. Você concorda? Ou você acrescentaria algum dado a mais a esse sujeito?

Sim, eu acrescentaria que é um sujeito perplexo diante das mudanças que começam a surgir. Esse livro foi escrito no final dos anos 80 para o começo dos anos 90, e foi reescrito em cima do período do Collor. Naquele ano brabo de confisco de poupança, de desemprego, disso, daquilo, etc. E, eu fiquei apavorado porque o livro foi relançado recentemente, e está fazendo uma boa carreira, já está com oito edições, teve cinco edições pela Record. Então, há esse momento de instabilidade que se instaura no país e no mundo, numa prévia do neoliberalismo, ou seja, um desconcerto, uma instabilidade de valores, uma instabilidade econômica, uma instabilidade de tudo, e que vai gerar uma instabilidade psíquica. Então, esse indivíduo, esse personagem está numa corda bamba, ele está sem ter em que se agarrar a não ser se deitar num banco de táxi e dormir. É o sono e o não-sono, é um momento de desconforto, porque dormir num banco de trás de um táxi não é uma coisa confortável. Então, isso já simboliza um momento de desconforto desse indivíduo, que é um desconforto que está instaurado na sociedade nesse momento.

Quando eu reli as provas, para o relançamento do livro eu fiquei apavorado, porque de certo modo aquilo era apenas um prenúncio do que

está acontecendo agora. Assim, o livro ganhou uma atualidade espantosa malheureusement. Eu acho que é isso, tem mais esse dado da instabilidade do indivíduo, do desconforto já assim nesse entrechoque de uma realidade de violência beirando ao caos.

5)- Todas as inferências do sujeito estão atravessadas pelo aspecto urbano e cosmopolita, de uma cidade como o Rio de Janeiro. Até que ponto o sujeito dessa cidade perdeu a privacidade por conta do desemprego, da violência, da propaganda e da globalização?

Ele perde, ele perde a si mesmo, ele já não tem mais tanto que, qual é a viagem que ele empreende? Uma viagem pra Viena d’Áustria onde disseram que há música nas ruas, e ele quer chegar à Catedral de Santo Estevão para assistir ao concerto de adeus ao século XX com toda aquela orquestra fantástica regida por ninguém menos do que o próprio Deus. Ora, o que é que isso denota? Que é um homem sem paz. Os dados da realidade na qual ele está envolvido o levam a não ter a menor paz de espírito. Essa coisa da Viena d’Áustria, pra mim, simboliza isso, sinaliza com essa possibilidade de nós vermos o personagem em busca de algum consolo espiritual, porque tudo em volta já desabou, já não tem mais um ponto fixo, para se apoiar, ele está totalmente desapoiado. Ele está desempregado, não está bem em casa porque a mulher já não suporta vê-lo em casa, os filhos perguntavam: não trabalhar hoje não, pai? E, o pai vê uma parede branca, todo o movimento dele é marcado por uma parede branca que o segue, quer dizer, ele fica ali emparedado. Então, ele é um camarada emparedado.

6)- Um Táxi foi publicado em 1991 e teve repercussão positiva da crítica e do público, ou seja, é um romance que agradou de um modo geral. Você acha que o texto ainda é atual? Ou, você faria ajustes na escritura, se você tivesse que escrevê-lo nos dias de hoje?

Bom, eu faria ajustes em todos os livros. Recentemente, foram relançados: Carta ao Bispo e Adeus Velho, e eu acabei dando umas mexidinhas, lá no finalzinho, uma coisinha ou outra. Mas, n’Um Táxi, provavelmente, que sim, se eu fosse pegar e ler, por uma questão de estilo. Mas, um livro, se você ficar, nunca acaba. Se você pegar as re-edições de

Guimarães Rosa, você vai ver que ele reescrevia praticamente tudo, uma coisa de louco. Mas, aí, você já está pensando algo à frente, você está cheio de trabalho, diz: bom, vale o que valer é isso aí. Mas me parece, e assim diz quem está lendo o livro agora, que é de uma grande atualidade, parece que ele adquiriu uma atualidade maior. Já que a violência cresceu, a instabilidade cresceu.

7)- E como foi o processo de criação?

O processo de escrita desse livro foi um inferno. Eu me criei essa instabilidade na época. Eu estava muito bem empregado numa agência de propaganda e pedi demissão. Cheguei numa parte do livro, e achei que algo estava me soando falso. Eu estava escrevendo sobre o desconforto de um desempregado, todo o seu estado de insegurança emocional, todo seu transe emocional com o desemprego, provocado pelo desemprego. E, no entanto, estava muito seguro, eu estava muito confortável. Então, eu pedi demissão. Eu tinha recebido os direitos autorais do exterior por causa do romance Essa Terra, que, na época, tinha saído em língua inglesa, estava indo bem. Tinha o Fundo de Garantia, tinha juntado uma coisinha ali. E, aí, eu calculei que tinha grana para me agüentar um ano ou mais. Então, eu calculei esse era o tempo que eu ia levar para preparar o livro, depois voltaria a procurar emprego. Eu queria sentir na pele o drama do desemprego naquele momento, a questão do vizinho, na rua, ia para o botequim ficava um tempão, e como é que as pessoas me olhavam. A relação familiar foi terrível, porque pegava o elevador e o vizinho perguntava: está de férias ou está doente? E, aí, comecei a sentir que estavam me vendo em casa. Hoje, isso já mudou porque quase todo mundo trabalha em casa, é uma coisa normal, e também já sabem que eu sou escritor, e que o escritor vive de escrever. Mas, naquele tempo, era mais complicado. Então, veio o tal do Plano Collor e levou todo o meu dinheiro. E, aí, eu não sei como é que eu não morri. Eu fiquei à noite na posse do Collor, pela televisão mudando de canal, e dava com a Zélia Cardoso de Mello, com aqueles dentinhos falando em t-i-t-u-l-a-r-i-d-a-d-e. E, aquilo era o assalto à nossa poupança. Eu estava reduzido a cinqüenta pratas, e isso não era nada. Foi um sufoco, porque você ligava para o supermercado,

e lá também já estava desabando. Até isso, voltar e re-arrumar, levou um bom tempo. Daí, o que foi que eu fiz? Reescrevi o livro. O livro já estava todo escrito, e eu reescrevi tudo. E, aí, foi fantástico, porque o editor me escreveu dizendo que o livro era muito bom, mas que do terceiro capítulo até o nono perdia fôlego. E, telefonei pra ele perguntando: mas o que é que é? Ele respondeu: não sei, dá uma olhada. Quando eu fui dar uma olhada. Claro que eu fui ver. Primeiro, com vontade, mas sempre quis fazer um livro todo em diálogo. E, daí, eu me perguntava: como que perdeu o ritmo, se eu fiz o capítulo todo em diálogo, exatamente para dar muito ritmo? E, aí, eu percebi, como se diz no popular: “tudo que é demais faz mal”. Quer dizer o excesso de velocidade também pode significar uma chatice. E, aí, eu levei um tempo reescrevendo. Agora, você vê que ficou um monólogo dialogado, já ficou uma narrativa com diálogos embutidos, ficou com outro estilo. E, isso foi a minha tábua de salvação ficar escrevendo durante os primeiros meses do tal do Plano Collor. E, aí, quando o livro saiu foi aquele estouro. Capa de caderno no país inteiro. Na noite de lançamento, no Rio de Janeiro, foi trezentos exemplares vendidos, filas de autógrafos, foi uma coisa. E, o livro pegou. Foi muito bom pra eu mudar de ritmo porque eu tinha ficado com uma marca muito forte. Embora, eu tenha estreado com dois livros urbanos, Um cão uivando pra lua e Os Homens dos Pés Redondos, mas eu tinha aquela viagem de volta ao sertão que é em Essa Terra, que foi uma explosão nacional, na época, estourou 30.000 exemplares, e já está na 21a edição. É, um fenômeno editorial que eu não sei como explicar. Daí, escrevi Carta ao Bispo, depois Adeus Velho, em seguida Bala da Infância perdida, que é urbano, mas é o sertão nas paredes de Copacabana. Assim, quando entrei no Táxi, entrei no Rio de Janeiro pra valer. Um pouco com medo disso, da linguagem, mas linguagem com carioquice, com toda a malandragem. Na época, me falaram, que eu juntei o popular ao clássico, já no título: táxi, popular e Viena d’Áustria, clássico. E, eu trabalho muito o título, tenho um fascínio por essa coisa do título. E, até hoje brincam comigo: vai pegar um táxi pra Copacabana? Ou pra Viena d’Áustria? Eu ligava pro editor em São Paulo, e a secretária dizia: “Ah, eu quero um táxi. Chama aí, um táxi pra me levar pra Viena d’Áustria”. Na

época, na resenha d’ O Globo saiu assim: “Um táxi para o primeiro mundo”.

8)- Quando você cria a situação limite do crime de Veltinho, que mata Cabralzinho, estaria, também, sugerindo que o escritor enquanto “uma voz independente” está impedido de existir?

Pode ser, e tem mais elementos aí, mais uma pista. Não se esqueça que era um publicitário que matava um escritor, e que eu era publicitário e escritor. E, o sonho me apavorou também por isso, era como se o publicitário estivesse matando o escritor. De alguma maneira, era eu me matando. Era um lado meu que estava me matando. Mas, com o correr da história, esse processo foi interessante, porque o que acabou foi o escritor quem matou o publicitário. Fiz o inverso ficcionalmente para na vida real acontecer o contrário. E, isso tem um simbolismo muito forte, porque você pra se exercer como escritor mesmo, você só consegue na hora que você mata simbolicamente os seus pais. Seus pais literários. E, aí, você diz: agora, sou eu. Tem algo aí, na direção da sua pergunta. Aliás, uma pergunta muito interessante, sobre a questão de matar os pais, os pares. Eu estou matando um escritor que é meu par, na verdade, o publicitário que eu era e o escritor que eu era, no sonho. Aí, escrevi o livro pra me afirmar como escritor. A criação do romance foi a afirmação do escritor sobre o publicitário.

9)- O que é a literatura hoje no Brasil e no mundo para você?

A literatura pra mim, hoje, é uma ave em extinção. Porque a partir do fim da História, a partir das decepções utópicas, tudo isso, que já se sabe. Estamos cansados de ouvir dizer, em que se instaura a instabilidade dos valores, o caos, o triunfalismo neo-liberal, o capitalismo que se tornou cada vez mais selvagem, que chegou e disse: ok, nós vencemos, só queremos vocês como consumidores. Então, muda tudo, muda toda a perspectiva da História. E, aí, entra a questão do mercado pesado, onde o dinheiro passou a ter um valor extraordinário. Tudo passou a ser muito caro, editar livro, distribuir, uma concorrência violenta, muito grande. E entramos no reino do descartável. Os livros têm que vender em um mês, a

partir daí, acabou, por causa do volume da economia de escala que nós vivemos. Mercado atulhado para um país de poucas livrarias, e de livrarias sem espaço para tudo o que se publica. É uma guerra de títulos.

Mas, a literatura não é assim. A literatura é uma coisa que vai aos poucos, as pessoas vão se descobrindo com o tempo. Esse é o quadro geral. Agora, por um milagre da natureza o meu livro está vendendo muito, ou seja, tem alguém me lendo. Acho isso um milagre para o tempo presente. Mas, concluindo, o que eu acho é que a literatura está em baixa. Não em baixa criativamente. Ela está em baixa como bem de consumo, cada vez mais você tem gente menos interessada em literatura. Por isso, que eu acho que a universidade tem um papel a exercer, ela pode ser a nossa reserva indígena. A gente não põe os índios na reserva pra não acabar com todos? Então, podia se fazer uma reserva pra nós, os escritores.

10)- Você acha que o escritor perdeu seu espaço no plano dos grandes debates nacionais e internacionais?

Totalmente. Hoje, o que querem de nós é que a gente vire pop star, vire celebridade. Temos que falar de um jeito performático, eu sei disso porque até eu sou usado nesse sentido. Os mais performáticos são os que têm mais platéia, veja o caso do Ariano Suassuna. Os escritores mais tímidos, ou mais reflexivos na sua fala, que não tem empenho de ator no palco, esses vão ser cada vez menos convidados para os eventos. O escritor tem que virar um ator, quer dizer o escritor fazendo parte do espetáculo, vivendo num cenário de espetáculo. Claro, que o nosso espetáculo também é limitado a pequenas salas. Mas, recentemente, enchemos essas salas duas salas do CCBB, a da conferência e a outra do telão. Eu encho os auditórios nas bienais, por aí afora, nas universidades, e em alguns espaços públicos. Mas, é um espaço meio privado, não é tão público assim. Ele não é tão público quanto o do pop star, você tem que ter um desempenho de pop star, mas o seu público não é do pop star. Porque vou falar para uma massa interessada jovem, que quer saber das histórias. Outro dia, eu estava no CCBB no debate sobre ficção com Sergio Santana e o Ítalo Moriconi, e a professora Therezinha Barbieri, da UERJ, que criou o projeto do escritor visitante, se levanta e me pede pra eu contar uma história que eu tinha

contado na Academia Brasileira de Letras. E, aí, eu disse pra ela, que tava um filho meu lá na frente, Thiago. Eu disse: Therezinha, toda vez que eu dava entrevista contando essas histórias, quando eu chegava em casa, meu filho me dizia: pai, outra vez! Mas essas eram as histórias que as pessoas queriam ouvir. Quando o Roberto D’Ávila gravou o “Conexão” (programa dele) comigo, ele disse: antes, conta aquelas histórias que o povo gosta. Então, eu fiz essa ressalva antes para ela, porque tinha um público muito variado na platéia, tinha jovens escritores, estudantes, porque eu não sei quem é o freqüentador do CCBB. E, aí, eu comecei a contar as histórias da minha infância. Pronto, esquentou. Foi aí, que esquentou. É baseado nisso, que eu te digo, que nem eu escapo de entrar no mundo espetáculo, ainda que seja o meu pequeno mundo do espetáculo.

11)- Você acredita que as ágoras poderiam resgatar a participação do público e de intelectuais nesses tempos chamados ou tidos como pós- modernos?

De repente, se alguém tentar pode ser até um sucesso. Mas, não sei. Nós não estamos mais no tempo de Castro Alves. Não sei. Mas não custa tentar. Mas eu acho que não teria coragem, ia me achar um camelô, ou iam me confundir como candidato a vereador.

12)- Você se acha um intelectual? Qual o espaço do intelectual?

Não, não me acho um intelectual. Me acho um ficcionista só, um contador de estórias. Obviamente, que um contador de estórias não é um gênio, mas é bastante cultivado, alguém que leu muito, que tem uma experiência de rua muito grande e também uma experiência de sala de aula muito grande como escritor visitante, palestrante, administrador de oficina literária, que me levou a ler de outra maneira.

Agora, o espaço público do intelectual ficou prejudicado. Ele perdeu o palco, perdeu no sentido do papel que o intelectual já exerceu no mundo. Se a gente for pegar um exemplo mais citado: Jean Paul Sartre, Albert Camus. Esse intelectual foi bastante veemente numa presença notória, que influiu no segundo pós-guerra. E, era a época da polarização do mundo, havia intervenção de um lado e de outro. As pessoas questionavam as

polêmicas, mas isso desapareceu. Acho que o intelectual, hoje, está mais encastelado na academia, ele está mais produzindo textos sobre textos do que interferindo no processo sócio-político e sócio-cultural. De repente, ele perdeu muito o espaço. É um pouco como a situação do escritor, ele tem que se tornar performático. Quem é convidado toda hora pra tudo? O Wisnik, por que? Porque é performático, faz aquilo de uma maneira atraente, ou seja, que não parece ser uma atividade intelectual, mas um show. Um show da intelectualidade. Os mais performáticos vão ser os mais simpáticos. Veja o caso da Marilena Chauí, quando ela dá uma conferência é um show. Claro, que existem outros valores agregados a essas pessoas, mas aqui estou falando que elas se ajustam bem às propostas de quem as convida. Quer dizer, quando você sai de uma conferência dessas, você sai leve, com uma sensação de quem tivesse ido ao cinema, ou a um show.

13)- O que acha do fenômeno Paulo Coelho?

Ele é o produto de tudo isso que eu falei: do neo-liberalismo, fim da História, do fim das utopias, das decepções utópicas. Aí, vem o salvacionismo, aí, o que é que entra? Auto-ajuda, quer dizer uma salvação prêt-à-porter, pegue tudo e vá embora. O que é que acontece? Mas eu tenho que ser justo com ele. Ele teve um saque de gênio ao perceber isso, consciente ou inconscientemente, ele percebeu a mudança nas pessoas, o mal-estar das pessoas com o Iluminismo, com a alta cultura, com a filosofia, com o pensar. Então, ele chegou e ofereceu um produto que caiu como uma luva na mão das pessoas no mundo. Aqui, ele vende muito pouco perto do que ele vende na França. É espantoso.

14)- O que você está achando da experiência de escrever crônicas em um jornal grande como o JB?

É uma experiência muito rica. Eu comecei escrevendo diariamente, mas resolvi mudar para três vezes por semana. Eles aceitaram, mas disseram que eu tinha que aumentar a coluna. Às vezes é um sufoco para escrever, por exemplo, ainda não terminei a que eu tenho que mandar hoje. Isso, me causa um certo stress, geralmente, eu antecipo e aí, fico mais folgado. Mas, não estou conseguindo fazer mais nada, toma muito tempo.

Ainda não consegui escrever rápido. E, acho também que o padrão de exigência, não é à toa, porque eu creio que seja lá quantos leitores lêem, mas eles esperam um texto do escritor. Então, eu tenho que escolher muito bem as palavras. Por exemplo, ontem eu estava lendo sobre o Barão do Rio Branco, e você já vai imaginar porque. O Sr. Lula da Silva condecorou o Severino Cavalcante com a Ordem do Rio Branco, disseram-me que foi um silêncio no Itamaraty. Daí, para não escrever uma coisa agressiva, eu fui ler a história do Rio Branco. Ontem, à noite, saí, fui a uma festa, e conversei sobre o Rio Branco com o Alberto da Costa e Silva, com Ivan Junqueira, e todos ficaram indignados com essa condecoração, porque é a condecoração máxima do Brasil. E, aí, eu ponho que título nessa crônica? Hoje, quando abro o computador me veio esse título: “Pequeno perfil de um grande homem”.

A entrevista com o romancista Antônio Torres foi realizada no dia 6 de setembro de 2005, em sua casa, em Copacabana, Rio de Janeiro. O autor, no momento, é cronista, escreve para o Jornal do Brasil todas as terças, quintas e sábados no Caderno B. Nasceu na pequena cidade de Junco (hoje Sátiro Dias), no interior da Bahia, no dia 13 de setembro de 1940. Aos 20 anos transferiu-se para São Paulo, empregando-se no diário Última Hora como jornalista, mas lá chegando, mudou de ramo e passou a trabalhar em publicidade. Viveu por três anos em Portugal, onde teve oportunidade de conhecer alguns autores e poetas portugueses. É casado com a Profa. Dra. Sônia Torres, formada em Literatura Comparada, pela Universidade Federal Fluminense (UFF), onde leciona. Tem dois filhos, Gabriel e Tiago.