Jornal – A Tarde – 24-09-1983 – Salvador/BA
(publicado originalmente em “Colóquio/Letras” – Lisboa/nov 1982)
John Parker
Se certas correntes críticas contemporâneas nos têm feito duvidar do compromisso da leitura com a realidade social, os romances de um escritor como Antônio Torres parecem feitos para minar o terreno que fez vigorar tais dúvidas. Nascido no interior da Bahia, jornalistas em São Paulo, publicitário no Rio, com um estágio no Portugal da Salazar (de que se iria valer para o seu romance, Os homens dos Pés Redondos, (1973), Torres pertence à geração de ficcionistas brasileiros – Loyola Brandão, Ivan Ângelo, Márcio Sousa, Oswaldo França Júnior, João Ubaldo Ribeiro – que começa agora a ser acontecimento nos Estados Unidos. Cinco romances em dez anos, obras com uma única exceção, curtas, incisivas, pingando raiva em cada página, Torres retoma à sua maneira a temática nordestina de Jorge Amado e Graciliano Ramos, com toda a dureza deste e sem o romantismo e pitoresco daquele. Alías, Torres não é um “contador de histórias” : evitando a narrativa linear, usa de grande liberdade temporal e espacial,o que comunica aos seus romances uma instabilidade necessária, essencial. Nestes cinco livros Antônio Torres vive uma grande indecisão de valores num mundo que não lhe oferece saídas. A cidade – Rio, São Paulo – é a clínica (manicômio) onde o jovem jornalista se refugia da visão inaceitável do interior amazônico vendido às multinacionais (Um Cão Uivando para a Lua, 1972); é São Paulo, que espanca e escorraça Nelo, que para lá fugira da roça, levando-o a vir enfocar-se na cidadezinha natal, onde descobre que o pai tivera de vender as suas terras para pagar um empréstimo contrário com o banco (Essa Terra, 1976); a tentativa de pôr a roça em contato com o mundo contemporâneo, que obriga Gil a constantes viagens pelo Brasil afora – Rio, São Paulo, Salvador, Brasília, o sertão – e que termina no seu suicídio, depois de fazer um desfalque na repartição pública onde trabalha (Carta ao Bispo, 1979).
E agora, na sua obra mais recente, (Adeus Velho, ed. Ática, Sp); ao despedir-se daquilo que representa o velho do título – “não tinha sido propriamente um homem, mas um monumento, uma era, que começava no século passado e ter minava no frenesi da telivisão em cores” – diz-lhe um adeus que tem mais de raiva eu de saudade. A saudade é pouca, porque a tentativa do velho de educar o seu rancho de filhos no sentido de repetirem a mesma vida, na roça, com os mesmos valores, apenas levou a debanda de grande parte deles, homens e mulheres em demanda de outro tipo de vida. A raiva é muita porque, como exclama Mirinho, “não fomos feitos para esse mundo”, os valores do velho, do mundo dele, não são transferíveis: ”Nunca nos disseram a verdade. Toda a nossa vida tem sido uma grossa empulhação”. Há uma falta de continuidade entre o mundo do interior, ainda preso ao século passado e as grandes capitais do Brasil, neste caso Salvador, onde Virinha pode ser presa por motivos puramente circunstancias e mantida na cadeia durante sessenta dias acusada da morte e mutilação de um homem que, anos atrás, na roça, a tinha deflorado e ludibriado, mas que ela nunca voltara a ver. Difícil, no entanto, dizer se as simpatias do autor vão para essa figura, que lhe serve, em boa parte, para um cerrado e amargo ataque à situação da mulher na sociedade brasileira. Aliás, a fundação das personagens, neste como nos outros romances de Antônio Torres, parece ser essencialmente ideológica: as histórias delas são, nesse sentido, exemplares e os seus diálogos com outras personagens permitem ao ator encaixar frases que podiam – deviam? – ser aplicadas diariamente à situação sócio – econômica e política do Brasil, mesmo quando parecem ser desabafos pessoais. Como já, porém, observou Pierre Macherey, frases desse tipo são destacáveis, mas não destacadas, não deixando nunca de fazer parte da tessitura ficcional, e o compromisso que assumiu com a sociedade brasileira não levou Antônio Torres a esquecer-se daquele outro compromisso de todo o artista com a sua própria arte. O romance anuncia a sua própria iterariedade: da mesma forma que a narrativa de Carta ao Bispo “é” a carta de despedida que Gil escreve ao bispo, em cuja casa se suicida, a narração de Adeus Velho “é” o romance que Mirinho pensa escrever e que, no epílogo do livro, estaria em vias de redigir. E a narração, ao desdobrar-se, volta constantemente sobre si: a ação propriamente dita decorre num período de cerca de trintas horas, desde a saída da cadeia de Virinha até pouco depois do enterro do velho, mas Torres utiliza movimentos de Mirinho durante o dia passado em Salvador para construir as suas reminiscências da família. O capitulo central do romance (umas trinta páginas) narra ascensão e queda de Tonho, o irmão que iniciou o abandono da roça por parte da nova geração. Os capítulos anteriores dividem-se entre uma seção passada na roça, onde se discute a prisão de Virinha, logo na altura e um diálogo imaginário em que Mirinho conta a esta os pensamentos inspirados pelas suas memórias da família; os capítulos posteriores abrem com outro sonho de Virinha, correspondendo aquele que dá inicio ao livro, passando a um diálogo “real” entre ela e Mirinho, para terminar outra vez na roça, onde família, parentes e mais pessoas se juntam para o enterro. Visto assim, o romance revela uma construção muito mais cuidados do que sugeriam o cruzamento fortuito de certos fatos familiares e a casualidade dos movimentos de Mirinho.
E depois este quinto romance de Antônio Torres termina com um tradicionalíssimo epílogo, resumido o destino de certas personagens que entraram no tablado, intertextual, talvez, à ficção de Jorge Amado, mas destacado do texto, pois este termina no ponto em que começara: ao pé do velho cruzeiro que domina a vila, quem sabe se outro aceno intertextual, desta vez às secas que marcam principio e fim de “Vilas Secas”, emoldurando a narrativa. Desta maneira o epílogo constituiria mesmo um adeus, a constatação do fecho dum ciclo, em que o velho esteve sempre presente, crescendo de mera alusão episódica para o lugar central, tentacular, que ocupa em Adeus Velho. Foi o que, alías, autor deu a entender numa entrevista. Escrito corajoso (o autor morreu, viva o autor!), Antônio Torres já se firmou nas letras brasileiras; que rumo levará e qual o material que irá trabalhar, são perguntas a que se espera ele não demore a responder.