Adeus, Velho

Estado de Minas – quarta-feira 3 de março de 1982
Campomizzi FILHO

Os resultados do último censo nos mostram um esvaziamento rural. Áreas tradicionalmente agrícolas perdem, num desaguar constante, a mão-de-obra necessária à produção de grãos. Os pequenos municípios vêm sair anualmente respeitáveis contingentes humanos que se destinam aos grandes centros e que se amontoam na periferia das metrópoles. Essas migrações se acentuam de ano para ano, responsabilizando-se pelos amplos desafios que aí estão como marca de nosso tempo. Os meios de comunicação atuam buscando aqueles que ainda permanecem no campo. É que as cidades se apresentam em luzes e em sons, numa constante promessa de felicidade. Praças se abrem como à espera dos novos habitantes. Ruas se oferecem num abraço de fraternidade. O chamamento continua, agindo por sobre os moços que desejam um Horizonte mais amplo para a realização de seus sonhos. Estudiosos se interessam pelo problema. Economistas pretendem fixar o homem na sua terra de origem. Busca-se uma vitalização doa núcleos mais modestos, impedindo-se esse fluxo que deve ter um paradeiro. De certo que nossas letras se contaminam com o tema que exerce certo fascínio. O caminhão passando mostra nas suas placas um aceno. Indica as maravilhas que se escondem além do horizonte. O motorista é o herói que conhece distâncias e que percorre o contingente, desvendando mistérios e alargando fronteiras. Sua conversa é alegre. Seus gestos são amenos. Versátil, não pára nas suas andanças. Sua figura funciona em termos de convite à aventura. Pois Antônio Torres, de vitoriosas experiências anteriores, nome que se impõe pela seriedade de seus trabalhos e pelas linhas ascendentes de sua criação, entrega-nos esse seu “Adeus, Velho”. O romance traz-nos um instante de despedida, passado e presente nordestinos se distanciando cada vez mais nessa ruptura entre o rural e o urbano. No vilarejo esquecido, mourejando num cotidiano sempre igual, está a casa grande onde a família se reúne nos domingos e nas festas religiosas. A igreja preside as atividades locais. As portas do templo se abrem para as missas conventuais e para as novenas dos santos da devoção. A menina, reagindo ao dia-a-dia sempre igual, conversa com o moço. Entra no carro pesado que transporta bons milhares de toneladas. Entrega-se a ela que se vai sem uma palavra de agradecimento, como se aquilo tudo, doação total, fosse apenas e tão somente o cumprimento de uma de suas tarefas. Depois, a vida prossegue. O velho é exigente. Cansado, já não tem muitas força para dirigir o clã. Os resultados econômicos dos roçados e do pastoreio não são muitos. Os filhos tomam outros rumos e urge que partam todos, permanecendo no pequeno império construído com renúncias e sacrifícios apenas um deles, preso à força telúrica de raízes que se aprofundam. Um, o mais novo, casou-se com mulher bonita e rica. Mas não é feliz, que lhe falta alguma coisa, sem que se identifiquem aquelas almas tão distantes na formação. Virinha, a moça, entretanto, sabe quanto quer. Não se dobra às vicissitudes. A primeira derrota, percebendo lá em baixo o casario pobre e ouvindo o repicar dos sinos para a oração, permite-lhe uma nova tomada de posição. Não se submete à marginalização e nem se fixa na condição de esposa criando um filho atrás do outro. Mas é acusada de crime, eis que, convocada, surpreende-se diante do corpo exangue do antigo sedutor. As estações de rádio jogam a notícia a todos os cantos. A televisão transmite sua imagem. Não se importa ela, firme e capaz, ficando os pés no cão e encontrando o lugar que lhe cabe na cidade grande de múltiplas atrações e de enormes feridas. O velho morre. A figura patriarcal já não existe. Os filhos se distanciaram. O que fixou exige, em termos de domínio, as terras que seriam do grupo familiar. Um dos irmãos chegou a fazer fortuna como comerciante. Mas perdeu a cabeça e se foram os haveres. Hoje, com um pequeno negócio no Mercado Central, vê suas aspirações reduzidas. À visita do irmão que veio apressado para cuidar da libertação de Virinha teve avivadas velhas lembranças. Mas já estão todos rompidos, muito tênues aqueles laços que um dia os prenderam a todos em sangue e em fraternidade.

Existe o romance nordestino. Não desapareceu com os nomes prestigiosos que lhe deram vida. A estes se ajunta Antônio Torres, de qualidades próprias e de disposição rara. O jovem escritor conhece sua região. Sabe andar pelos seus caminhos, palmilhando estradas batidas e auscultando uma população sofrida. Os componentes dessa realidade lhe são familiares. Entende sua linguagem. Ama os horizontes onde vive uma gente que ainda crê no amanhã, apesar dos percalços e das vicissitudes. Dá às suas páginas um colorido que nos compromete com a paisagem, chamando-nos à sua trama e nos fazendo participantes dela. O jovem bancário que deixa tudo para socorrer a irmã, solidário e amigo, está também à procura de si mesmo. Mas é um elo entre o ontem e o hoje, uma espécie de resistência que se define ao toque das lembranças que ficam conosco e que nos perseguem. Na cidade, nem todos nos libertamos. Acompanham-nos alguns princípios com que não rompemos de todo. Seria esse o caso do rapaz que não se adaptou a esposa e o que está receoso de perder o lugar no estabelecimento bancário, importante, que lhes garante a sobrevivência em níveis bastante razoáveis. É essa a força de “Adeus, Velho”. Todos se despedem do pai que representa alguma coisa que não mais retorna. As cunhadas e os cunhados têm sua filosofia. Uma intriga doméstica divide o clã, os grupos formados ao impacto de pequenas tricas que resvalam para interesse econômico de uma herança em perspectiva. Esse é o fermento de que se serve Antônio Torres, com figuras humanas recortadas com especial carinho e recendo sua história de maneira a retratar tanto de nossa realidade social.

Torres: herdeiro de Graciliano

Revista Soviética – Ficção Contemporânea
Texto – O. Fiedossov
Tradução – Eduardo Serra e Carlos Azevedo

O primeiro livro de Antônio Torres, o romance Um Cão Uivando para a Lua, foi publicado em 1972. Depois disso, Torres publicou mais quatro romances, e seu nome entrou no rol dos mais conhecidos jovens escritores do Brasil (Loyola Brandão, Ivan Ângelo, Márcio Souza, Oswaldo França Jr., João Ubaldo Ribeiro e outros).

Oriundo do Nordeste, Torres reelabora a temática nordestina de Jorge Amado e Graciliano Ramos. De Graciliano, ele se aproxima principalmente quanto à sobriedade impetuosa na descrição da sociedade brasileira, a austeridade da narração, quase não deixando lugar para o lirismo. Mas Torres é um escritor absolutamente original, dotado de um estilo próprio, de uma maneira particular de perceber e se expressar. Nos seus livros, não há as características românticas e pitorescas como em Jorge Amado. Torres não se apresenta somente com um “contador de histórias”, que conduz sua narrativa de forma linear: as repentinas trocas de tempo e lugar de ação, os deslocamentos instantâneos no passado longínquo, que subitamente se rompem na descrição dos acontecimentos do dia-a-dia, são os seus traços característicos. Assim se tem uma impressão de anotações de diário, dos pensamentos humanos caprichosamente pulando de um assunto para outro. Este recurso possibilita ao autor levar o leitor a uma atmosfera de vazio, de instabilidade e desconforto que reina no espírito de seus personagens, no mundo interior de uma sociedade de privada de firmes princípios morais.

Na sua obra, como na de muitos escritores da América Latina, um dos principais temas é o isolamento, a incomunicabilidade e a alienação do homem no mundo sem sentimento e cruel da cidade grande, freqüentemente representada por Torres como uma enorme casa de loucos. A desestruturação psíquica e o suicídio – constantes desenlaces de seus enredos – atingem os seus personagens, atormentados pela falta de perspectiva e pela impotência diante do mal social (Um Cão Uivando para a Lua, Essa Terra e Carta ao Bispo).

O romance Adeus, Velho é uma reflexão do escritor sobre o passado e o presente do Brasil; sobre o tempo das transformações sócio-econômicas do pós-guerra; sobre o destino de sua geração. É um relato sobre as pessoas que conseguiram romper com a bolorenta e miserável vida do interior atrasado. Mas a nova vida, o futuro sedutor para onde se refugiaram do passado os jovens cheios de esperança, nada trouxe para eles a não ser cansaço e decepção.

Torres deu ao romance um titulo que tem duplo sentido: pode ser entendido como Adeus, meu pai. A ação, no sentido estrito da palavra, a trama propriamente dita, se desenrola no decorrer de 30 horas. No entanto, a base do livro se compõe de lembranças do passado. O velho Godofredo o personifica, representando o sistema de valores que ele não consegue transmitir aos seus inúmeros descendentes. O adeus ai agonizante Godofredo é, de uma certa forma, um adeus a um passado do Brasil. Desenvolvendo o tormentoso tema da passagem do velho para o novo, Torres pinta um triste quadro da decomposição do regime secular da vida do interior e da agonia espiritual de uma grande família patriarcal. As tentativas de Godofredo de reter os filhos na “terra” acabam num insucesso cruel, impondo-lhes uma vida tal como viveram muitas gerações de camponeses, cujo ganho agora “mal chega para colocar no prato feijão com farinha e tomar um gole de cachaça”. Eles se dispersam pelo mundo, sempre perdendo contato com a casa e uns com os outros.

No centro da narrativa, uma jovem mulher, Virinha, uma das filhas do velho Godofredo, que fugiu da estagnação da vida rural, para Salvador, a capital do Estado da Bahia. Ela é evidentemente impotente na luta diária pela sobrevivência, onde não há nada nem ninguém em que se apoiar, ninguém se importa com ninguém, e as pessoas sofridas se entrechocam com indiferença. Acusada de um crime, Virinha cai na prisão, uma dolorosa experiência na qual ela fica praticamente sozinha. Ela não consegue nem mesmo a compreensão do irmão Zulmiro, o único parente que lhe deu ajuda. Enquanto isso, o pai, agonizante, consciente da inutilidade das tentativas de impor sua vontade aos filhos, faz a única coisa que pode: manda dinheiro para pagar o advogado. A história de Virinha é uma amarga ilustração da dura situação da mulher brasileira. É uma critica ao sensacionalismo da imprensa burguesa, interessada não tanto na busca da verdade e na expressão sincera dos acontecimentos, quanto no aliciamento de leitores através de reportagens escandalosas. A história do filho adotivo de Godofredo, Zé Preto, um negro selvagemente espancado pela policia por um suposto roubo, soa como uma condenação da crueldade e d preconceito racial. Os bate-papos dos camponeses no botequim testemunham a crescente incredulidade no meio deles: não sentem ódio nem mesmo das palavras, chocantes para os fiéis, ditas pelo seminarista que não chegou a ser padre, sobre Deus e sobre os sacerdotes “que só sabem encher a pança e o bolso e depois das o fora, deixando um monte de besteira na cabeça do povo”.

O romance é escrito na maneira caracteristicamente fragmentada de Torres e, à primeira vista, com uma exposição assistemática dos fatos e acontecimentos, sem uma linha central clara. No entanto, os fatos fragmentados são postos numa ordem temática. Um dos capítulos fundamentais do romance é a história da ascensão e a queda de Tonho, o filho mais velho de Godofredo, que se tornou uma lenda para os irmãos. Tonho foi o primeiro a abandonar a casa paterna, contra a vontade do pai. Obteve vantagens no casamento na cidade e, por algum tempo, teve sucesso, para orgulho de todos os familiares. Mas depois as sua relações com a mulher se desmoronaram, ele arruinou a vida dela, foi viver em outra cidade e logo tornou-se tão pobre como quando saiu de casa.

Antônio Torres não tenta mostrar o caminho para a solução dos problemas colocados em seu livro. E talvez até não o veja inteiramente. Entretanto, seu romance é importante como tentativa de refletir sobre as complexas e múltiplas mudanças na sociedade brasileira nos últimos decênios. Com franqueza e grande expressividade, o escritor mostra a vida, ri da estupidez, condena o mal e defende o bem.

Romance feroz e impetuoso

IstoÉ – Sobre “Adeus, Velho” – 6 de janeiro de 1982
Mário da Silva Brito

Este romance de Antônio Torres centra-se, ostensivamente, em quatro personagens, quatro irmãos, cujas desventuras, em vez de venturas, narra em ritmo frenético, num discurso veloz que nem sempre permite ao autor deter-se mais no retrato de cada uma delas, aprofundando-lhes a psicologia e o comportamento. Mas há uma personagem oculta que, na verdade, deflagra todo o drama, todo o pathos romanesco: é o velho pai Godofredo, de cuja dominação todos querem livrar-se a que preço for. Ele simboliza o passado, a manutenção dos valores éticos, e também econômicos, do clã familiar. Personifica a sociedade arcaica, caduca.

Pode-se propor leitura mais ampla de Adeus, Velho. Considerá-lo o romance da desagregação familiar, da sua decadência, do seu esfrangalhamento, da crise instaurada nesse núcleo social por via de vários fatores, que, ao fim e ao cabo, num só se resumem: a falida estrutura da sociedade, do Estado. Adeus, Velho é livro acerbo, feroz e impetuoso. Não deixa uma fresta por onde penetre ar mais puro. Todo ele acumula traficâncias, patifarias, ambições insaciáveis, sentimentos apodrecidos. A visão que deixa do Brasil é terrivelmente pessimista: trata-se de um país estuprado desde o dia 22 de abril de 1500, quando, descoberta a terra, nela se instalou a exploração colonizadora que, ao longo dos anos, através de outros dominadores, vem sufocando o destino nacional.

A esta altura o romance já impõe outra exegese. É crítica devastadora da visão do mundo proposta pelo capitalismo que, por açular egoísmos, extremar competições, impede o ser humano de se realizar plenamente, de amar o semelhante, de se unir pela solidariedade e repartir os frutos do trabalho, de aspirar ao justo. É possível apontar falhas, excessos verbais, algum desleixo formal neste romance de Antônio Torres. A narrativa, intempestiva em dados trechos, chega a descambar para o folhetinesco. Apesar disso, a obra se mantém viva. Porque corajosamente reveladora de uma realidade que muitos não querem ver. Porque dói. Dói como esta história de horrores. O que há de terrível neste livro é que tenha sido escrito. E o foi por imperativos de toda uma circunstância social deplorável.

Para dizer adeus ao velho Brasil

Jornal – A Tarde – 24-09-1983 – Salvador/BA
(publicado originalmente em “Colóquio/Letras” – Lisboa/nov 1982)
John Parker

Se certas correntes críticas contemporâneas nos têm feito duvidar do compromisso da leitura com a realidade social, os romances de um escritor como Antônio Torres parecem feitos para minar o terreno que fez vigorar tais dúvidas. Nascido no interior da Bahia, jornalistas em São Paulo, publicitário no Rio, com um estágio no Portugal da Salazar (de que se iria valer para o seu romance, Os homens dos Pés Redondos, (1973), Torres pertence à geração de ficcionistas brasileiros – Loyola Brandão, Ivan Ângelo, Márcio Sousa, Oswaldo França Júnior, João Ubaldo Ribeiro – que começa agora a ser acontecimento nos Estados Unidos. Cinco romances em dez anos, obras com uma única exceção, curtas, incisivas, pingando raiva em cada página, Torres  retoma à sua  maneira a temática  nordestina de Jorge Amado e Graciliano Ramos, com toda a dureza deste e sem o romantismo e pitoresco daquele. Alías, Torres não é um “contador de histórias” : evitando a narrativa linear, usa de grande liberdade temporal e espacial,o que comunica aos seus romances  uma instabilidade necessária, essencial. Nestes cinco livros Antônio Torres vive uma grande indecisão de valores num mundo que não lhe oferece saídas. A cidade – Rio, São Paulo – é a clínica (manicômio) onde o jovem jornalista se refugia da visão inaceitável do interior amazônico vendido às multinacionais (Um Cão Uivando para a Lua, 1972); é São Paulo, que espanca e escorraça Nelo, que para lá fugira da roça, levando-o a vir enfocar-se na cidadezinha natal, onde descobre que o pai tivera de vender as suas terras para pagar um empréstimo contrário com o banco (Essa Terra, 1976); a tentativa de pôr a roça em  contato com o mundo contemporâneo, que obriga Gil a constantes viagens pelo Brasil afora – Rio, São Paulo, Salvador, Brasília, o sertão – e que termina no seu suicídio, depois de fazer um desfalque na repartição pública onde trabalha (Carta ao Bispo, 1979).

E agora, na sua obra mais recente, (Adeus Velho, ed. Ática, Sp); ao despedir-se daquilo que representa o velho do título – “não tinha sido propriamente um homem, mas um monumento, uma era, que começava no século passado e ter minava no frenesi da telivisão em cores” – diz-lhe um adeus que tem mais de raiva eu de saudade. A saudade é pouca, porque a tentativa do velho de educar o seu rancho de filhos no sentido de repetirem a mesma vida, na roça, com os mesmos valores, apenas levou a debanda de grande parte deles, homens e mulheres em demanda de outro tipo de vida. A raiva é muita porque, como exclama Mirinho, “não fomos feitos para esse mundo”, os valores do velho, do mundo dele, não são transferíveis: ”Nunca nos disseram a verdade. Toda a nossa vida tem sido uma grossa empulhação”. Há uma falta de continuidade entre o mundo do interior, ainda preso ao século passado e as grandes capitais do Brasil, neste caso Salvador, onde Virinha pode ser presa por motivos puramente circunstancias e mantida na cadeia durante sessenta dias acusada da morte e mutilação de um homem que, anos atrás, na roça, a tinha deflorado e ludibriado, mas que ela nunca voltara a ver. Difícil, no entanto, dizer se as simpatias do autor vão para essa figura, que lhe serve, em boa parte, para um cerrado e amargo ataque à situação da mulher na sociedade brasileira. Aliás, a fundação das personagens, neste como nos outros romances de Antônio Torres, parece ser essencialmente ideológica: as histórias delas são, nesse sentido, exemplares e os seus diálogos com outras personagens permitem ao ator encaixar frases que podiam – deviam? – ser aplicadas diariamente à situação sócio – econômica e política do Brasil, mesmo quando parecem ser desabafos pessoais. Como já, porém, observou Pierre Macherey, frases desse tipo são destacáveis, mas não destacadas, não deixando nunca de fazer parte da tessitura ficcional, e o compromisso que assumiu com a sociedade brasileira não levou Antônio Torres a esquecer-se daquele outro compromisso de todo o artista com a sua própria arte. O romance anuncia a sua própria iterariedade: da mesma forma que a narrativa de Carta ao Bispo “é” a carta de despedida que Gil escreve ao bispo, em cuja casa se suicida, a narração de Adeus Velho “é” o romance que Mirinho pensa escrever e que, no epílogo do livro, estaria em vias de redigir. E a narração, ao desdobrar-se, volta constantemente sobre si: a ação propriamente dita decorre num período de cerca de trintas horas, desde a saída da cadeia de Virinha até pouco depois do enterro do velho, mas Torres utiliza movimentos de Mirinho durante o dia passado em Salvador para construir as  suas reminiscências da família. O capitulo central do romance (umas trinta páginas) narra ascensão e queda de Tonho, o irmão que iniciou o abandono da roça por parte da nova geração. Os capítulos anteriores dividem-se entre uma seção passada na roça, onde se discute a prisão de Virinha, logo na altura e um diálogo imaginário em que Mirinho conta a esta os pensamentos inspirados pelas suas memórias da família; os capítulos posteriores abrem com outro sonho de Virinha, correspondendo aquele que dá inicio ao livro, passando a um diálogo “real” entre ela e Mirinho, para terminar outra vez na roça, onde família, parentes e mais pessoas se juntam para o enterro. Visto assim, o romance revela uma construção muito mais cuidados do que sugeriam o cruzamento fortuito de certos fatos familiares e a casualidade dos movimentos de Mirinho.

E depois este quinto romance de Antônio Torres termina com um tradicionalíssimo epílogo, resumido o destino de certas personagens que entraram no tablado, intertextual, talvez, à ficção de Jorge Amado, mas destacado do texto, pois este termina no ponto em que começara: ao pé do velho cruzeiro que domina a vila, quem sabe se outro aceno intertextual, desta vez às secas que marcam principio e fim de “Vilas Secas”, emoldurando a narrativa. Desta maneira o epílogo constituiria mesmo um adeus, a constatação do fecho dum ciclo, em que o velho esteve sempre presente, crescendo de mera alusão episódica para o lugar central, tentacular, que ocupa em Adeus Velho. Foi o que, alías, autor deu a entender numa entrevista. Escrito corajoso (o autor morreu, viva o autor!), Antônio Torres já se firmou nas letras brasileiras; que rumo levará e qual o material que irá trabalhar, são perguntas a que se espera ele não demore a responder.

A saga de dois Brasis

Idéias/ Jornal do Brasil – 18 de outubro de 1986
Sonia Salomão

Capas de Balada da infância perdida

A coerência do projeto ficcional de Antônio Torres se comprova mais uma vez numa sugestiva balada sobre mais uma perda: a infância. Mas que balada e que infância são estas? As do narrador e de seu primo Calunga, emigrantes nordestinos perdidos na cidade grande? Ou esta balada é uma saga familiar a contrapor cidade e sertão no vaivém da memória entre os tempos vividos na roça e aqueles passados nos heróis anos 60 e 70, na grande Sampa ou no delicioso balneário do sun sex and sea, Rio de Janeiro no alto de um espigão de 23 andares? É tudo isso e mais alguma coisa, segundo o delírio do personagem publicitário.

Desde Um cão uivando para a lua (72), o autor de Esta terra (76) desenvolve a temática do Brasil subdesenvolvido, com uma face agrária e outra industrial, dificilmente absorvidas pelas relações interpessoais. Seus personagens são exemplares, ou seja, são heróis paradigmáticos, culturalmente falando: o reporte, o publicitário, a mãe de família numerosa, o pai solitário e solidário com o sertão.

Em Balada da infância perdida o diálogo com várias temporalidades se dá a partir de intervalos de lucidez, quando o personagem-narrador desperta preocupado com o horário do trabalho. Lucidez profundamente comprometida com a bebedeira da véspera que o faz lembrar obsessivamente dos caixõezinhos azuis dos anjinhos de sua Infância. Lembrança logo entrelaçada com a da prole familiar: 23 irmãos.

O narrador em primeira pessoa possibilita uma colagem autobiográfica, responsável pela cumplicidade com o leitor. Ele é o típico emigrante nordestino que veio tentear a sorte na cidade grande. Está em plena crise dos 40 e a crise não tem conotações puramente existências, já que visceralmente ligada á crise social dos últimos 20 anos no Brasil. Aqui reside o aspecto mais relevante do romance. No meio de um tremendo porre, o Brasil é passado a limpo na desincronia própria da descontinuidade de nosso processo histórico. O narrador, em seu delírio onírico, conversa com parentes mortos, fragmentos de realidades sociais bem conhecidas.

A morte e a bebedeira são altamente alegóricas, sugerindo que a história brasileira dá forma à estrutura romanesca. Como se o autor quisesse nos dizer que só a bebedeira poderia salvar (matando) as pessoas dilaceradas por um sistema desumano que as obriga a enfrentar a disputa selvagem por um lugar ao sol contra todos os seus princípios ético. Daí, a valorização do pai, não mais o super-ego opressor da nação, mas um indivíduo desconhecido que, embora humilhado pelas forças sociais, mantém-se altivo na persistência do viver com as suas crenças.

Este é um romance dos anos 80 que se permite debruçar não só sobre a infância pré-capitalista do Nordeste, como sobre a experiência traumática dos anos 60-70. A ironia, a denúncia e a nostalgia temperada pelo ceticismo, livram o romance do tom piegas que o ameaçaria. Como no comentário do narrador sobre a conclusão de “um dos nossos”: “Até os vinte, acreditei na Santa Madre Igreja. Dos vinte aos trinta, acreditei no Partido Comunista. Dos trinta aos quarenta, acreditei na psicanálise. Agora só acredito na Loto”. A sensação de impotência, tão presente em todos nós que oscilamos entre a prudente euforia (que ninguém é besta) em favor do plano cruzado e o desânimo em face das oligarquias hegemônicas no país, está presente no livro. Mas longe de ser uma mensagem entreguista é antes uma análise das razões que nos conduzem a tal realidade e a tal postura. No diálogo com os mortos – Tia Madalena, Calunga, Che Guevara, a Mãe, o Pai – efetiva-se o contraponto de valores conflitantes que, se estão impregnados na família, é porque são representações sociais mais abrangentes sobre a miséria e o deslocamento cultural.

Entre o Boi da Cara Preta, os hinos de amor à pátria, as mensagens da FM da moda e as reminiscências da guerrilha cubana (“Hay que endurecerse sin perder la ternura, Jamás), há a sátira das diversas falas culturais sobre a nação contidas nas baladas.

Antônio Torres retoma uma discussão da maior relevância: a esquizofrenia de termos um Nordeste em pleno centro do sul-maravilha. Centro que é margem e se exorciza nesta balada para minar fantasmas na era do simulacro e no país das falsas aparências.

Da solidão da caatinga ao voraz caos urbano

Capas de Balada da infância perdida

O Globo – 12 de Outubro de 1986
Lúcia Helena

Para além das histórias que conta a seus leitores, e com competência, a ficção de Antônio Torres vem desenhando um curioso e singular perfil. A enlaçá-la, há o coerente e incessante aprofundamento de uma questão que a perpassa em seu cerne: em todos os seus textos, Torres – ainda que se utilize de uma gama variadíssima de estratégias – sempre reenvia ao leitor um problema, o do choque entre uma herança telúrica de personagens envolvidos por valores comunitários baseados na experiência rural(o que os aproximaria de uma voz épica), e o anúncio avassalador de que, sobre eles, se irá abater uma força corrosiva e fragmentadora, representada pela urbe, atraindo-os para uma vivência citadina e voraz, o que os aproximaria da narrativa romanesca da solidão humana e da perda de elos irrecuperáveis, sempre nostalgicamente relembrados.

Essa situação-limite, já anunciada em “Um cão uivando para a lua” de 1972, em sua terceira obra, de 1976, “Essa terra”, clímax de seu trabalho, mesmo que consideremos “Os homens dos pés redondos”, “Carta ao Bispo” e “Adeus, velho”. Pode-se dizer que, utilizando-nos de duas metáforas presentes em seu sexto e mais recente livro, “Balada da infância perdida”, a ficção de Torres tem narrado também a própria crise do grande relato, no qual apóia um de seus eixos; ou seja, que nela se tematiza o dramático choque entre a “solidão da caatinga” e o “amontoado da construção civil”. Ainda que consciente da ruptura com os elos do passado, os personagens-narradores dos romances de Antônio Torres como que lamentam a própria crise de que se incumbem narrar. Lamentam perda do grande relato que religasse os homens a seus ancilares, assim como traçam o fio de uma narrativa que, se não mais pode resgatar a identidade do que já não há, se urbe sobre o vazio dessa promessa, sobre a melancólica agenda das ruínas, sempre tecendo e retendo o  limbo em que se encontram não só os homens cindidos entre a tradição e a ruptura como também a sociedade problemática e as culturas em busca de si mesmas.  Ainda que “Balada da infância perdida” tenha como ponto de partida o fio desse bem tecido constelado, nela se esbate o acento melancólico (no sentido de W.Benjamin) de sua trajetória. A balada aqui referida não é mais um lamento emocionado da perda do que já não mais existe mas que, fantasmagoricamente, insiste em ser idealizado pelo personagem. O pai já não há, jamais veio, nem virá, assim como não vai ser mais cantada a canção de ninar que fizesse permanecer a infância na maturidade e impedisse o personagem de se libertar das angústias, das lembranças e do medo que o impelem à esperança. Também a narrativa já não mais é tematizada enquanto resgate possível de uma perdida identidade. Como agora sugere o personagem-narrador, que assume o fluxo da memória, não se ambiciona mais a busca de uma síntese (im)possível entre o passado remoto, dos elos comunitários rompidos, e o presente fragmentado. ”Balada da infância perdida” problematiza, renovadora e oportunamente, no quadro da ficção de Antonio Torres, a sugestão de que a narrativa não mais rememora os grandes relatos. Antes, dedica-se a “ouvir o tique-taque do tempo que passa, já sem promessas ou respostas”. O que Antônio Torres realiza com profundo vigor, senso crítico acirrado, humor e mestria, num belo texto, que merece ser lido.

Reedições de Antônio Torres

Gerana Damulakis
gerana@atarde.com.br

Capas de Balada da infância perdida

O baiano Antônio Torres está tendo sua obra reeditada pela Record, a exemplo de Os Homens dos Pés Redondos, romance que saiu, em 1973, pela Francisco Alves e Balada da Infância Perdida, que havia sido publicado pela Nova Fronteira em 1986. Ainda este ano, ele lançou os contos de Meninos, Eu Conto, também pela Record. Portanto, com mais de uma dezena de livros, sua obra já figura, dada a qualidade, na história da literatura brasileira deste século que finda.

Falando sobre a história do romance escrito por baianos, o contista Hélio Pólvora, em debate na Feira do Livro, não deixou de citar Um Cão Uivando Para A Lua, quando Antônio Torres faz um romance que é um “desabafo” primoroso de uma geração. O ensaísta Jorge de Souza Araújo destaca sua preferência também por este volume, mas há os que citam primeiramente Essa Terra, de 1976. Conheci o Antônio Torres de Um Táxi Para Viena D’Áustria, em 1991, e simplesmente fiz a viagem que é o texto. Recentemente, avaliei as saborosas histórias curtas de Meninos, Eu Conto. Igualmente há que ser lembrado o cronista do suplemento Idéias do Jornal do Brasil; principalmente aquelas crônicas publicadas em 1992, dignas de lugar perene em pasta de guardados.

Estas reedições trazem uma oportunidade mais do que necessária para quem não encontra os livros esgotados de Torres. De saída, fica garantido o prazer da leitura porque no tempo da rapidez — com que pressa queremos encerrar o século! — Antônio Torres consegue exatamente isto: criar romances que têm uma velocidade formidável. Talvez seja o gosto pela frase curta, talvez seja mesmo o ritmo ágil imprimido pela própria imaginação. E voamos juntos!

No entanto, não se pense que a reflexão está ausente numa escrita que passa a impressão de ser veloz. Ao contrário, ele nos acrescenta em conhecimentos desta nossa alma humana tão complexa. O personagem de Balada da Infância Perdida é daquele tipo que o leitor logo o compreende, estabelece com ele uma ponte de entendimento quanto às suas angústias, suas voltas aos momentos do passado, que o marcaram indelevelmente. Seus mortos o habitam, o personagem vive parte no presente e parte no passado porque o momento que está sendo vivido é produto de tudo que anteriormente ele viveu. E trava diálogos com a mãe morta e nos desespera, já que não sabe o que fazer com as suas assombrações, com seus caixõezinhos, com Calunga, companheiro e praticamente irmão que, sempre querendo tomar mais uma, acabou morrendo cedo. O autor, na verdade, vai resolvendo a infância. Não dizem que ela, a infância, é a parte pior da vida,  já que passamos o resto da existência tentando resolvê-la?

Em 1986, quando da sua primeira publicação, Balada da Infância Perdida ganhou o Prêmio de Romance do Ano do Pen Clube do Brasil e foi publicado na Inglaterra e nos Estados Unidos. Não ficou nisso; outros romances foram também premiados e a maioria traduzido para várias línguas. Antônio Torres é hoje lido e reconhecido por razões que vão desde o estilo notadamente claro e límpido que assegura a leitura, até o manejo do humor para temperar a inquietação, a angústia e o desespero com que seus personagens fazem o caminho da vida. Leitura, pois, que embriaga. É o mesmo Torres quem lembra Baudelaire aconselhando que nos embriaguemos “de vinho, de poesia ou de virtude”. Aqui temos a virtude da excelente prosa de ficção.