O Globo – 12 de Outubro de 1986
Lúcia Helena
Para além das histórias que conta a seus leitores, e com competência, a ficção de Antônio Torres vem desenhando um curioso e singular perfil. A enlaçá-la, há o coerente e incessante aprofundamento de uma questão que a perpassa em seu cerne: em todos os seus textos, Torres – ainda que se utilize de uma gama variadíssima de estratégias – sempre reenvia ao leitor um problema, o do choque entre uma herança telúrica de personagens envolvidos por valores comunitários baseados na experiência rural(o que os aproximaria de uma voz épica), e o anúncio avassalador de que, sobre eles, se irá abater uma força corrosiva e fragmentadora, representada pela urbe, atraindo-os para uma vivência citadina e voraz, o que os aproximaria da narrativa romanesca da solidão humana e da perda de elos irrecuperáveis, sempre nostalgicamente relembrados.
Essa situação-limite, já anunciada em “Um cão uivando para a lua” de 1972, em sua terceira obra, de 1976, “Essa terra”, clímax de seu trabalho, mesmo que consideremos “Os homens dos pés redondos”, “Carta ao Bispo” e “Adeus, velho”. Pode-se dizer que, utilizando-nos de duas metáforas presentes em seu sexto e mais recente livro, “Balada da infância perdida”, a ficção de Torres tem narrado também a própria crise do grande relato, no qual apóia um de seus eixos; ou seja, que nela se tematiza o dramático choque entre a “solidão da caatinga” e o “amontoado da construção civil”. Ainda que consciente da ruptura com os elos do passado, os personagens-narradores dos romances de Antônio Torres como que lamentam a própria crise de que se incumbem narrar. Lamentam perda do grande relato que religasse os homens a seus ancilares, assim como traçam o fio de uma narrativa que, se não mais pode resgatar a identidade do que já não há, se urbe sobre o vazio dessa promessa, sobre a melancólica agenda das ruínas, sempre tecendo e retendo o limbo em que se encontram não só os homens cindidos entre a tradição e a ruptura como também a sociedade problemática e as culturas em busca de si mesmas. Ainda que “Balada da infância perdida” tenha como ponto de partida o fio desse bem tecido constelado, nela se esbate o acento melancólico (no sentido de W.Benjamin) de sua trajetória. A balada aqui referida não é mais um lamento emocionado da perda do que já não mais existe mas que, fantasmagoricamente, insiste em ser idealizado pelo personagem. O pai já não há, jamais veio, nem virá, assim como não vai ser mais cantada a canção de ninar que fizesse permanecer a infância na maturidade e impedisse o personagem de se libertar das angústias, das lembranças e do medo que o impelem à esperança. Também a narrativa já não mais é tematizada enquanto resgate possível de uma perdida identidade. Como agora sugere o personagem-narrador, que assume o fluxo da memória, não se ambiciona mais a busca de uma síntese (im)possível entre o passado remoto, dos elos comunitários rompidos, e o presente fragmentado. ”Balada da infância perdida” problematiza, renovadora e oportunamente, no quadro da ficção de Antonio Torres, a sugestão de que a narrativa não mais rememora os grandes relatos. Antes, dedica-se a “ouvir o tique-taque do tempo que passa, já sem promessas ou respostas”. O que Antônio Torres realiza com profundo vigor, senso crítico acirrado, humor e mestria, num belo texto, que merece ser lido.