Entrevista publicada no Portal Liberal www.portalliberal.com.br (dezembro de 2002)
Antônio Torres conta a Heloisa Buarque de Hollanda o caminho até seu primeiro livro, relançado trinta anos depois
Antônio Torres, um de nossos mais consagrados
ficcionistas, acaba de relançar seu livro de estreia, “Um cão uivando
para a lua”, de 1972. De lá para cá publicou nada menos do que 12
romances, com traduções em Cuba, Argentina, França, Alemanha, Itália,
Inglaterra, Estados Unidos, Israel e Holanda, e recebeu varios prêmios,
como o Chevalier des Arts et des Lettres, o Machado de Assis e o Zaffari
& Bourbon. A conversa que se segue toma o rumo de juntar os fios do
Brasil de hoje com a época de sua estréia literária, conhecida como os
anos de chumbo, seus impasses geracionais e o boom da literatura que já
se anunciava e veio à tona com insuspeito vigor por volta de 1975.
H: Por que essa reedição agora? Que ventos são esses que andam nos trazendo os Doces Bárbaros e tantos outros remakes dos tempos em que o sonho ainda não tinha acabado?
AT: Permita-me começar puxando um Freud de bolso: os sonhos só acabam quando a gente morre. Quanto aos remakes, eles estão tirando do baú do tempo produções que de alguma maneira marcaram uma época, assim os entendo. Tipo assim: “recordar é viver”. Ou um breve ato contra a ditadura do Novo! Chegou! Agora no Brasil! No caso desta reedição, porém, trata-se da disposição da Record de reunir todos os meus cacos e com eles fazer um belo mosaico. A partir da publicação de “O cachorro e o lobo”, em 1997 – meu primeiro livro publicado lá -, essa editora vem trabalhando nesse sentido. Tanto que, de 1999 para cá, já relançou cinco dos meus títulos: “Os homens dos pés redondos”, “Balada da infância perdida”, “Essa terra”, “Um táxi para Viena d’Áustria”, e, agora, “Um cão uivando para a lua”. O fato de “Um cão…” ter feito 30 anos no finalzinho de 2002 acabou servindo de gancho para o seu relançamento, com prefácio do autor e posfácio com a fortuna crítica do livro. Com isso, a Record vem me dando um verdadeiro banho de loja, pois as edições são muito bacanas, capas bonitas etc. A empresa não está apenas publicando e republicando os meus livros. Tem um projeto para eles, obedecendo a uma programação muito bem planejada. A repaginação do acervo deste velho autor deixa-o se sentindo com pinta de quem acabou de sair da clínica do doutor Ivo Pitanguy. Agora, quero deixar claro que existe nos meios editoriais brasileiros um certo tabu de que reedição não funciona, porque o leitor brasileiro só gosta de novidade. Nos casos expostos acima, editora e autor não podem se queixar. Os resultados têm sido satisfatórios. Onde foi que erramos?
H: Esse livro reflete os anos de chumbo ou os tempos do “sufoco”, como diziam os poetas. Qual sua lembrança como artista e intelectual daquele momento? Como foi sua experiência pessoal e literária nesses anos negros?
AT: Tinha todo aquele clima (os da minha idade ainda devem se lembrar): ditadura, censura, prisões, desaparecimentos, mortes. O chumbo era de grosso calibre mesmo. Mas um ufanismo de inspiração fascista ou algo parecido tentava abafar os uivos, que eram interpretados pelos artistas – os que tinham voz e souberam usá-la -, tornando-se uma frase bíblica metáfora do protesto: “Pai, afasta de mim este cálice/ afasta de mim este cálice/ de vinho tinto de sangue”. Bom, minha experiência pessoal foi a de estar ligado nos acontecimentos como um parceiro desse tempo – era preciso estar atento e forte; não tínhamos tempo de temer a morte, cantava a Gal. À minha volta, havia os que caíam nas drogas até irem parar debaixo dos eletrochoques. Outros pegavam em armas. Por causa de um deles, que era meu amigo, acabei tendo que andar me escondendo da polícia, por um bom tempo. Foi um sufoco. Também tive amigos que se exilaram. Meu exílio foi aqui mesmo. Lendo muito. E tentando escrever.
H: A questão da loucura do personagem era também sinal dos tempos? O que seria a loucura nos anos 70 e a loucura hoje, no século XXI? Lembro que naquela época loucura era sinônimo de experiência interessante, sensibilidade, transgressão. Sentido que ficou ainda mais carregado e múltiplo com o clima sombrio da ditadura.
AT: Agora você me faz lembrar do meu primeiro analista (passei por três, dos anos 70 aos 90, pois voltava aos divãs, sempre que a barra pesava). A primeira vez foi análise em grupo, que estava na moda – e era mais barato. Quando o grupo começou a falar muito em loucura, o terapeuta disse: “Vocês não sabem o que é isso.” Naqueles anos, falava-se em loucura como quem dizia: “Me traz aí uma coca-cola.” Não deixava de haver uma certa tendência a romantizá-la, glamourizá-la. A loucura funcionava esteticamente como metáfora, creio, ou sinônimo de rebeldia. O que fosse loucão era maravilhoso: o filme, o romance, o poema, a pintura, o sujeito. Havia qualquer coisa de importado nisso (do conde de Lautréamont com seus fantásticos “Cantos de Maldoror”, escritos sob o efeito de ervas alucinógenas, aos hipsters que faziam o contraponto para os squares, antecessores dos caretas). Criativamente, a loucura sempre foi sedutora. Quanto ao personagem de “Um cão uivando para a lua”, ele surgiu a partir do impacto provocado ao me deparar com um amigo que havia sido internado como louco. Logo, o ponto de partida para a sua construção partiu de um alicerce real. Como o autor aqui estava “inserido no contexto”, como era também moda dizer-se, tentei buscar a loucura do outro (está no livro: “O universo são dois. Quero ir ao outro para ver vocês de lá.”) e introjetá-la em mim. Como se quisesse entender, afinal, onde estava a fronteira entre sanidade e loucura. Agora, o que existe de modo generalizado é a caretice, a platitude das imagens globalizadas. Mas agora, dizemos “que loucura!” quando vemos o presidente dos Estados Unidos da América gritar “fogo, fogo!”. E quando os petardos no morro ao pé de nossas camas nos tiram o sono. Ou assustados com o fanatismo religioso e outros. Ah, quanta loucura.
H: Como foi fazer esse livro? Voce pensava em ser escritor naquela época?
AT: “Um cão uivando para a lua” começa assim: “Passei o dia todo subindo e descendo escada.” Relendo isso quando tive de fazer a revisão das provas do livro, pensei: essa frase diz muito sobre todas as minhas tentativas anteriores de escrever. Ah, quantas páginas tive que jogar na cesta do lixo antes daquele começo! Sim, claro, escrever era – e continua sendo – o meu sonho de criança. Se você, depois de brincar de esconde-esconde comigo, me perguntasse o que eu queria ser quando crescesse, a resposta viria na ponta da língua: “Castro Alves!” Tive uma professora chamada Tereza que percebeu isso e todo dia me escalava para ler um texto literário em voz alta. Depois, passava um exercício de redação, que ela chamava de composição. Era sofisticadíssima aquela professora da minha escola rural, lá no Junco – hoje Sátiro Dias -, no sertão da Bahia. Um dia aquela bendita professora pegou pesado, me pedindo para escrever sobre um dia de chuva. Como eu vivia num lugar chegado a uma seca, tive que apelar para a imaginação. Hoje, acho que ela estava mesmo querendo fazer de mim um romancista. E aí saí pelo mundo borrando papel – para o lixo. Até chegar a Lisboa. No meu primeiro dia lá (passou-se isto em 25 de junho de 1965), sentado à mesa de um café, passei a observar os homens que iam e vinham pela calçada, dando voltas no quarteirão. Achei que eles tinham os pés redondos de tanto andar em torno de si mesmos. Eureca! “Os homens dos pés redondos”. O título estava achado. Fiquei três anos em Portugal tentando achar o resto. Acabei vindo embora com apenas um título na bagagem. No regresso, em São Paulo, depois de muito batucar numa Lettera 22 – a mais fantástica máquina de escrever que o mundo foi capaz de inventar -, consegui chegar à primeira frase: “A julgar por ele, todos aqui são homens sem mulheres, porque as mães de seus filhos não contam.” Mas, e aí, como era que se fazia para continuar? Empaquei. Até o dia em que, no Rio de Janeiro, fui visitar um amigo que estava internado num hospital psiquiátrico, onde vinha sendo tratado a eletrochoques. Fiquei chocado. Desse choque nasceu o “Um cão uivando para a lua”, que foi escrito de um jato, com toda a urgência deste mundo. A minha urgência de parir um livro. Que resultou cheio de gafes literárias, pouca ou nenhuma elaboração, um texto sujo, como diz o meu filho Tiago, acrescentando: “Por isso mesmo é o seu livro de que mais gosto.”
H: Como esse livro sinalizou sua longa e definitiva trajetória, que o tornou um dos mais respeitados ficcionistas de nossa geração?
AT: Bom, tão logo cheguei ao ponto final de “Um cão…”, voltei ao outro, que empacara. E aí o teclado continuou andando, em velocidade de cruzeiro. E quando o telefone tocou e uma voz se anunciou como repórter do “Jornal do Brasil”, e disse que queria me entrevistar, pensei que era algum amigo querendo me sacanear, me passando um trote. Eu ainda não sabia que escritor dava entrevista. Depois vieram as críticas, as cartas, os livros. E aí percebi que o país estava cheio de escritores da minha idade, que adentravam a minha casa, dentro dos envelopes. Eram tantos que cheguei a pensar que, se eles comprassem os livros uns dos outros, todos viravam best-sellers. Até àquela altura, meus conhecimentos de literatura brasileira paravam em Clarice Lispector e Antônio Callado. Havia lido o “Quarup”, quando ainda morava em Portugal, onde também li Borges, Cortázar, todos os italianos do pós-guerra, os franceses e ingleses (os young angry men estavam na onda), enquanto o poeta português Alexandre O’Neill me pedia para ler o “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa, em voz alta, “por causa da oralidade do texto, da sua sonoridade”. Aliás: o O’Neill me apresentava aos seus amigos assim: “Este gajo chegou cá falando de Scott Fitzgerald, de quem cita de memória páginas e páginas. Temos que o levar a sério.” Um dia fiquei desempregado lá. Aí ele me disse: “Não precisas de emprego. Na minha casa tem um quarto para ti. Vou te trancar a pão e água, pois tudo o que tens a fazer é escrever.” Voltei a Lisboa em 1973, já com dois livros publicados. E casado com a Sonia. O O’Neill me saudou assim: “Oh pá, leste bem os norte-americanos!” Aí me lembrei do tempo em que ele lia J. D. Sallinger em voz alta. Aquilo que acabava de me dizer era um elogio, com certeza. Ah, não me fale dos norte-americanos. Malditos escritores! Eles contribuíram muito para que eu retardasse o meu começo. Porque vivia com a cabeça totalmente ocupada com as primeiras frases, as primeirs linhas, os começos deles. Eram de humilhar: “Todos estavam bêbados” (Hemingway). “Era precisamente meio-dia nesse domingo quando o xerife chegou à cadeia com o Lucas Beauchamp embora toda a cidade (e todo o conselho, para falar a verdade) já soubesse desde a véspera que o Lucas havia matado um branco” (Faulkner). “Havia um homem e um cão também desta vez. Duas feras, considerando-se Old Ben, o urso, e dois homens, contando-se Boon Hogganbeck, em cujas veias corria um pouco do sangue que corria em Sam Fathers, embora a linhagem de Boon fosse plebéia e apenas Old Ben e o mestiço Leão fossem puros e incorrupitíveis” (idem). “Imagine uma manhã no fim de novembro. A chegada de uma manhã de inverno há mais de vinte anos. Pense na cozinha de um velho casarão numa cidade do interior. A peça principal é um grande fogão preto; mas há também uma ampla mesa redonda e uma lareira com duas cadeiras de balanço em frente. Exatamente hoje a lareira começou seu rugido sazonal” (Truman Capote). “Começa-se com um personagem e, antes de se dar conta, descobre-se que se criou um tipo; começa-se com um tipo e descobre-se que não se criou coisa nenhuma” (Scott Fitzgerald). E mais os outros, daqui e d’alhures. Guimarães Rosa: “… era uma viagem inventada no feliz.” Juan Rulfo: “Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia o meu pai, um tal de Pedro Páramo.” Albert Camus: “Hoje, minha mãe morreu.” E chega. “Esqueça os outros”, dizia-me Alexandre O’Neill. “Escreva, pá, escreva. Depois os críticos vão descobrir com quem te pareces.” E não deu outra. É, doutora Heloisa: demorei a começar. Depois que o teclado pegou o embalo, escrevi o primeiro livro num jato, como já disse. Porque tinha pressa em chegar ao segundo. (Atenção! Esta frase aí está me soando a Borges, em “O fim”. Também pudera. Já li esse conto dele mais de 30 vezes. E em voz alta). O terceiro livro veio devagar. Houve quem o classificasse de maduro. Fiquei preocupado. Fruto maduro cai da árvore. Depois apodrece. Temeridades à parte, a (presumível) maturidade literária não veio só com o tempo e o fazer e refazer. A crítica teve sua (digamos, inestimável) parcela de contribuição. Porque prestei mais atenção nas restrições do que nos elogios. Se tive algum crescimento ao longo dessa trajetória, se deve também a isso. Ou principalmente foi isso. Mas já que o motivo desta entrevista é a minha estréia nas letras, há 30 anos, termino dizendo que tenho uma saudade danada do tempo em que vivia escrevendo sem saber que existia vida literária, com seus padrões, regras, jogos de poder, panelas, cascas de banana, uma tremenda mão-de-obra. Mas acho entrevista um barato. Me faz pensar, refletir. Conferência também: é uma maneira de fazer da fala uma extensão da escrita. Ou de escrever em voz alta.
H: Diz aqui em primeira mão: qual seu próximo projeto????
AT: Um romance que tem como personagem principal René Duguay-Trouin (o corsário de Luiz XIV, o Rei Sol), que em 1711 fez o primeiro seqüestro do Rio de Janeiro – o da própria cidade, que tomou como refém durante os 50 dias em que esperava o pagamento do resgate, para devolvê-la a seus habitantes. Foi uma loucura! Venho pesquisando isso desde 1998, quando estive pela primeira vez em Saint-Malo, na França, a terra natal de Duguay-Trouin e fortaleza dos corsários. Voltei lá em fevereiro de 2002, e fui também a La Rochelle, de onde ele partiu com 17 navios e quase 6 mil homens para arrasar o Rio e pegar todo o ouro que aqui era embarcado para Portugal. Em La Rochelle passei um dia inteiro com um historiador chamado Laurent Vidal, diretor do Espaço do Novo Mundo, que marcou encontro às nove da manhã no Aquário da Marinha. Cheguei pontualmente, levado por uma tropa da Universidade Michel de Montagne, de Bordeaux. Para começo de conversa ele me deu uma revista na qual acabava de publicar um ensaio sobre a invasão francesa ao Rio de Janeiro, com a seguinte dedicatória: “Na esperança de que você escreva um ótimo romance sobre esse assunto.” Como esse historiador havia lido o “Meu querido canibal”, isso facilitou o papo. Nem precisei lhe dar maiores explicações sobre o meu projeto. Durante aquele dia falamos de Duguay-Trouin o tempo todo. Ele me ajudou muito a ajustar a alça de mira. Já estou na metade do livro e com contrato assinado com a Record. Se o teclado continuar correndo bem, poderá ser publicado em 2003. Por fim, mas não por último: ao escrever um livrinho sobre o Centro do Rio, para a coleção Cantos do Rio (Rioarte-Relume-Dumará), me encantei com a história desta cidade, que tem personagens fascinantes, como o Cunhambebe, o meu querido canibal, e o Duguay-Trouin, o audaz corsário.