Veja, 24 de outubro, 1973
Leo Gilson Ribeiro
Anatomicamente, o romancista Antônio Torres passou da garganta de seu livro de estréia, “Um Cão Uivando para a Lua”, para a elementaridade dos pés, no seu segundo romance. Literalmente, foi um passo à frente. O que o volume inicial tinha de emotivo, de visceral e até mesmo gástrico foi habilmente extirpado numa cirurgia de estilo mais livre e menos adiposa.
Evidentemente, a literatura de empenho político-social é a mais difícil armadilha para um talento que germina. Nela fracassaram incontáveis Guevaras juvenilmente esfacelados pela falsa estratégia de um lirismo incontido, de uma solidariedade humana panfletária, de tristezas e revoltas que se extinguem no adjetivo e na interjeição como rajadas suicidas de metralhadoras solitárias. Neste novo livro, Antônio Torres depurou muito a explosão de sua primeira incursão, refinando-a e assim atingindo melhor o alvo.
Choque de raças – O naturalismo de “Um Cão Uivando para a Lua” era um veículo válido ou pelo menos aceitável para a sinceridade emotiva da rebelião arrebatada de um jovem – contra um status quo hediondo que “coisifica” o homem através do Estado, da publicidade, da massificação. Com “Os Homens dos Pés Redondos”, a linguagem surpreende por um veio que não existia no livro anterior e que possivelmente é a melhor tendência latente do escritor: a inventividade ilógica, o vôo da imaginação que não chega a ser o chavão do “realismo mágico” de um Gabriel Garcia Marquez. Sem ter afinidade com a metáfora densa e sutil de um J. J. Veiga, Antônio Torres, no entanto, pelo seu arrojo ainda hesitante, situa-se perto de um Arreola, com seu “Confabulário Total”. É excelente o episódio do homem transformado em sapo por uma organização desumana. Menos convincentes parecem as descrições realistas de Manuel Soares de Jesus – o homem que planeja matar seu chefe, o “intelectual Alves”. São vivos e interessantes os recursos de um júri de televisão dar nota ao criminoso e da carta que este envia ao papa, pedindo justiça para o povo de um país imaginário dominado por um governo totalitário e que combate na África uma guerra inglória.
Falta-lhe apenas, para o terceiro livro, podar a riqueza superabundante de temas, é demasiado ambicioso querer tratar, num mesmo romance, os problemas da alienação da classe rica, as mazelas dos barnabés conscientes, o choque de raças como a negra e a branca que “têm que viver juntas”, tudo cosido com flashbacks joyceanos de recordações sentimentais da infância. Mas também é legítimo esperar que, se o processo de depuração continuar, Antônio Torres poderá trazer à literatura brasileira a contenção lúcida de um Graciliano Ramos em vez de mais um grito verborrágico e folclórico, do qual, aliás, nunca esteve próximo.