Ibéria ou nem só de propaganda vive o homem

Tribuna de Imprensa, Rio de Janeiro
João da Penha

“Guardamos a esperança para os que se desesperam.”
Patrice de La Tour du Pin

Ulisses é um romance pertencente à classe dos romances em forma de sonata, estruturado em tema, contra-tema, encontro, desenvolvimento, finale, segundo as palavras de Ezra Pound acerca do muito falado e pouco lido livro de Joyce. Ressalvadas as devidas proporções, podemos dizer o mesmo de Os Homens dos Pés Redondos, de Antônio Torres. A narrativa de Os Homens… se desenvolve em diversos tempos, com uma aparente desconexão entre si, num estilo que lembra vagamente o do “Roman-fleuve”, com episódios encadeados por intrigas diversas, mas cujo final o leitor habituado à moderna técnica narrativa, vislumbra logo às primeiras páginas.

Antônio Torres conta uma história (se ainda é lícito aqui, o uso do termo), em moldes nada tradicionais, usando de uma técnica romanesca que denuncia suas origens em Joyce, Faulkner e, numa certa medida, no “noveau-roman”, influências talvez nem sempre conscientes, mas que o autor já prenuncia em “Um Cão Uivando Para a Lua”, seu livro de estréia.

Em “Os Homens…” não há ação, mas sim uma persistente análise psicológica, interessando fundamentalmente os porquês dos atos e suas conseqüências.

Aqui e ali uma certa insistência descritiva que não dando o tom geral da obra, nos lembra, entretanto, alguns resquícios, propositais ou não, de uma técnica naturalística, influência antiga, talvez, que o autor insista em conservar.

A utilização da moderna técnica ficcional entre nós não é novidade, como de resto, em parte alguma. Muitos dos nossos autores já a exploraram, se bem que na maioria das vezes, de maneira pouco satisfatória. É aí que Antônio Torres supera seus pares, quase sempre claudicantes pela desmesurada e inconseqüente preocupação de criar obras que possam rivalizar com suas com suas afins de outras latitudes, naufragando num formalismo amorfo, estéril e maçante. Torres maneja com pleno conhecimento a linguagem literária, sabe até onde pode levar os experimentos vanguardísticos na construção de um universo ficcional, não se deixa seduzir pelo canto de sereia de um experimentalismo gratuito.

Os Homens… apresenta alguns pontos de contato com o romance de André de Figueiredo, Labirinto, ganhador do Prêmio Walmap 1971.

As semelhanças são visíveis na construção e linguagem que os dois romancistas utilizam.

As diferenças, entretanto, são ainda mais visíveis e favoráveis a Antônio Torres. O Labirinto, não propriamente uma obra autobiográfica, situa-se mais no gênero confissional, vive mais das experiências estritamente pessoais do seu autor.

Já o livro de Torres é o depoimento de um aqui e agora nada animador, não se perdendo num subjetivismo auto-gratificante. Ao estabelecer esse confronto entre as duas obras, não estou advogando, nenhum realismo objetivista (vale aqui, a redundância), com autores que não são artistas, mas tabeliões, ou psicopatas que reprimindo suas emoções construam uma realidade na qual não intervenham um instante sequer. Isso é falso. O artista só merece esse título, quando, partindo de sua experiência pessoal, constrói uma supre-realidade que se apóia nalguns pontos de semelhança com a experiência que todos temos do mundo objetivo, mas nunca construindo, deste, uma réplica. O novo livro de Antônio Torres ilustra o que estou querendo dizer.

Infelizmente, não posso achar que a minha dor é a dor do mundo e enclausurar-me num solipsismo, julgando que a realidade sou eu e nada mais.

Manoel Soares de Jesus, o herói ou anti-herói de Os Homens… ou suas projeções, como Emílio, são nossos conhecidos. A porta de Ibéria, que Antônio Torres não abre, é a de saída. Sutil. Mas Ibéria está cheia de outras sutilezas, algumas claras como a estupidez de muita gente.