A saga de dois Brasis

Idéias/ Jornal do Brasil – 18 de outubro de 1986
Sonia Salomão

Capas de Balada da infância perdida

A coerência do projeto ficcional de Antônio Torres se comprova mais uma vez numa sugestiva balada sobre mais uma perda: a infância. Mas que balada e que infância são estas? As do narrador e de seu primo Calunga, emigrantes nordestinos perdidos na cidade grande? Ou esta balada é uma saga familiar a contrapor cidade e sertão no vaivém da memória entre os tempos vividos na roça e aqueles passados nos heróis anos 60 e 70, na grande Sampa ou no delicioso balneário do sun sex and sea, Rio de Janeiro no alto de um espigão de 23 andares? É tudo isso e mais alguma coisa, segundo o delírio do personagem publicitário.

Desde Um cão uivando para a lua (72), o autor de Esta terra (76) desenvolve a temática do Brasil subdesenvolvido, com uma face agrária e outra industrial, dificilmente absorvidas pelas relações interpessoais. Seus personagens são exemplares, ou seja, são heróis paradigmáticos, culturalmente falando: o reporte, o publicitário, a mãe de família numerosa, o pai solitário e solidário com o sertão.

Em Balada da infância perdida o diálogo com várias temporalidades se dá a partir de intervalos de lucidez, quando o personagem-narrador desperta preocupado com o horário do trabalho. Lucidez profundamente comprometida com a bebedeira da véspera que o faz lembrar obsessivamente dos caixõezinhos azuis dos anjinhos de sua Infância. Lembrança logo entrelaçada com a da prole familiar: 23 irmãos.

O narrador em primeira pessoa possibilita uma colagem autobiográfica, responsável pela cumplicidade com o leitor. Ele é o típico emigrante nordestino que veio tentear a sorte na cidade grande. Está em plena crise dos 40 e a crise não tem conotações puramente existências, já que visceralmente ligada á crise social dos últimos 20 anos no Brasil. Aqui reside o aspecto mais relevante do romance. No meio de um tremendo porre, o Brasil é passado a limpo na desincronia própria da descontinuidade de nosso processo histórico. O narrador, em seu delírio onírico, conversa com parentes mortos, fragmentos de realidades sociais bem conhecidas.

A morte e a bebedeira são altamente alegóricas, sugerindo que a história brasileira dá forma à estrutura romanesca. Como se o autor quisesse nos dizer que só a bebedeira poderia salvar (matando) as pessoas dilaceradas por um sistema desumano que as obriga a enfrentar a disputa selvagem por um lugar ao sol contra todos os seus princípios ético. Daí, a valorização do pai, não mais o super-ego opressor da nação, mas um indivíduo desconhecido que, embora humilhado pelas forças sociais, mantém-se altivo na persistência do viver com as suas crenças.

Este é um romance dos anos 80 que se permite debruçar não só sobre a infância pré-capitalista do Nordeste, como sobre a experiência traumática dos anos 60-70. A ironia, a denúncia e a nostalgia temperada pelo ceticismo, livram o romance do tom piegas que o ameaçaria. Como no comentário do narrador sobre a conclusão de “um dos nossos”: “Até os vinte, acreditei na Santa Madre Igreja. Dos vinte aos trinta, acreditei no Partido Comunista. Dos trinta aos quarenta, acreditei na psicanálise. Agora só acredito na Loto”. A sensação de impotência, tão presente em todos nós que oscilamos entre a prudente euforia (que ninguém é besta) em favor do plano cruzado e o desânimo em face das oligarquias hegemônicas no país, está presente no livro. Mas longe de ser uma mensagem entreguista é antes uma análise das razões que nos conduzem a tal realidade e a tal postura. No diálogo com os mortos – Tia Madalena, Calunga, Che Guevara, a Mãe, o Pai – efetiva-se o contraponto de valores conflitantes que, se estão impregnados na família, é porque são representações sociais mais abrangentes sobre a miséria e o deslocamento cultural.

Entre o Boi da Cara Preta, os hinos de amor à pátria, as mensagens da FM da moda e as reminiscências da guerrilha cubana (“Hay que endurecerse sin perder la ternura, Jamás), há a sátira das diversas falas culturais sobre a nação contidas nas baladas.

Antônio Torres retoma uma discussão da maior relevância: a esquizofrenia de termos um Nordeste em pleno centro do sul-maravilha. Centro que é margem e se exorciza nesta balada para minar fantasmas na era do simulacro e no país das falsas aparências.