A Editora Record vem reeditando a obra do baiano Antônio Torres. Já nas livrarias podemos reencontrar Balada da InfânciaPerdida e este Os Homens dos Pés Redondos,
que foi publicado pela primeira vez em 1973, quando se tornou best
seller. Antônio Torres tem uma obra já com 11 títulos, vários deles
traduzidos e premiados. Seus romances são devidamente reconhecidos e,
por tal, é acertada a resolução da editora em colocar outra vez ao
alcance do público o prazer de ler uma literatura escrita por um
ficcionista de “estatura incomum”, nas palavras de Jorge Amado. Os Homens dos Pés Redondos
conta uma história inesquecível pela quantidade de personagens
singulares vivendo casos ao mesmo tempo cheios de humor pela via da
ironia e desgraçados pelo que encerram em suas linhas trágicas. As
situações do romance não passam incólumes pelo leitor que se sentirá
obrigado a refletir e, assim, entender melhor, quem sabe, até a si
mesmo. Esta, por sinal, é uma marca da ficção de Torres, isto é, fazer
pensar, deter-se no texto para dele retirar-se com sensações novas.
O Globo – Rio de Janeiro, 21/10/79
Edilberto Coutinho
Através de ação puramente psicológica, em que o
passado está na consciência presente do personagem, Antônio Torres
recria, neste “Carta ao Bispo”, todo universo de um homem que existe
esmagado. Mais que isto, porque Gil se faz esmagado, e
vamos conhecê-lo, exatamente, na situação-limite em que sentir e
conhecer se repelem, são antinomias insuportáveis. Então, ao despedir-se
da luta, Gil escreve sobre as razões de seu pretendido descanso. O que
dirá na carta o leitor poderá, facilmente, recompor em suas próprias
palavras. Porque não é difícil a gente se identificar com este
personagem tão cheio de verdade humana e psicológica, com a consciência
obscura, porém viva, da fatalidade que pesa sobre ele. Sobre nós.
O romancista não faz uma análise psicológica de Gil por trás do
personagem. Seu livro não é uma tese. O narrador não está, em nenhum
momento (e nem coloca o leitor) em posição por assim dizer superior do
personagem. Claro que não. Porque Antônio Torres escreveu um romance (e
que romance), não uma tese acadêmica. A força interior, o caráter
interior, psicológico de Gil, portanto, não é apresentado no plano de
consciência, geradora de conhecimento. Gil é surpreendido pelo que
acontece, e não consegue atinar claramente com o sentido psicológico de
seu destino, do destino. Ele tem a intuição de que nenhum futuro o
fará sair de seu passado. Torres suprime e subverte as ligações
cronológicas, de modo que o que Gil percebe é o passado. Ele não
conseguiu arrancar Malhada da Pedra da pasmaceira, então vai se
arrancar da vida. Decide isto e, neste momento, um número grande de
coisas lhe ocorrem à lembrança. Gil não está agora sendo perseguido
pelos outros, mas por ele mesmo, pelos anos todos que viveu, por suas
ações e reações, coisas omitidas e cometidas.
Tudo corre para ele, neste corredor da morte em que o encontramos,
quando decide finalmente fazer-se responsável pelo próprio destino, que
apenas intui. Torres não tem verdades prontas para oferecer. Ele
mostra, através do roteiro de Gil, as suas dúvidas, conduzindo o leitor
a refletir sobre “este país trocado: cada macaco fora de seu galho”.
Gil não ouve a voz antecipadora da mãe, verdadeira Sancho Pança de
saias do sertão baiano: “Política e forró é gostoso, mas não é para os
filhos da gente”. Gil-Quixote vai em frente, porque acha que Zito, “que
é como se fosse meu irmão”, ia ganhar as eleições. “Porque agora a
gente vai ganhar”. E o que acontece a este perdedor exemplar na visão
implacável e verdadeira que seu criador no oferece? “Gil deixa sua
causa sincera e insana, na qual enterrou quase todos os seus quarenta
anos. Queria salvar um lugar e um povo. Sozinho”.
Antônio Torres escreveu um romance rigoroso (estrutura e linguagem
pedindo análise mais aprofundada), vigoroso, novo, feroz e ferino, que
faz avançar a ficção brasileira. O professor e crítico Jorge de Sá fez
uma síntese admirável da obra de Torres, nestas palavras: “Com os pés
fincados no chão seco do Nordeste e com a alma impregnada pelos nossos
problemas característicos, A.T. recria personagens tão vivos quanto
cada um de nós”. Aí estão as características mais fortes deste
romancista de mão cheia, que sabe contar uma história de sabor bem
brasileiro, capaz de seduzir qualquer leitor. Mas que não é um ingênuo,
e sabe também como armar a sua narrativa, de modo a oferecer uma
leitura que pode ser feita em mais de um nível; que pede um leitor
cúmplice, participante; a seu modo, também, recriador; quase um
co-autor. Porque é preciso merecer o livro. Um livrão, apesar de magro
em número de páginas. Mas cheio de sustança, em cada uma delas. Livro
para ficar. Um triunfo.
Este é um romance “cheio de atalhos”, para nos
valermos de expressão do autor sobre a “conversa encabulada” do
personagem Gil com Chico, seu pai. Porque é por atalhos que Antônio
Torres chega às evidências. Sempre foi mais ou menos assim nos livros
anteriores. Nesta Carta ao Bispo, em particular, os atalhos
se condensam, a plasticidade é menos difusa (em Antônio Torres a
plasticidade é de meia-sombra e reversamente revelada) e a angústia
humana, mais tensa e desesperante.
Num jogo curioso em que o tempo se retrai e se amplia em constante
fusão e repulsão e o espaço geográfico vai da beira do regional à
expressão ampla do universal, Antônio Torres alcança um nível de beleza
literária onde tudo é alucinadamente palpitante. Desde a linguagem
(fluente, contida, desestruturada, límpida e a fotográfica, mas sempre
uniformizada no todo) ao epicentro da história – Gil – e tudo que dela
(dele) emana, demanda e denuncia. Porque Gil é ele e sua consciência. Em
essência, é isto. O conduto narrativo, em muitos pontos, está a
indicar isto. A consciência, tal qual independente personagem, está
sempre a acusá-lo, a lembrá-lo e a estudá-lo. E Gil, por sua parte, a
viver os desencontros da vida e denunciar, pelo comportamento, as
injustiças e desconcertos dela.
Daí as meias-voltas (atalhos), as muitas faces formais, para que o corpo ficcional se transfigure por inteiro.
Aqui a trama não se compõe nem flui num suceder narrativo natural.
Muitos são os fragmentos, porque o que importa é a abordagem ficcional
vista de vários ângulos, para que se alcance, em maior profundidade, o
mundo de Gil e seus tormentos, o mundo (atualíssimo) que o cerca, com
suas injustiças. Gil é apelo de salvação neste mundo conturbado. E ele
próprio é personagem sem apelo. Nem o Bispo (a luz do túnel) o salvará,
embora o Bispo implore, peça e chame.
Carta ao Bispo é obra para ser lida e sentida. Não temos aqui propriamente uma história,
antes o espírito conturbado de uma época através de uma personagem.
Porque Gil é o espírito da Bahia e é um pouco de todos nós e de nossos
tormentos.
Livro bem-escrito, como tudo o que vem de Antônio Torres, e que pede
espaço maior para análise mais detida, porque, apesar do pequeno
número de páginas, estende-se ele da mais simples concessão ao limite
perigoso da legibilidade, sem todavia transpô-lo. Aí está o difícil
na arte literária tão nobremente realizada por este escritor de pulso
que já alcançou (e com este livro soma mais um pouco) o justo lugar de
destaque na moderna literatura brasileira.
Jornal do Brasil, Caderno B – Rio de Janeiro, 06/10/79
Norma Couri
Fosse pelo pai, este primeiro filho dos 13 que
teve estaria até hoje na enxada, pé na terra úmida do Junco, sertão da
Bahia. Mas o menino aos três anos lia livro de Igreja, aos oito Castro
Alves, aos poucos devorou toda a estante de um tal mestre Zezito,
fogueteiro, e foi estudar em Lagoinhas. Não demorou muito, trocou a
enxada pela Olivetti vermelhinha que quebrou muitas vezes.
Aos 39 anos e muitas máquinas depois, Antônio Torres publica seu quarto livro e avisa que o menino já está nascendo. Chama-se Carta ao Bispo.
Quem escreve a carta é Gil, o personagem principal, depois de
envenenar-se com formicida encontrada na cozinha do bispo. A partir daí
é a caminhada pelo corredor da casa, e cada passo é um capítulo desse
romance “brasileiro na latitude da sua consciência”.
Uma queixa ao bispo é a última coisa que nos-resta, quando ninguém
mais está disponível, ninguém mais escuta. Para Gil, a carta foi o
limite de sua resistência física, o lamento deixado nas marcas de sua
mão no corredor da casa.
O personagem é o brasileiro derrotado. O político de interior que
não se elege prefeito e vira cabo eleitoral de um cachaceiro, tocador
de viola, no final vitorioso. Gil dá um desfalque, está com processo
correndo na Justiça, sabe que a opção é a cadeia ou a morte. “Só que
ele resiste”, diz Torres. “Um dado novo, surpreendente até para mim.
Sabe, o livro é como filho, a gente cria de um jeito, ele cresce de
outro”.
A surpresa foi maior porque Torres sabe ser este quarto livro continuação de um processo iniciado com o primeiro, Um Cão Uivando para a Lua (o brasileiro vencido pelo Rio de Janeiro), emendado no segundo, Os Homens dos Pés Redondos, e pelo terceiro, Essa Terra.
Torres levou 30 anos para escrever o primeiro livro, uma história que
não acabava nunca. Porque era tudo um livro só, ele percebeu: “Faulkner
disse que a gente parte para o livro pensando poder contar tudo, mas
vai morrer achando que não conseguiu”.
– A gente é menor do que o próprio material. Por exemplo, a
influência católica alastra-se por todo o meu livro, graças ao fato de
eu ter ganho o meu primeiro salário como sacristão. Depois rompi com a
Igreja, revoltado (como Gil) pela maneira como os padres enriqueciam com
a pobreza do sertão. Mesmo assim estou impregnado de religiosidade.
Carta ao Bispo são 128 páginas escritas em pedaços
de madrugadas, nas férias, nas sobras de tempo, durante dois anos. “Às
vezes”, diz Torres sorrindo, “roubando tempo do patrão”. Há muitos anos
no Rio, trabalhando em jornal e publicidade (hoje é diretor de criação
da Denison), Torres ainda se assusta com a cidade. Tem “a visão do
medo, da loucura, do isolamento, da pressão, da prisão e que ela nos
conduz”. E acha muito difícil viver aqui sem dor.
– É duro ser escritor no Brasil. Viver na Zona Sul, andar três
quilômetros e de repente ver o Nordeste, a roça vindo para a cidade.
Conviver com a Europa e o século XVII que estão ao nosso lado.
Para Torres, o grande romance desde século vai ser latino. Conversa na Cadetral, de Vargas Llosa, Pedro Paramo, de Juan Rulfo, Grande Sertão,
de Guimarães Rosa, ou qualquer outro. “A América Latina tem muito a
dizer. Uma realidade nada uniforme, muito rica, com uma língua marcada
por incríveis diferenças regionais. Jorge Amado já disse que operamos
na periferia. É verdade. Não estamos na órbita do poder dos grandes
centros; nossos isolamentos é conseqüência do subdesenvolvimento. Daí
nossa força. Há uma brecha, na medida em que não obedecemos as leis do
consumo. Qualquer dia desses vão olhar pra gente e dizer que valemos
alguma coisa”.
Antônio Torres tem dois filhos pequenos (Gabriel, 5, e Tiago, 2
anos), uma “casa de baiano” (ajeitada pouco a pouco por ele e a mulher
Sonia nos muitos apartamentos por que passaram no Rio) e uma pergunta,
sempre sem resposta, da qual tira impulso para continuar. “Escrevo, no
fundo, para exercitar algumas respostas”.
Trás nos ombros, como todo escritor brasileiro atual, o peso de ter
nascido depois de José Lins do Rego, Lima Barreto, Machado de Assis,
Guimarães Rosa, Graciliano Ramos. Vira mais um copo de uísque, e lembra
que o peso é como o da máquina de escrever, simbolizando, no fundo, a
enxada que ficou no Junco, a responsabilidade social imposta pelo pai.
Outro dia voltou lá, relembrou casos, como os das desculpas para se
afastar do Junco: qualquer inauguração de cantoneira para santo,
qualquer reza para moribundo. Na poeira levantada pelo primeiro
caminhão, a oportunidade de fugir da enxada e chegar à escola rural
mais próxima, a 3 quilômetros de casa.
Antônio Torres não tem parado no caminho, não tem deixado o peso do passado atrapalhar. E falando mais dos nossos escritores gigantes do que do assimilado no Junco, ele diz:
Jornal do Brasil, Caderno B – Rio de Janeiro, 06/10/79
Jorge de Sá
Desde o seu romance de estréia, Antônio Torres
mostrou-se propenso a realizar uma obra de características marcadamente
nacionais. Centrado no eixo do regionalismo e apoiado na riqueza da
oralidade, ele vem captando não apenas as implicações do homem rude com
a sua terra, mas principalmente a forma brutal que conduz o brasileiro
a uma possível compreensão Don osso processo histórico. Assim, seria
quase impossível classificar a obra do criador de Um Cão Uivando para a Lua
somente de acordo com uma das áreas do ciclo baiano. Com os pés no
chão seco do Nordeste e com a alma impregnada pelos nossos problemas
característicos, Torres recria personagens tão vivos quanto cada um de
nós. Portanto, sua despreocupação com a universalidade do romance
reflete uma fecunda brasilidade só alcançada pelos maiores escritores
da nossa literatura. Consciente de que a arte literária não se faz com
técnica apenas, ele mergulha por inteiro na construção de seus textos,
percorrendo com seus personagens o difícil caminho que vai da
consciência ingênua, em que a alienação nos coloca a serviço de
ideologias estranhas a nós mesmo, até uma consciência critica, que
problematiza o nosso real, conduzindo-nos a uma ideologia coerente com
os interesses do povo brasileiro.
Logo se a obra de Torres foge do universal (no sentido apenas
estético), cada vez mais se aproxima do centro nervoso de nossos
impasses, tornando-se espelho de uma realidade latino-americana,
repensando todo o seu contexto. Por essa razão, cada novo trabalho
reescreve o anterior através de novos ângulos, conquistando novas
formas de melhor avaliar as implicações sócio-econômicas no confronto
entre a cidade e a roça. Nesse processo, Carta ao Bispo é a sucessão natural de Essa Terra. Mas é, também, a sua ultrapassagem.
Nessa ultrapassagem, o novo romance de Torres coloca em cena um
aprendiz de político, apaixonado por seu povo e desejoso de arrancar
Malhada da Pedra da marginalidade a que foi condenada. Verdadeiro
“cavaleiro andante se torna viagem”, Gil amadurece e se desgasta
tentando concretizar seus sonhos quixotescos. Sozinho, esmagado pelas
armadilhas dos poderosos, sé lhe resta o suicídio como afirmação da sua
luta e grito de alerta àqueles que constroem o destino de seus filhos
com “metros de pano, litros de farinha, quilos de açúcar e nacos de
carne”. Para que seu sacrifício não seja inútil, decide escrever ao
Bispo Dom Luís, seu amigo e confidente. O conteúdo da carta, porém,
será um eterno segredo.
Neste caso, que interesse pode despertar um romance cujo titulo
anuncia uma carta que jamais será lida por nós? É exatamente nessa
estratégia que o leitor se vê envolvido. Num ritmo vertiginoso,
acompanhamos o fluxo da memória com que Gil reconstrói sua vida. Cada
fragmento, cada fato que marcou a tumultuada existência do protagonista
é um enigma a ser decifrado. No trajeto da cozinha à sala, verdadeiro
corredor de lembranças, Gil espalha os estilhaços de ma verdade que
pertence ao mundo. Na medida em que avançamos na leitura, percorremos
as mesmas etapas e vamos recolhendo as frases que constituem o texto
ignorado. E nos surpreendemos cumprindo a mesma função do
escritor-narrador: selecionar e sintetizar para alcançar um todo. A
mensagem cifrada passa a ser reescrita, fazendo de cada um de nós seu
verdadeiro emissor à procura de receptores capazes de ouvir um grito
parado no ar desde os primórdios da nossa colonização.
O Romance tem aquela prerrogativa maior do Romancero, que é a linguagem extensiva,
dilatadora e elastecedora das tensões verbais intrínsecas à narrativa.
O romance moderno, fragmentou essa prerrogativa maior, fruto da
herança e dos ensinos da traditio e instaurou formulações novas para extensão ou contração do jogo narrativo.
No Brasil, essa ruptura com a linearidade dos processos narrativos
só veio a acontecer, em definitivo, a partir do único realmente
primoroso romance de Machado: “Memórias póstumas de Brás Cubas”. Isso
depois de Sterne, de Scott, de James e principalmente, depois de
clássicos do romancero adquirirem edições internacionais, como o caso do
“Cid”.
A partir de Machado a situação se acomoda até Callado (que incorpora
o pontilhismo jornalístico à formulação da narrativa do romance em um
livro inigualável. “Kuarup”) e João Antônio. O que acontece então é uma
explosão de postulações narrativas realmente impressionantes e com
diversos autores. Abel Silva, Roberto Drummond, Carlos Gurgel, Álvaro
Faria se inscreveram nesse fluxo fantástico que injetou algo novo e
vigoroso na modorra falso burguesa do nosso romance anterior a essa
fase.
Antônio Torres é um romancista que alia uma consciência fundamental
dos processos narrativos historiais do romance (o que se evidencia pela
rigorosa arquitetura da obra) a um sentido rítmico impressionante que
sabe onde distender ao máximo a carga da linguagem: onde deve contê-la
máxima ou mínima, em sua tensão de significâncias. Desde “Um cão
uivando para a lua” que o itinerário inventivo de Torres se abriu,
colocando-o um passo adiante do moderno ficcionismo latino-americano,
situando-o pari passu com Cortazar, Astúrias e Llosa.
“Os homens dos pés redondos” é uma alegoria impressionante: tal como
“Essa terra”, talvez a mais profunda análise do millieu
latino-americano.
“Carta ao Bispo” é uma excitante aventura narrativa, em
saudabilíssimo exercício de proposições narrativas, aliado e correlato a
uma penetração marcante de um fenômeno sócio-político visceral na
formação do homo brasileiro: a odisséia interior da
Bahia, e sua desagregação interna, à medida em que a convivência com o
fato político (ou pliticoso comme il fault) vai colocando-o em xeque com sua estrutura íntima de emoções e expectativas.
Gil é símbolo. Torres retoma aqui ou melhor, amplia aqui aquela sua
tendência fabulativa esboçada nas suas obras anteriores. No entanto, o
peso do seu novo livro é reforçado pela aguda inventiva que espaceja as
várias formas de captação das emoções em uma manipulação atenta e
segura do apparat lingüístico.
“Agora ele está só, tão desgraçadamente só quanto no dia em que
nasceu. Mas agora ele dispensa a parteira e já não precisa mais berrar
ao mundo que está só”.
Gil é um símbolo. Mas que o personagem, através do qual se repassa
toda a agonia do existir defasado, distendido, Gil é a clave da
exploração narrativa de Torres. A alquimia de correspondências entre o
agônico mover-se do personagem e o distanciamento critico do autor
permite ao leitor, pela disposição e/ ou montagem ideogramática dos
blocos narrativos (onde mesclam-se a narrativa clássica, o discurso
interior e o fragmentarismo icônico) uma visão plurimorfa e plurívoca
de um processo que in facto ocorre com o interior de Gil, o símbolo.
O romance possibilita uma recriação, do fluxo real dos sentimentos
sob o ritmo ou compasso da intervenção crítica, analítica do autor. No
caso de Torres, essa intervenção se faz em todos os níveis e instantes
do processo narrativo, abarcando e abrangendo as mínimas feições
tocadas pela sua analítica.
“Parecia até um desperdício, esta cidade: tanta árvore,
tanta fronde, tanta franja, tanta flor a derramar-se sobre os alegres
portões ensolarados que não escondiam a estupidez de honestos
ferroviários que comem e cagam a fazem filhos e morrem no fiado,
igualzinhos aos bêbados do petróleo, essa horda fedida e barulhenta que
chegava de noite estourando gasolina, detonando dinheiro e enchendo a
cara e depois caía na cama até a hora da buzina, levantar, lavar a cara
e seguir para o campo do petróleo e uma vez na vida toma banho, uma
vez na vida tem uma folga, troca os trapos e segue atrás do trio
elétrico, crente que a vida é boa, pelo menos uma vez por ano”. (Página. 32).
O que mais define a excelência do criador é a sua disposição para o
claro-aberto. A palavra prédispõe o que a possui, isto é, a utiliza,
para a clarificação dos processos interiores, onde a energia
existencial se move no silêncio, como se fosse plâncton e dunas. O
dizer do romance postula antes de qualquer nada a atenção às grandes
massas de significados (i.é.. de energia simbólica) que se movem no
entre mear dos trechos. Clarificar o uso da palavra é abrir-se a toda
manifestação do discurso criador, é o que a critica academicista chama
de perfeição estética.
Torres mergulha no seu universo de significâncias com a disposição
do guerreiro. O pique que imprime a sua narrativa é o equivalente ao
pique interior das suas indagações enquanto e como criador. Li o livro n
o mesmo dia que recebi, sem interrupções, em uma hora e meia. Terminei
a leitura sem fôlego. A dose exata das marcações narrativas, a sutil
trança que o real e a critica desse real tecem e retecem. Vão
construindo um bloco maciço de emoção e frustrações, um mover-se
uníssono de vida e antivada.
Pouco importa saber se Gil morre (após tomar uma superdose de
formicida Tatu) sem conseguir o tão almejado contato com o Bispo, ao
qual sempre desejou (desejava?) escrever uma carta. Morre como um rato,
uma barata, um homem. Simplesmente morre. O comentário do Bispo,
incidentalmente nos braços de quem poderia ter expirado, não poderia ser
mais adstringente:
“Não sei mais se acredito em Deus ou se este homem tem sangue de cavalo.” (Página. 107).
O principal na criação de Antônio Torres é a seriedade proposicional
de seu trabalho. Qualquer proposição (ensina-nos a lógica das formas)
(formas que, no entanto, independem da lógica que o raciocínio
ordenador engendra) possui em si a trajetória anterior de um estado ou
vários estados de coisa. O romance possui atrás de si toda a história,
toda ontologia. Torres demonstra conhecer bem essa realidade
fenomênica: conhece-a e penetra em sua corrente com a mesma desenvoltura
de quem sabe as possibilidades e limites (infinitas possibilidades,
infinitos limites) do ser, da existência, do sofrimento e da paixão.
Jornal O Norte – João Pessoa, Paraíba, 02/05/83
Hildeberto Barbosa Filho
Se Percy Lubbock escrevesse, hoje, o já clássico “A Técnica da Ficção”, não poderia prescindir do farto material disponível na narrativa de Antônio Torres,
mormente em “Carta ao Bispo”. Sobretudo porque, privilegiando as
formas de composição, ou seja, as estratégias do foco narrativo, teria,
no aludido romance, as mais equilibradas experiências de uma narrativa
moderna. Centrando a ação nos limites de um tempo diegético
extraordinariamente curto (os instantes finais do personagem “Gil” que
decide suicidar-se), o autor recorre a pluralidade dos recursos
narrativos, principalmente no tocante ao terreno dos pontos de vista,
buscando diluir a concentração dramática da ação principal. E,
aguçando-a em outras seqüencias episódicas, consegue fornecer uma visão
macroestrutural da trajetória do personagem, instaurando, assim, os
alicerces do edifício romanesco em lugar de tecer os fios
articulatórios da estrutura do conto.
Daí a narrativa em primeira pessoa, calcada sobremaneira nos dados
da memória; a narrativa em terceira, mantendo a unidade da trama, e a
presença recorrente do fluxo da consciência joyceano, remetendo para o
universo caótico em que se debate o personagem. Nesse caso, se a
narrativa opera, ordenadamente, um primeiro nível (o da fabulação), vai
apontar, no espaço entretextual, para uma inquietação ideológica
subjacente, traduzida na permanente indagação a respeito da condição
ontológica do ser humano. Conseqüentemente, um exercício de narrativas
superpostas, travando os rumos da narração e da reflexão.
Por isso, no texto do escritor baiano, uma dimensão além da estética –
o sentido filosófico. Em meio aos momentos cruciais do delírio da
personagem, a linha episódica é interrompida (o que se faz constante na
obra) por elucubrações dessa jaez: “O mundo está rodando. O mundo,
mamãe, é um tonto, um alcoólatra de ressaca, um cego no meio do
tiroteio. Esta vida é uma gangorra. Mas eu ainda quero rosetar.
Rose-tar, mamãe. Cravar o espinho do cravo na roseira do mundo, cravar o
meu espinho numa rosa aveludada, macia e cheirosa, cheirando a
mulher.”
Logo, importa revelar em “Carta ao Bispo”, não somente a
problematização conteudística das motivações recorrentes, isto é, o
fluxo migratório e as suas irradiações temáticas: solidão, medo,
opressão etc, como também o corte social na micro-região do “Junco”
baiano, porém, fundamentalmente, o discurso maior sobre a existência. O
que, diga-se de passagem, eleva a ficção de Antônio Torres a um plano universal.
Sobre “Carta ao Bispo” Veja – 5 de dezembro de 1979
Caio Fernando Abreu
A literatura brasileira, na década de 70, foi
pródiga em contistas, um tanto avara em romancistas. Uma das poucas (e
valiosas) exceções é o baiano Antônio Torres. Desde sua estréia, em
1972, com “Um Cão Uivando Para a Lua”, ele vem trabalhando nesse
terreno. Depois de publicar “Os Homens dos Pés Redondos” em 1973, veio o
grande sucesso de “Essa Terra”, em 1976. Fiel ao romance, ele publica
agora este “Carta ao Bispo” – um livro pequeno, em número de páginas,
mas tão denso, tão fluido, que pode ser lido de um fôlego só, ou
lentamente, saboreando a linguagem. Em qualquer das duas hipóteses, o
leitor descobrirá significados novos e surpreendentes.
“Escrever é sangrar”, dizia anos atrás João Antônio, autor de
“Malagueta, Perus e Bacanaço”, num de seus apaixonados depoimentos. É
essa, principalmente, a sensação provocada por Antônio Torres. Ele
sangra, sua, palpita e chora, em sua urgência de se expressar. Muitas
vezes dispara, descontrolado, e a frase esquece vírgulas, parágrafos,
toda sintaxe tradicional, preferindo acompanhar a memória e a emoção da
personagem, Gil, surpreendido pelo autor numa situação-limite, extrema
em que vacilam as fronteiras entre vida e morte, lucidez e loucura,
coragem e covardia. Como a própria consciência da personagem, a
linguagem tenta se organizar, e novamente se fragmenta, fracassa.
Perdedor da vida, resta a Gil a vitória, ou pelo menos a escolha, da
própria morte. Ao autor, por outro, segundo a epígrafe de Nietzsche,
resta apenas arte, para “não morrer de verdade”. Essa arte, em Antônio
Torres, é freqüentemente atingida, em cheio, através da palavra escrita.
AMOR DESESPERADO – “Carta ao Bispo” é a história de uma derrota. A
derrota de Gil, “cavaleiro-andante de torna-viagem, sempre encalhando em
algum lugar”, é também a derrota do homem brasileiro do nordeste, que
fracassa mesmo quando tenta ser solidário com seus irmãos de fome e
seca. Empenhado na luta política, na procura do amor, tentando ser
responsável pelo destino dos outros, Gil só consegue assumir sua
integridade no momento em que decide ser dono do próprio destino. A
saída, então, é o suicídio. Se é certo ou errado, não importa: “O errado
e o certo não é nem o errado nem o certo. Estou na minha estrada”.
Assim como sua personagem, o autor também assume, ou reafirma, seu
destino de escritor, com a publicação deste livro. E de forma cada vez
ainda mais segura, no extremo oposto do suicida Gil. Conquistando pouco a
pouco uma linguagem e um universo próprios, inconfundíveis, Torres
parece estar se preparando para ocupar um dos espaços deixados vagos com
a morte de romancistas do porte de Clarice Lispector, Guimarães Rosa,
Osman Lins. Voltado – sem proselitismos, o que é raro – para a realidade
brasileira, ele é capaz de dizer com simplicidade coisas como “Olha as
varandas, olha os coqueiros, bananeiras no quintal, fuxicos no portão
(…) Terrinha bendita, terrinha maldita, gente feinha, gente bonita,
lugarzinho que a gente reclama mas gosta, compadre”.
Em torno desse amor – desesperado, talvez suicida – por seu país é
que gira a bela “Carta ao Bispo”, na mesma linha do anterior “Essa
Terra”. Com a circunstância de que, em Torres, esse amor nasce mais do
coração, das vísceras, que da cabeça, do raciocínio. Daí a paixão, o
calor, o encanto poderoso do livro, e a maneira como ele atinge o leitor
pelo caminho da emoção. Suas dúvidas tornam indispensável refletir
sobre “este país trocado: cada macaco no seu galho”. “Carta ao Bispo” é
um livro que, oportunamente, desmente a fragilidade da atual literatura
brasileira, além de confirmar e ampliar a vigorosa posição de Antônio
Torres dentro dela.
“Carta ao Bispo” Folha de São Paulo – 21 de outubro de 1979
José Monserrat Filho
Torres começa com Nietzsche, de epígrafe:
“Resta-nos a arte para não morrermos de verdade.” Ou seja, o homem só
consegue transcender através da arte, que seria outra realidade, criada e
moldada pelo próprio homem a seu bel-prazer. Na realidade mesma, no
mundo concreto em que vivemos, não há chance de transcendência. O homem
não pode mudar o mundo para melhor, porque este não obedece à sua
vontade. O homem é objeto, não sujeito.
A derrota de Gil, beijando um copo de veneno aos 40 anos, após
escrever uma carta ao Bispo, viria, mais uma vez, confirmar esta
impotência universal, agora num país especialmente propício ao fracasso
humano, devido a condições sociais demasiado injustas e massacrantes.
Até que ponto Torres é fiel a Nietzsche? Até o desespero de uma visão
solitária do mundo. A partir daí, há um escritor poderoso que constrói
sua arte, não para fugir do mundo concreto, mas para enfrentá-lo, saber
como ele é e como funciona na alma das pessoas. Há uma terra palpável,
um povo “escabreado” que vive de cabeça baixa, uma revolta latente e uma
vontade de lutar – “Queria salvar um lugar e um povo”.
Em cada frase, Torres procura furar e penetrar a realidade brutal,
com aquela linguagem revoltada que lhe vem das vísceras e que está cada
vez mais bem escrita. O resultado é um romance da melhor tradição
brasileira e, ao mesmo tempo, novo, agitado e contraditório, como o dia
de hoje.
Gil se mata, mas quem garante que ele morreu? “… este homem tem
sangue de cavalo.” Haverá só um Gil? A impotência persiste, é verdade.
Empenhado na luta política, Gil não tem poderes nem para dar um emprego
de cobrador de ônibus. Sua morte é a morte do populismo, do herói
solitário, do líder que deseja servir o povo sem mobilizar o povo.
O suicídio de Gil repete o de Getúlio, 25 anos depois. Mas num outro plano de consciência:
“– O povo de quem fui escravo não será mais escravo de ninguém (…)
– Invente outra coisa, rapaz. Fale qualquer outro troço. Isso aí ninguém acredita mais”.
Desmascarada a demagogia e a promessa vã, mesmo bem intencionada,
chega-se mais perto da verdade, da necessidade real: “– Esta noite tive
um sonho. Foi um sonho lindo. Sonhei que todo mundo vai ter um palmo de
terra onde cair morto”. E mais perto de como chegar lá: “– Quem é que
diz o que é que pode? São eles ou são vocês?”
A luta exclusivamente pessoal é posta em cheque: “Para não ter caído
na vala comum, com toda a certeza ele teve que estudar muito. E teve que
ter muita fé em si mesmo. Será esse o segredo, Dom Luís? Fé e esforço,
esforço e fé? E quando a cabeça fraqueja e a gente perde a fé?” Sobre as
cabeças e apoiado nelas, um sistema a todas transforma em “bagaço”:
“… e a grande cidade pergunta: – O que é que você sabe fazer? E antes
mesmo que eu consiga responder, o berro estronda na minha cara
atarantada: – O próximo. Quem é o próximo? ‘Boa sorte ao próximo’,
penso, enfiando o rabo entre as pernas”.
Solidário com os oprimidos, Gil morre pensando neles: “Abraços.
Adeuses. Ao povo da roça, à ribanceira da cidade. A ribanceira não tem
dinheiro em banco, saldo médio, nem carteirinha do Tênis Clube. A ela os
buracos e as ruas escuras”. O “incorruptível” Bispo Dom Luís, no
entanto, acende a esperança: “as forças que hoje lutam contra o bem
comum, e contra todos aqueles que desejam o bem comum, não são eternas”.
Que fazer, então?
“Por enquanto a única coisa que adiante é você procurar outro
emprego. Depois entre para o Sindicato, se junte, se reúna aos seus.”
Mas o próprio Torres parece estar imerso no individualismo, este vôo
solitário que “desaba no abismo”. Ao contrário de Nietzsche, porém, ele
não se aliena. Mesmo sem ver outro fim neste “vôo no tempo”, prefere
voar e cantar “enquanto resistirem as asas”.
O Globo, Rio de Janeiro – 01/11/1981
Virgílio Moretzsohn Moreira
Antônio Torres nos dá, pela Editora Ática, Adeus,
Velho, o seu quinto livro. Nas mãos do leitor a pentalogia desse
escritor baiano que compõe o seu gesto de insubmissão ao mesmo tempo
que escreve a sua palavra.
Nesse seu último trabalho, novidade: a densidade poética. E uma
outra: o manejo estético da língua. De Faulkner para frente (autor da
predileção de Antônio Torres), o maior avanço que se teve na construção
ficcional foi a fragmentação da narrativa, recurso que o baiano usa
desde Os homens dos pés redondos.
Adeus, Velho é uma história de uma família do interior da Bahia que
vive em situação difícil, afastada dos bens civilizatórios. No meio
dela, emerge Virinha, que é repudiada pela família após ser
desvirginada. Indo para a cidade (como também aconteceu com o autor),
ela conquista seu espaço. Seus irmãos – são aos milhares – chegaram e
deschegam, formando um complexo de amor e ódio fabuloso, uma esteira
viva de desarranjos emocionais que seguram o leitor. A verdadeira
literatura é aquela que provoca, condiciona e deflagra e que Tolstoi
chama de “contágio psicológico”, e esse está bem presente na trama de
Torres.
No romance Adeus, Velho o presente é apenas a extremidade do
passado, como queria Bergson. Os personagens vão e voltam, e nesse
caminhar, que a ponto como o mesmo percorrido por Hesse, tudo se dá. Virinha é, ao mesmo tempo flechada a amada pelos irmãos, numa curiosa sistematização freudiana, muito antiga, muito atual.
Logo no início do livro, exatamente na pagina 11, um momento de
beleza poética: ”Uma nesga de terra reclinada, inclinada, uma cama
feita pelas chuvas e agora oferecida a eles dois”. Arrebentadas as
costuras do mundo rural, Torres desembarca no urbano. Mas isso, talvez,
seja matéria para o 6º romance.