Jornal de Letras – 1º Caderno – Junho, 1974
Marcos Santarrita
O primeiro romance de Antônio Torres, Um cão uivando para a Lua, sem dúvida a melhor estréia de 1972, transformou-se rapidamente num dos livros mais vendidos no País. E o segundo, Os homens dos pés redondos, repete o feito – tanto em êxito como em qualidade.
Torres é, visivelmente, o anti-literato. O primeiro romance, a estória de um nordestino criado na roça que vem para a cidade grande e acaba transformando-se num intelectual neurotizado, não só pelo choque de culturas quanto pela sufocante atmosfera do grande centro, é um milagre de equilíbrio entre o urbano e o regional. Além disso, por sua própria concepção – e apesar de pequena – a obra consegue criar um microcosmo que representa os dois Brasis já observado por Euclides da Cunha, mas até hoje pouco explorado pelos nossos ficcionistas. Torres consegue pular de um gênero para outro, fundi-los, interiorizar-se na análise da psique humana, sem cair nos cacoetes de nenhum deles. Enfim, uma obra tão equilibrada que, levando-se em conta a parcimônia de meios do autor, mais parece um acidente.
O segundo livro, mais ambicioso, sai do plano puramente individual para abranger uma gama mais ampla de tipos, e também aqui o escritor mantém o seu poder de criar personagens sólidas e convincentes, embora prossiga na vocação confissional do primeiro. A estória, se passa num país fictício, chamado Ibéria – fora o nome, não há nenhuma tentativa de disfarçar a identidade de Portugal –, e nela o autor funde, mais uma vez admiravelmente, os conflitos pessoais dos personagens com as características opressivas do regime português recentemente liquidado, sem jamais deixar o conteúdo político passar à frente ou mesmo ameaçar o existencial. Não se trata de um livro político, embora seja sem dúvida, um romance de consciência.
Outro escritor, mais literato, possivelmente não conseguiria escrever no tom confissional de Torres sem cair no diário pessoal, sem maior interesse como literatura, sem atingir um nível universal. E é justamente aqui que entra a vantagem – claro que apenas em casos como o dele – do primitivismo do autor: ele é tão sincero, tão puro, tão isento de ismos literários, que seus livros escapam de todos os perigos do gênero confissional e impõe-se como obras acabadas, definitivas.
Claro, há aqui e ali alguns deslizes, às vezes sérios – a começar pela linguagem –, mas que só fazem autenticar a validez das obras. No último livro, particularmente, parece que o sucesso demasiado fácil do autor levou-o a uma maior autocomplacência, a desleixar-se um pouco da autodisciplina visível no primeiro. Recursos como omitir o nome de um personagem principal, designando-o apenas de O Estrangeiro, dificilmente funcionam numa obra realista – e Torres apesar de todas as nuances oníricas de seus livros, é um realista, no sentido lukacsiano do termo. No fim do romance, o escritor leva a autoindulgência a ponto de referir-se a si mesmo como juiz supremo de um dos personagens, interrogando-se diante do leitor se deve matá-lo ou deixá-lo continuar vivendo.
Mas estes são pequenos senões, até certo ponto necessários – quando apenas senões – para dar uma dimensão humana à obra. O que parece claro, já neste segundo livro, é que Torres veio para ficar.