Prefácio da edição de bolso

Capas de Essa Terra

Essa terra é o romance que consagrou Antõnio Torres como um dos mais lidos e queridos escritores brasileiros contemporâneos. Com este seu terceiro livro, nosso autor encontrou sua voz distintiva e amadureceu artisticamente o filão evocativo que definiria o perfil literário de parcela considerável das obras que publicou depois. Hoje a produção textual de Antônio Torres está enriquecida por outras dimenções que explorou ao longo de mais de 35 anos de carreira. Por todo esse tempo, porém, Essa terra manteve intactos seu frescor e vigor originais, conquistando lugar de destaque entre as obras legadas para a cultura brasileira pela memorável década de 70 do século há pouco terminado.

ƒ impossível não ler Essa terra nos parâmetros da tradição regionalista, embora o valor da obra em última instância venha mais do jeito como Torres conta a história do que do lugar ocupado pelo livro nos esquemas de crítica e teoria literária. Dentro da tradição regionalista, a obra situa-se num momento de transição. A década de 70 do século XX assistia ao início de uma transformação radical da realidade e do imaginário brasileiro do sertão, que iria refletir-se aos poucos em todas as dimensções da cultura criativa nacional, da música popular à literatura, ao cinema, ao teatro. Tal transformação histórica encontra-se claramente delineada em Essa terra, de tal modo que o livro pode ser considerado obra pioneira de uma nova fase em nossa literatura, posterior à dos clássicos modernistas.

Nessa nova fase, o tema da experiência do sertanejo que deixa o Nordeste comea a ser substituído pelo tema da experiência do sertanejo vivendo no Sudeste, principalmente São Paulo. Em Essa terra, dita experiência aparece pelo negativo, é presença ausente, assim como o próprio personagem Nelo no romance é presença ausente, narrada pelos olhos do irmão-mais-novo-que-ficou. O romance nos conta o desfecho dramático da história de vida de Nelo, jovem do sertão que um dia deixou a Bahia, viveu anos em São Paulo e voltou à sua Junco natal. O fato de seu breve retorno à terra natal ser contado pelo prisma do irmão mais novo que nunca esteve na metrópole, funciona como metáfora perfeita do ponto em que a literatura regionalista se encontrava, no momento em que Antônio Torres escreveu este seu livro pioneiro.

Um ponto zero. O novo tropo sertanejo que se impunha para o escritor daqueles anos 70, ainda se apresentava como território desconhecido. Era profundamente real, mas também profundamente desconhecido. Hoje todos nós sabemos que o sertão não virou mar, virou periferia das grandes cidades. E não apenas das cidades do Sudeste. Toda periferia urbana, de qualquer capital ou cidade média brasileira, é o sertão. No novo imaginário, sertão e periferia são espaços sinônimos, intercomunicantes enquanto paisagem. O sertão está na cidade, a cidade é o sertão. O espaço de Nelo é já o espaço da Macabéia de Clarice Lispector, é já o espao de filmes como Amuleto de Ogum (Nelson Pereira dos Santos) e Central do Brasil (Walter Salles). Nesse espao contemporâneo, a narrativa sertaneja opera o encontro entre a aridez do sertão rural, regional, tradicional, e a do sertão urbano, nacional e pós-moderno. De um lado, o cacto. De outro, as casinhas sem reboco apertadas nas vielas degradadas.

Mas é preciso libertar a leitura de Essa terra de uma pauta exclusivamente regionalista. E aí voltamos ao jeito como Torres conta sua história: a maneira fragmentada, cheia de idas e vindas, sempre pelo prisma do narrador Totonhim, o irmão mais novo que ficara no Junco. Já em seu primeiro livro, Um c‹o uivando para a lua, Torres prestara, na epígrafe, tributo a William Faulkner, autor icônico, referente indispensável para entender as ambições e os parâmetros estéticos do grupo de escritores dos anos 70 ao qual Torres esteve ligado, o grupo paulista reunido na revista Escrita, de Wladyr Nader. Cada um desses autores – Marcia Denser, o próprio Torres, Roniwalter Jatobá, Silvio Fiorani, entre outros – apropriou-se de Faulkner à sua maneira. Quando releio em Essa terra as páginas que narram o percurso tresnoitado em que o narrador leva a mãe para ser internada numa instituição psiquiátrica, sempre me vem à mente o relato arquetípico da viagem dos irmãos com o cadáver da mãe no clássico Enquanto agonizo.

Enquanto agonizam, sobrevivo. Talvez esteja aí uma das chaves de leitura deste Essa terra. Em última instância, a obra narra uma história de família, uma história de família em situação extrema de diáspora, separação, distância, como contingência mesmo da vida em diáspora. Uma história de família narrada por quem ficou e recolhe os restos de tanta dificuldade de diálogo para talvez no futuro construir sua própria narrativa – narrativa essa que Torres veio efetivamente a colocar no papel em livros posteriores. Assim como em Joyce e Virginia Wolf, a lição básica de Faulkner é um modernismo narrativo que combina fragmentação a fluxo discursivo na tentativa de mímese dos processos subjetivos internos. Em Antônio Torres, essa combinação representa o esforço de recuperação dos laços afetivos, no contexto árido e rascante de relações humanas irremediavelmente falhadas. Eu disse irremediavelmente? Mas para Torres, existe um remédio para as falhas do afeto: sua redenção pela palavra romanesca, que é também, sempre, palavra poética.

Italo Moriconi
Escritor, professor e editor
Setembro de 2008

Posfácio de Essa Terra

Capas de Essa Terra

Posfácio

Um novo sert‹o na literatura brasileira: Essa Terra, de Antônio Torres

A história narrada no romance Essa Terra, que Antônio Torres publicou em 1976, desenrola-se em espaços que tm referentes precisos na geografia do Brasil: as povoações do Junco, de Feira de Santana e Alagoinhas, situadas no interior do Estado da Bahia, e a cidade de São Paulo. Esta última, Alagoinhas e Feira de Santana surgem como áreas complementares, com maior ou menor importância no plano das ações e no nível do sentido, ao passo que a cidadezinha do Junco, atualmente denominada Sátiro Dias, forma o território fulcral da narrativa, aquele para o qual apontam em primeiro lugar os títulos da obra e das suas quatro partes. Embora a realidade geográfica do sertão brasileiro não esteja perfeitamente determinada — dado que em certas definições corresponde a todas as terras e povoações do interior, por oposição às do litoral, em outras engloba apenas as áreas mais desertas e distanciadas da costa e dos grandes centros urbanos e ainda noutras se restringe à zona interna da região nordestina, caracterizada por secas periódicas e pelo domínio da caatinga é, não resta dúvida de que ele É o espaço referencial nuclear de Essa Terra, pois o centro do mundo construído na narrativa (assim como algumas das suas periferias) se enquadra bem em qualquer das acepções mencionadas.

As formas e o significado que a representação do sertão assume nesse romance constituem a matéria do presen­te trabalho que busca, simultaneamente, posi­cioná-lo no quadro de uma possível literatura sertanejaÓ. Tal designa‹o se aplica aqui ˆ produ‹o liter‡ria erudita — da qual se excluem as produ›es de car‡ter popular como a literatura de cordel — em que se verifica uma estreita rela‹o entre o universo ficcional e a realidade f’sica e humana do sert‹o e que diversos estudiosos demonstraram constituir um fil‹o que atravessa a Literatura Brasileira desde o Romantismo. Nessa literatura, a manipula‹o dos aspectos f’sicos, sociais, econ™micos, pol’ticos, culturais e lingŸ’sticos do universo sertanejo tem, como n‹o podia deixar de ser, mudado ao longo dos tempos. A vis‹o que lhe est‡ subjacente varia entre dois extremos opostos, caracterizando-se ora pela idealiza‹o, pela exalta‹o, pelo otimismo, ora, ao contr‡rio, pelo realismo, pela atitude cr’tica, pelo pessimismo, quando n‹o combina tais caracter’sticas em propor›es e com efeitos variados. Nem mesmo no conjunto das obras que evidenciam uma forte marca de ÒveracidadeÓ na composi‹o do universo fic­cional se encontra um retrato uniforme do sert‹o, porque, necessariamente incompleta, a imagem produzida em cada uma delas resulta da sele‹o, da combina‹o e da funcionalidade, no interior do texto, dos elementos extra’dos do real. Da’ a existncia n‹o de um, mas de muitos sert›es na Literatura Brasileira. H‡, contudo, semelhanas nessas representa›es, explic‡veis, em parte, pelas circunst‰n­cias hist—ricas e pelas correntes estŽticas atuantes na Žpoca de produ‹o das obras, em parte, por motiva›es de natureza subjetiva.

Numa panor‰mica algo redutora, poder-se-ia considerar a emergncia de, pelo menos, quatro modos de abordagem do sert‹o: o rom‰ntico, o realista-naturalista, o neo-realista e o p—s-modernista. Se a modelagem rom‰ntica tem a sua express‹o mais acabada em O sertanejo, de JosŽ de Alencar, que, composto com as mesmas formas Žpicas e enaltecedoras utilizadas no manejo da tem‡tica indianista, traduz igual intuito de dar configura‹o m’tica ao homem e ˆ natureza brasileira, de acordo com as neces­sidades do nacionalismo da Žpoca, Os sert›es, de Euclides da Cunha, constituem um bom exemplo do tratamento realista-naturalista. A narrativa euclidiana, embora n‹o abandone inteiramente os processos da composi‹o Žpica,­ engrandecedora tanto do homem como da terra, n‹o os apresenta mais como meton’mias do todo nacional e d‡ primazia a uma reprodu‹o documental disf—rica ­baseada nas concep›es do determinismo e do positivismo. ƒ, por sua vez, herdeira do descritivismo realista e denun­cia­t—rio de Os sert›es, mas n‹o comporta a sua vis‹o am­pli­ficadora, nem se sustenta nas mesmas teorias so­ciol—gicas e antropol—gicas, a recria‹o neo-realista do sert‹o, que tem manifesta›es numerosas no chamado romance nordestino dos anos 30, bem representado, neste caso, por Vidas secas, de Graciliano Ramos ou Seara vermelha, de Jorge Amado. Combina‹o nova das duas facetas da manipu­la‹o da tem‡tica sertaneja ocorre em Grande sert‹o: ve­redas,­ que se posiciona como marco fundamental no nascimento da fic‹o p—s-modernista brasileira e no qual o dado realista, local e epocal, ganha no plano simb—lico um car‡ter universal e supratemporal.

Embora com fun‹o seminal nos rumos tomados na abordagem contempor‰nea do universo sertanejo, o romance de Guimar‹es Rosa n‹o se imp™s como modelo obrigat—rio para os sucessores que, libertos das restri›es de uma poŽtica uniformizadora, se movimentam com uma independncia imposs’vel no passado. Disso d‡ prova a obra que vamos analisar, pois, influenciada quer pela constru‹o do Grande sert‹o: veredas, quer pela de formas anteriores da literatura do sert‹o, soube encontrar a sua pr—pria estrada, o que Ž tanto mais evidente quanto a recria‹o do universo sertanejo tem nela muito de autobiogr‡fico e de cat‡rtico.

Sob a forma de um relato fragment‡rio e memo­ria­l’stico, Essa Terra, apresenta a hist—ria tr‡gica de uma fam’­lia de origem rural: a do narrador-personagem To­to­nhim. Nela se conta a ru’na e a desagrega‹o do seu cl‹, pro­vocadas pelo abandono da terra natal — o Junco — e dos modos de subsistncia avoengos, que consistiam na cria‹o de gado e em alguns cultivos tradicionais, como o milho e o feij‹o. A tragŽdia se concretiza em numerosos acontecimentos, sendo os mais importantes: a ida para S‹o Paulo de Nelo, o irm‹o mais velho de Totonhim, e o seu fracasso na grande metr—pole: a mudana da m‹e, dos seus outros irm‹os e, posteriormente, do pai para uma povoa‹o vizinha mais desenvolvida — Feira de Santana — onde passam, contudo, a viver em situa‹o de maior pobreza; a perda da roa pelo pai, endividado com o Banco que aparecera emprestando dinheiro, mas o obrigara a introduzir o plantio do sisal; as sucessivas fugas das filhas e filhos crescidos, de que n‹o resulta melhoria significativa das suas condi›es de vida.

Ela tem como desfecho n‹o s— o suic’dio de Nelo, a loucura da m‹e, a solid‹o do pai, que, sem recursos, ter‡ de criar os trs filhos pequenos que ainda possui, mas ainda a decis‹o tomada por Totonhim de ir para S‹o Paulo. Essa partida, que se afigura como a œnica sa’da para superar o atraso e a misŽria, mas que pode implicar a repeti‹o do destino de Nelo, Ž uma solu‹o ego’sta, que o narrador-personagem parece querer justificar e expiar atravŽs de uma rememora‹o do passado onde se evidencia o sentimento ambivalente de amor e —dio que ele nutre pela fam’lia e pela terra natal. Tal ambivalncia Ž sugerida pelos t’tulos das quatro subdivis›es do romance, que s‹o na ordem em que aparecem: ÒEssa Terra me chamaÓ, ÒEssa Terra me enxotaÓ, ÒEssa Terra me enlouqueceÓ, ÒEssa Terra me amaÓ.

A hist—ria pessoal e familiar do personagem-nar­ra­dor tem um car‡ter paradigm‡tico, pois comporta vi­vn­cias t’picas dos pequenos plantadores e criadores de gado e de seus descendentes, que comp›em uma das parcelas mais importantes da popula‹o do sert‹o brasileiro. Ë volta do entrecho principal giram personagens cujas figuras e hist—rias, constru’das de forma mais lacunar e com fei›es igualmente funestas, contribuem­ para alargar o painel calamitoso do universo sertanejo reprodu­zido na obra. Por conseguinte, o sert‹o est‡ perspectivado em Essa Terra a partir de uma —tica pessimista, denuncia­dora dos graves problemas da regi‹o e da misŽria dos seus habitantes, como j‡ havia acontecido na fic‹o do per’odo realista-naturalista e na dos anos 30/40 do sŽculo XX.

O romance assemelha-se ainda ˆ produ‹o liter‡ria das Žpocas referidas ao abordar matŽrias que nela consti­tu’am o cerne da problem‡tica sertaneja: o cangao, o misti­cis­mo religioso, as peri—dicas chuvas torrenciais e, so­­bre­tudo, o flagelo das secas c’clicas. Mas nele tais motivos aparecem ligados mais aos tempos passados do que ao presente. Assim, fazem parte da mem—ria coletiva do Junco tanto as figuras de Lampi‹o e de Ant™nio Conselheiro — este œltimo com um seguidor ainda vivo na cidade: o velho Caetano Jab‡, cujo apelido se deve ao fato de ter degolado em Canudos um soldado que estava comendo charque —, como a terr’vel seca de 1932, quando Òo lugar esteve para ser trocado do mapa do Estado da Bahia para o mapa do infernoÓ, e as chuvas diluvianas, que se lhe seguiram, trazendo um mort’fero surto de mal‡ria.

Diferenciam profundamente a obra de Ant™nio Torres das suas antecessoras a presena secund‡ria dessas tem‡ticas tradicionais e a pouca relev‰ncia que lhes Ž atribu’da como causa da misŽria do sert‹o e da sua popula‹o. Apesar de o Junco ser um fim de mundo onde nem Lampi‹o quis entrar, apesar de ser uma Òterra selvagem, onde tudo j‡ estava condenado desde o princ’pio. Sol selvagem. Chuva selvagemÓ, apesar de ser uma Òterra sempre igual a si mesma, dia ap—s diaÓ, com Òuma missa de vez em quando, uma feira de oito em oito dias, uma santa miss‹o de ano em ano, uma safra conforme o invernoÓ, configura-se tambŽm como uma Òterr [a] velh [a] e bo [a]Ó, mormente nos Òtempos em que os homens valiam alguma coisa porque tinham gado e palavraÓ.

Assim o define o narrador numa evoca‹o onde o sentido cr’tico n‹o esconde um afeto nost‡lgico:

O Junco: um p‡ssaro vermelho chamado Sofr, que aprendeu a cantar o Hino Nacional. Uma galinha pintada chamada Sofraco, que aprendeu a esconder os seus ninhos. Um boi de canga, o Sofrido. De canga: entra inverno, sai ver‹o. A barra do dia mais bonita do mundo e o p™r-do-sol mais longo do mundo. O cheiro do alecrim e a palavra aucena. E eu, que nunca vi uma aucena. Os cacos: de telha, de vidro. Sons de martelo amolando as enxadas, aboio nas estradas, homens cavando o leite da terra. O cuspe do fumo mascado da minha m‹e, a queixa muda do meu pai, as rosas vermelhas e brancas da minha av—. As rosas do bem-querer.

Para a ru’na atual s‹o, portanto, apontadas explica›es novas, diversas das expressas na literatura do passado e baseadas na compreens‹o moderna da existncia de uma espŽcie de colonialismo interno, em fun‹o do qual o sert‹o se tornou um territ—rio explorado e pauperizado pela regi‹o centro-sul, verdadeiro nœcleo do Estado nacional. Com efeito, esta regi‹o, representada na obra, sobretudo, pela cidade de S‹o Paulo, rouba ao Junco a sua fora produtora mais v‡lida — Nelo, ZŽ do Pistom, seu Caboco, Totonhim e um nœmero indefinido de rapazes, que nunca voltaram para buscar as moas que por eles esperam. Por isto, o pai de Totonhim s— v ˆ sua volta ÒCasas fechadas, terras abandonadasÓ e, considerando que ÒAgora o verdadeiro dono de tudo era o mata-pasto, que crescia de­sembestado entre as ruas dos cactos de palmas verdes e pend›es secos, por falta de braos para a estrovengaÓ, conclui que esses braos se encontravam ÒDentro dos ™nibus, em cima dos caminh›es. Descendo […] para o sul do ­BrasilÓ.

Mas a’ eles s‹o socialmente marginalizados e infe­rio­rizados — difundidas que est‹o as idŽias de que Todo baiano Ž negro. Todo baiano Ž pobre. Todo baiano Ž veado. Todo baiano acaba largando a mulher e os filhos para voltar para a Bahia.

A’ tambŽm eles n‹o conseguem, em geral, uma boa situa‹o econ™mica e acabam por desiludir-se. Tal desi­lus‹o,­ indicada no profundo sentimento de solid‹o con­substanciado na afirma‹o de que ÒS‹o Paulo Ž uma cidade desertaÓ, est‡ expressa mais abertamente nas cartas em que Nelo, procurando convencer o pai a n‹o seguir para o sul, avisa que ÒS‹o Paulo n‹o Ž o que se pensaÓ no Junco.

Talvez n‹o seja distorsivo considerar-se que para Ant™nio Torres outro malef’cio oriundo da regi‹o sul se prende ˆ atua‹o do setor banc‡rio, uma vez que o centro financeiro do Pa’s nela se situa e na obra um representante de tal setor surge como elemento ex—geno, garantido pelo Estado Federal e propulsor de transforma›es econ™micas que a este primeiro interessam. Trata-se de ÒAn­car: o banco que chegou de jipe, num domingo de missa, para emprestar dinheiro a quem tivesse umas poucas braas de terraÓ e que contribui grandemente para o empobrecimento de parte dos agentes econ™micos que restavam ao Junco, pois os convenceu de que os emprŽstimos oferecidos seriam fonte de progresso e os forou a introduzir novos cultivos, sem lhes dar as condi›es necess‡rias para o fazer. Nessa situa‹o se colocou entre outros o pai do personagem-narrador, que, como j‡ dissemos, teve de vender a sua roa para pagar as promiss—rias vencidas. Por isto, Caetano Jab‡, numa profecia apocal’ptica, impregnada do misticismo fatalista caracter’stico do sert‹o, pode resumir o evoluir desfavor‡vel da situa‹o econ™mica dos habitantes do Junco na seguinte assertiva: Ònossos av—s tinham muitos pastos, nossos pais tinham poucos pastos e n—s n‹o temos nenhumÓ.

O que mostramos permite entender que a abordagem da tem‡tica sertaneja em Essa Terra se afasta seja de uma meton’mica glorifica‹o do Pa’s, caracter’stica do Romantismo, seja de uma cr’tica externa de ra’zes sulinas ou litor‰neas e de bases positivistas e deterministas, que, expressa sobretudo nas œltimas dŽcadas do sŽculo XIX e nas primeiras do sŽculo XX, atribu’a a misŽria da regi‹o ˆs condi›es mesol—gicas e/ou ˆ forma‹o Žtnica da sua popula‹o. Pode-se, por outro lado, assinalar que tal abordagem partilha de um sentimento atual de revolta dos nordestinos contra o poder central, cuja explica‹o radica no fato de os desn’veis e as desigualdades entre as re­gi›es­ n‹o estarem sendo corrigidos, mas, ao contr‡rio, estarem a agravar-se com a expans‹o do modo de produ‹o capitalista por todo o territ—rio nacional. Nesse sen­tido,­ ela implica uma perspectiva interna ˆ sociedade ser­ta­neja no seu desejo de reconhecimento e valoriza‹o pelo conjunto da na‹o.

O embasamento pol’tico e a atitude de denœncia n‹o prejudicam a realiza‹o estŽtica de Essa Terra, pois os elementos ficcionais se sobrep›em, afastando o risco do simples discurso panflet‡rio ou documental e produzindo uma imagem transfigurada e mais profunda do homem e do mundo. Essa imagem de fei‹o prioritariamente realista n‹o abandona de todo os mitos e os s’mbolos. Numa dia­lŽtica complexa, a intensa religiosidade do universo retratado se transfunde em sugest›es m’tico-simb—licas de ra’zes judaico-crist‹s, como a da Volta do filho pr—digo e a do Apocalipse.

A complexidade do universo criado no texto excede n‹o s— a das produ›es oitocentistas, mas ainda a de grande parte da fic‹o neo-realista. Mantendo grande fidelidade ao real, o sert‹o n‹o aparece nele apenas como cen‡rio, nem Ž objeto de descri‹o mais ou menos aut™noma, o que o distingue da literatura paisag’stica e des­critivista do sŽculo passado. Enveredando pelos caminhos da narrativa sociol—gica e, sobretudo, psicol—gica, Ant™nio Torres faz dos aspectos f’sicos, sociais, econ™micos, pol’ticos, culturais do sert‹o matŽria essencial da trama e estabelece uma interdependncia profunda entre o espao, a a‹o e as personagens. O drama individual — ou melhor, uma prolifera‹o de dramas pessoais geradora de uma imagem multifacetada da realidade — ocupa o primeiro plano, mas os conflitos psicol—gicos descritos est‹o enraizados no contexto sertanejo, o que lhes d‡ uma dimens‹o englobante exemplar.

As personagens principais do relato n‹o se reduzem a representa›es t’picas do sertanejo. Totonhim, Nelo, o pai e a m‹e possuem profunda densidade humana, apesar da sua constru‹o fragment‡ria. Com qualidades e defeitos (talvez mais com estes do que com aqueles), tais personagens n‹o enfermam do manique’smo, nem da idealiza‹o dos her—is sertanejos tradicionais. O seu engrandecimento n‹o deriva tanto da peculiaridade dos valores do mundo de onde provm, mas da grandeza humana (e portanto universal) de tais valores. Personagens individuais e regio­nais, elas s‹o tambŽm figura›es arquet’picas do homem. A sua grandeza Ž a da condi‹o humana na busca infrut’fera da felicidade terrestre, concretizada no texto na ­procura frustrada, em cada uma, de condi›es de vida satis­fat—rias. De igual modo, as numerosas personagens secund‡rias, que enriquecem a ambincia sertaneja da hist—ria, n‹o s‹o apenas figuras caracter’sticas do universo de que foram extra’das; s‹o, na sua incompletude, autnticos seres humanos, cujo car‡ter embrion‡rio n‹o as priva de fei‹o v’vida e din‰mica.

O sentido tr‡gico que impregna Essa Terra singulariza-a no conjunto das abordagens do sert‹o com que a temos confrontado. Este se manifesta quer na nostalgia de um passado irremediavelmente perdido, quer na cr’tica do presente, quer na ausncia de previs‹o duma felicidade futura. Contrapondo-se ˆ vis‹o euf—rica de uma natureza paradis’aca e de um homem ideal, que no Romantismo traduz uma ideologia conformista, defensora da ordem estabelecida, e ˆ vis‹o cr’tica que combina a denœncia do status quo com a fŽ numa ordem melhor, caracter’stica da ideologia reformista dos neo-realistas, o romance expressa uma postura n‹o con­formista, mas tambŽm n‹o refor­madora, cuja negati­vidade reside numa compreens‹o da tragŽdia essencial da condi‹o humana.

Caberia finalmente uma breve an‡lise da dimens‹o sertaneja da linguagem de Essa Terra, tanto mais que esse aspecto, nuclear na produ‹o liter‡ria, tem particular import‰ncia na Òliteratura sertanejaÓ, quase sempre muito ciosa da recria‹o dos falares regionais. No nosso romance n‹o ocorre a utiliza‹o sistem‡tica da linguagem nordestina, mas se encontram, tanto na fala das personagens como no discurso narrado, express›es e vocabul‡rio regional. As primeiras s‹o, todavia, pouco numerosas e parecem contaminadas pelo discurso do narrador, que, no momento da produ‹o do texto, j‡ estava distanciado do meio sertanejo e popular, quer pela educa‹o recebida, quer pela residncia fora do Junco, quer ainda pelo cunho­ erudito da tradi‹o liter‡ria em que se situa a sua narra­tiva.

A presena limitada do regionalismo lingŸ’stico explicar-se-ia tambŽm pela tendncia moderna para uma certa uniformiza‹o do linguajar popular, decorrente da atra‹o que a linguagem das ‡reas mais desenvolvidas do pa’s exerce sobre a popula‹o sertaneja. Esse fen™meno, bastante vis’vel na literatura de cordel, Ž assinalado no romance atravŽs da fala de um velho habitante do Junco que, recordando o seu encontro com Nelo e o prazer que sentiu ao ouvi-lo falar como ali ninguŽm seria capaz de fazer, afirma que Òa coisa que mais aprecia numa pessoa Ž ver a pessoa saber falarÓ. Ele revela, no entanto, um dom’nio insuficiente da linguagem ÒsulinaÓ, ÒcultaÓ, ao definir Nelo como Òum capitalistaÓ, atribuindo ˆ palavra o sentido de Òverdadeiro homem das capitaisÓ. Por conseguinte, a linguagem n‹o dialetal do romance n‹o indica um afastamento da realidade sertaneja, ao contr‡rio, confere coerncia e autenticidade ˆ narrativa.

Relacionando ainda outros aspectos da prosa ficcional de Essa Terra com a dos principais modelos da fic‹o sertaneja, observar’amos que, sendo a sua caracter’stica estil’stica mais marcante o despojamento, o cunho n‹o ornamental da linguagem, ela se afasta do tipo de prosa poŽtica de JosŽ de Alencar, de Euclides da Cunha ou de Guimar‹es Rosa, aproximando-se, por outro lado, da linguagem direta, contida e substantiva de Graciliano Ramos. Isto n‹o impede que apaream por vezes na obra imagens imprevistas e originais, constru’das a partir de elementos de realidade local. O trao essencial do discurso de Ant™nio Torres Ž, porŽm, uma linguagem orali­zante, de frases curtas e ˆs vezes el’pticas e de lŽxico de extra‹o popular, como se tornou habitual a partir do Moder­nismo.

Caberia finalmente explicar por que se afirmou anteriormente ter a recria‹o do universo sertanejo em Essa Terra algo de autobiogr‡fico e de cat‡rtico. Esta idŽia encontra fundamento em semelhanas importantes detectadas nas biografias de Ant™nio Torres e do seu narrador, entre as quais se contam: a fam’lia numerosa, o nascimento no Junco, os estudos ginasiais em povoa›es vizinhas mais adiantadas, a emigra‹o para o sul, a atividade liter‡ria. Ajuda ainda a sustent‡-la o fato de aquela personagem ser designada apenas atravŽs do apelido Toto­nhim, fre­qŸen­temente dado a quem tem o nome de An­t™nio. ƒ, por sua vez, sintom‡tico do aspecto cat‡rtico da obra — de f‡cil comprova‹o na sua estrutura interna, pois o sentido de expia‹o constitui o fulcro da rela‹o do narrador com o seu relato — a presena obsessiva na produ‹o romanesca do escritor dos mesmos dramas e do mesmo universo.

Vania Pinheiro Chaves
Professora de Literatura Brasileira na Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa

Trabalho sobre Essa Terra produzido na Comunicação da UFBa

Capas de Essa Terra

MINHA TERRA

Análise da representação da cidade natal na obra de dois artistas baianos: Junco, na literatura de Antonio Torres e Santo Amaro da Purificação, na obra de Caetano Veloso.

Elizabeth Ponte de Freitas

Introdução: As narrativas das Cidades

“Estamos na cidade. Não podemos sair dela sem cair em outra, idêntica mesmo quando diferente”.
Octávio Paz, poeta mexicano e prêmio Nobel de Literatura.

Toda boa obra literária ambiciona a ser uma transposição poética da realidade. Porém, antes de constituir uma transposição, poética ou não da realidade, a literatura é produto de um meio sóciotécnico e, eminentemente a partir do século XIX, urbano. A literatura européia desta época, assim como a nascente produção literária brasileira, trazia em si uma ambiência urbana, fruto da Revolução Industrial e do crescente desenvolvimento técnico das cidades. A metrópole, a urbe imensa, tornou-se então palco para os enredos, e as linhas escritas não apenas contam histórias mas denunciam as desigualdade prementes e reconfiguram o imaginário do espaço urbano.
No campo da literatura, as discussões acerca das relações entre o espaço urbano e a ficção já estão muito avançadas. Para muitos teóricos, a representação do espaço surge como característica inerente à literatura, que passa então a contribuir para construção da narrativa histórica urbana e para o processo de “desvendamento” das cidades, pois:

A literatura possibilita conhecer espaços e lugares porque é da realidade concreta que o escritor resgata os elementos para a construção do universo ficcional de sua obra literária, um processo de re-criação no qual evidencia a relação entre o espaço e literatura. Desafiando o escritor a decifrá-la, a cidade exige dele uma percepção que penetra além das aparências e desvenda a verdadeira essência das ruas.”  

A cidade passa a ser frequentemente representada na literatura, que, por sua vez, também sofre transformações ao incorporar a temática urbana. Para compreender esta relação, é necessário compreender a cidade, o espaço urbano, para muito além de sua dimensão meramente espacial. A cidade não é apenas o cenário mutável do desenvolvimento. É preciso enxergá-la como parte de uma ambiência e de um modo de vida urbanos, como local de construção de referências afetivas e de memórias individuais e coletivas. É importante também ressaltar que porespaços urbanos não nos referimos apenas às grandes cidades, mas a qualquer cidade, pois todas são locais de sociabilidade e interação com o ambiente. Os modos de vida podem ser distintos, mas a ambiência urbana, o “estar na cidade” permanece.
Assim, procuraremos neste trabalho analisar o papel que a cidade natal desempenha nas obras de artistas, como ela se apresenta e a que noções ou sentimentos está mais frequentemente associada. A idéia deste trabalho foi concebida inicialmente tendo em vista apenas a relação entre e a literatura e as cidades. O viés foi posteriormente ampliado para que contemplasse outras expressões artísticas que não somente a literária, sendo escolhida a linguagem musical para o complemento das idéias desenvolvidas. Enfocaremos a representação, ou a transposição poética, das cidades de Junco (atual Sátiro Dias), na obra do escritor baiano Antônio Torres, e Santo Amaro da Purificação, na obra do músico Caetano Veloso. Ressaltaremos também a importância do fato de ambas serem cidades interioranas e seu reflexo na obra dos artistas, exposto nos ritmos, musical e narrativo, e no constante saudosismo sensível nas obras.

Eis aqui tudo de novo

Onde eu nasci passa um rio
Que passa no igual sem fim
Igual, sem fim, minha terra
Passava dentro de mim
.”

Caetano Veloso

Se este trabalho fosse uma ficção, diríamos que seu eixo narrativo possui quatro personagens principais: dois homens e duas cidades.
Antônio Torres nasceu em 13 de setembro de 1940 na pequena cidade de Junco (atual Sátiro Dias), no sertão baiano. Ainda novo foi estudar em Alagoinhas e de lá foi para Salvador, onde se formou jornalista e reside atualmente na cidade do Rio de Janeiro.
Foi apenas aos 32 anos que Antônio Torres encontrou aquela que seria sua profissão e que mudaria o rumo de sua vida e de sua cidade. Em 1973 é lançado seu primeiro romance, “Um cão uivando para a lua”, um livro que obteve boa repercussão na literatura nacional, sendo classificado pela crítica como “a revelação do ano”. Mas é do ano de 1976 que data o terceiro e mais importante livro da carreira deste autor, com um total de 13 livros publicados. “Essa Terra” é o romance mais conhecido de Antônio Torres e por sua narrativa fluida, sensível e em muito autobiográfica proporcionou ao autor reconhecimento nacional e internacional.
Muitas vezes comparado a obras-primas como Vidas Secas, de Graciliano Ramos, “Essa Terra”  problematiza em seu enredo questões relacionadas à seca, ao êxodo, à inadequação às mudanças e às raízes humanas na cidade.  O livroganhou uma edição francesa em 1984, abrindo o caminho para a carreira internacional do escritor baiano, que hoje tem seus livros publicados em Cuba, na Argentina, França, Alemanha, Itália, Inglaterra, Estados Unidos, Israel e Holanda, onde foram muito bem recebidos.  De acordo com Luciano Trigo, do Jornal O Estado de São Paulo: “Ele é sucesso na Europa. No setor de línguas estrangeiras da Universidade de Nantes, França, há três livros brasileiros de leitura obrigatória: o primeiro é Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Os outros dois são de Antônio Torres”.
Todo este reconhecimento rendeu ao autor diversas homenagens, entre elas a condecoração de Cavaleiro da Cultura e das Artes (“Chevalier des Arts et des Lettres”), concedida pelo Ministério da Cultura da França, em 1998. Em 2000 recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da sua obra. E em 2001, com o romance “Meu querido Canibal” ganhou o Zaffari & Bourbon,maior prêmio literário do país.
Dois anos após o nascimento de Antônio Torres, nascia Caetano Emanuel Viana Telles Veloso, em 07 de agosto de 1942, na pequena cidade de Santo Amaro da Purificação, na região do Recôncavo Baiano. Caetano Veloso, como posteriormente passou a ser reconhecido, mudou-se para Salvador aos 18 anos e a partir de então trilhou o caminho que viria a torná-lo um dos mais importantes, se não o mais importante, nome da MPB.
Ainda sem muita vocação para a carreira artística, Caetano foi morar o Rio de Janeiro em 1966, para acompanhar a carreira da irmã mais nova, Maria Bethânia, outra importante personagem da história da música nacional. No mesmo ano, Bethânia gravou a canção “É de Manhã”, de Caetano, e a música marcou sua estréia com um compacto simples. O primeiro disco, “Domingo”, veio apenas em 1967, no qual cantava ao lado de Gal Costa. Foi um dos fundadores do Tropicalismo, o movimento marcante da contracultura e da vanguarda brasileira, nos de 1967 e 1968, auge do período ditatorial brasileiro, o que ocasionou sua prisão e exílio em Londres juntamente com o parceiro artístico Gilberto Gil.
Cantor e compositor de raro talento e figura polêmica no cenário cultural brasileiro, Caetano Veloso conta hoje em dia com mais de 40 cds lançados. Conquistou o Grammy na categoria World Music, em 2000, com o disco “Livro”, e foi o primeiro brasileiro a se apresentar na entrega do Oscar, na edição de 2002.  Caetano também se aventurou em outras expressões artísticas, dirigindo em 1986 o filme “Cinema Falado” e lançando dois livros de críticas e textos, Alegria, Alegria (1977) e O mundo não é chato (2005), além de uma “autobiografia artística”,  Verdade Tropical (1997).
É dentro, e também fora, da obra destes dois artistas baianos que se encontram os outros dois personagens centrais deste trabalho. As cidades de Junco e Santo Amaro da Purificaçãosão presenças constantes na obra de Antônio Torres e Caetano Veloso.
O município de Junco (Sátiro Dias) localiza-se no sertão baiano, a 230 quilômetros de Salvador. Com um total de 17 mil habitantes, é uma das cidades brasileiras com menor índice de urbanização do país, com apenas 19%. Junco, antes chamada de Malhada da Pedra e Amparo do Junco, foi fundada na metade do século XIX pelo vaqueiro João da Cruz e sua família. Em 1927, Inhambupe, município ao qual Junco era ligado, a elevou à condição de distrito e mudou-lhe o nome, para homenagear Sátiro Dias, um filho ilustre daquela cidade, falecido em 1913. Em 1958 o lugar se emancipou, adquirindo a condição de cidade.
Santo Amaro da Purificação, por sua vez, localiza-se no Recôncavo Baiano, a 85 quilômetros da capital e possui cerca de 53 mil habitantes. O primeiro núcleo de povoamento data de 1557 e a região foi importante produtora de cana-de-açúcar, fumo e mandioca, surgindo engenhos, casas de farinha e pequenos beneficiamentos de fumo. O nome Santo Amaro é devido aos monges beneditinos aos quais foram doadas grandes áreas, e em uma delas se erigiu uma Capela, sob a invocação de Santo Amaro, ficando esse Santo como padroeiro local. Com a criação da freguesia de Nossa Senhora da Purificação, a localidade passou a se chamar Santo Amaro da Purificação. Foi elevada à categoria de vila em 5 de janeiro de 1727 e em 13 de março de 1837 transforma-se em cidade, com o nome oficial de Leal Cidade de Santo Amaro.
Estas duas cidades se assemelham por sua condição interiorana, mas representam ambiências muito distintas de uma mesma Bahia, uma localizada no sertão e outra na região do Recôncavo baiano. Elas são ao mesmo tempo ponto de partida e de chegada na obra de Antônio Torres e Caetano Veloso, mostrando suas influências, mesmo que latentes, no decorrer das produções destes artistas. Descrevendo suas paisagens e personagens, romancista e músico reescrevem e concretizam, pelo lirismo da canção e da literatura, suas terras.

“Essa é a terra que me pariu”: a descrição do espaço e personagens que o compõem.

A representação da cidade dentro da literatura e das outras expressões artísticas acontece primeiramente na forma de caracterização do espaço. Acontece através da descrição literal – ou imagética, como no caso do cinema ou das artes plásticas – das paisagens naturais e do próprio espaço urbano. Este fenômeno ocorre da mesma maneira, guardadas as proporções, tanto na representação das pequenas cidades quanto de grandes metrópoles.
Outra forma de caracterização da cidade é a descrição de seus personagens, pois é através da utilização de figuras arquetípicas do local que se inscreve também a descrição do modo de viver característico e completa-se o sentido de ambiência, ambicionado pela obra. Ambos os recursos são encontrados tanto nos livros de Antônio Torres, como nas canções de Caetano Veloso sobre Santo Amaro.
Na canção “Trilhos Urbanos” temos a descrição de uma sucessão de imagens, em semelhança a um passeio pelas ruas de Santo Amaro em um dos bondes puxados a burro, que serviram a cidade até a década de sessenta, como explica o próprio músico:

Os saveiros atracavam junto da ponte sobre o rio Subaé, no local em que atualmente se chega quando se vem pela estrada de rodagem, onde também fica a estação de trem. Mais para baixo passava o bonde, que era puxado a burro. Por isso a canção fala de Trilhos Urbanos, porque esse era o nome da companhia. Esses bondes eu usei até os 19 anos, mais ou menos. Noutras cidades maiores, aquilo era uma coisa do século XIX, mas permaneceu em Santo Amaro, pois eram lucrativos e atendiam bem à população, não foram eletrificados e se mantiveram até meados dos anos 60.”

Nesta canção encontramos um retrato de Santo Amaro, uma descrição do espaço geográfico explicitada nos versos, aludindo claramente a um passeio pelas ruas da cidade : “Rua da Matriz ao Conde / No trole ou no bonde/ Tudo é bom de ver / São Popó do Maculelê / Mas aquela curva aberta / Aquela coisa certa / Não dá pra entender / O Apolo e o Rio Subaé”.
Esta referência altamente imagética da cidade acontece de uma forma quase “fotográfica” durante a primeira citação de Junco no livro “Essa Terra”:

O Junco: (…) a barra do dia mais bonita do mundo e o pôr-de-sol mais longo do mundo. O cheiro de alecrim e a palavra açucena. E eu, que nunca vi uma açucena. Os cacos: de telha, de vidro. Sons de martelo amolando as enxadas, aboio nas estradas, homens cavando o leite da terra. O cuspe do fumo mascado de minha mãe, a queixa muda do meu pai, as rosas vermelhas e brancas  da minha avó. As rosas do bem-querer:

  1. Hei de te amar até morrer.

Essa é a terra que me pariu.

O geógrafo Milton Santos define o espaço como “um conjunto de formas, contendo cada qual frações da sociedade em movimento”, ou seja, o espaço é constantemente renovado pelas modificações realizadas pela sociedade que sobre ele age. Da mesma forma em que não é possível a existência do espaço sem seus agentes, também é inviável, na construção narrativa, a descrição de uma cidade que não contemple seus habitantes. Paralela à caracterização do espaço está a caracterização das pessoas que o habitam e transformam, sendo isso visível também nas obras analisadas.
Neste caso, a aparição dos personagens que habitam Junco e Santo Amaro acontece de forma profundamente autobiográfica, como explica Caetano Velosocom a afirmação: “Minhas letras são todas autobiográficas. Até as que não são, são”.
Essa relação reflexiva sobre as experiências pessoais e relacionamentos familiares é explicitada em versos como o da canção “Jenipapo Absoluto”: “Onde e quando é jenipapo absoluto? / Meu pai, seu tanino, seu mel / Prensa, esperança, sofrer prazeria / Promessa, poesia, Mabel”. As memórias e experiências pessoais afloram em vários elementos compõem a letra desta canção. Nas palavras do próprio Caetano a letra:

Fala de Santo Amaro, como tantas outras. (…) Essa canção me emociona pelo modo como aparece meu pai: “ Meu pai, seu tanino, seu mel”. A letra também fala de “prensa”, porque meu pai me chamava para ajuda-lo a prensar o jenipapo numa prensa de madeira para fazer o licor. Ele tinha uma cumplicidade comigo numas coisinhas assim. E algumas eram cruciais, como essa, espremer o jenipapo. Outro dado que me emociona é que essa canção fala da minha identificação com meu pai mas declara, em seguida, que “minha mãe é minha voz.

Ao passo que Caetano traz à tona os elementos autobiográficos através da descrição de seus familiares, como suas irmãs Irene, Nicinha, Clara e Mabel, citadas em muitas outras canções, Antônio Torres revela antes de tudo a si mesmo nos protagonistas de seus enredos. Tal como Nelo, personagem principal do romance “Essa Terra”, o escritor também veio de uma família numerosa, teve de deixar sua terra natal com alguns de seus irmãos para fazer o ginásio em uma cidade maior (Alagoinhas, que no romance é representada por Feira de Santana) e, uma vez em São Paulo, freqüentou o bairro de São Miguel Paulista e outros predominantemente habitados por nordestinos. Foi daí que partiu a inspiração para o personagem Nelo, como explica o autor:

Eu nunca me esqueço de quando eu cheguei lá na primeira vez, em São Miguel Paulista, e a primeira pergunta que me fizeram (os conterrâneos) foi: “Você sabe se está chovendo por lá?”. Eu sabia qual era o resultado da minha resposta. Se eu dissesse: “Tá chovendo”,  nego voltava (para o Junco). E é nesta piração de ir e vir que acabei, ao longo do tempo, tendo o insight para criar o personagem Nelo de “Essa Terra”, o que vai, vem, e se mata.

Assim como alguns lugares de Junco são recorrentes em suas obras, como a Ladeira do Cruzeiro ou o Tanque Velho, alguns personagens marcantes na infância do autor estão presentes em suas obras, como a figura do “Mestre Fogueteiro”. Ao retornar a Junco na festa dos 40 anos de emancipação da cidade e em comemoração ao prêmio recebido na França, Antônio Torres afirmou que já não poderia escrever sobre os personagens locais: “Conheci novos e admiráveis personagens. Mas, com toda certeza, daqui pra frente não dá mais para escrever sobre eles. Ficaram reais. Reais demais.”

Essa terra me enxota….

“Muitos pastos e poucos rastos.
Casas fechadas, terras abandonadas. Agora o verdadeiro dono de tudo era o mata-pasto, que crescia desembestado entre as ruas dos cactos de palmas verdes e pendões secos, por falta de braços para a estrovenga. Onde esses braços se encontravam? Dentro do ônibus, em cima dos caminhões. Descendo. Para o sul de Alagoinhas, para o sul de Feira de Santana, para o sul da cidade da Bahia, para o sul de Itabuna e Ilhéus, para o sul de São Paulo – Paraná, para o sul de Marília, para o sul de Londrina, para o sul do Brasil. A sorte estava no sul, para onde todos iam, para onde ele estava indo.”

A sorte está onde a ‘civilização’ está. Este é o pensamento (e a esperança) de quem abandona sua terra, como descrito acima no trecho de “Essa Terra”. A segunda parte do romance descreve duas histórias de êxodo, de pai e filho. Os motivos são distintos, mas tocam-se na medida em que ambos refletem o descontentamento e a impossibilidade de uma melhoria de vida.
Nelo, personagem central, parte para São Paulo por vontade própria e torna-se desde então o símbolo, o exemplo a ser seguido em sua família. Contudo, depois de 20 anos na capital paulista, ele volta para sua terra e se mata, surpreendendo toda a cidade que acreditava em sua riqueza e sucesso pessoal. A trajetória de Nelo simboliza toda uma história do êxodo que marca o sertão brasileiro: a procura por uma vida melhor na grande metrópole que não raro encontra as barreiras da miséria, da violência, do subemprego e do preconceito. A migração representa para o personagem também a perda de suas raízes, condenando-o à condição estrangeira onde quer que estivesse: sua casa nunca seria a grande São Paulo, mas também já não poderia mais ser a pequena Junco.

Eles estão me matando. Devem ser uma dúzia de homens, fardados e armados. Aqui, no meio da rua. Na grande capital.
Dinheiro, dinheiro, dinheiro.
Cresce logo menino, pra você ir pra São Paulo.
Aqui vivi e morri um pouco todos os dias.
No meio da fumaça, no meio do dinheiro.
Não sei se fico ou se volto.
Não sei se estou em São Paulo ou no Junco.

Por sua vez, o pai de Nelo se vê forçado a abandonar Junco, depois de endividar-se com banqueiros que se ofereceram a financiar o cultivo de sisal e ter de vender suas terras. Suas raízes estavam mais fortemente presas à sua cidade, opondo a vontade que motivou seu filho a ir para São Paulo à necessidade que o forçava a ir morar com a mulher e os outros filhos, que estudavam em Feira de Santana. Interessante notarmos como apesar do suicídio de Nelo, o mito e a ilusão se mantêm e são encorajados pelo próprio pai de Totonhim – narrador e irmão do personagem principal. Ao anunciar ao pai que irá para “o sul”, escuta um lacônico: “Você faz bem – disse -Siga o exemplo.”
Mostrando o abandono de sua terra por um outro viés, tanto Antônio Torres quanto Caetano Veloso saíram de suas cidades ainda jovens, quase na mesma época, mas com o propósito de estudarem em Salvador. Ambos eram motivados por sonhos de crescimento pessoal e profissional, que não poderiam ser concretizados nas pequenas cidades de Junco ou Santo Amaro. A cada dia eles “amanheciam mais compridos, para verem as coisas mais curtas” das cercas ou janelas de suas casas interioranas. Porém a temática do “desenraizamento” é uma constante em suas obras, como canta Caetano Veloso na canção “No dia em que eu vim-me embora”, um de seus primeiros sucessos: “E quando eu me vi sozinho/ Vi que não entendia nada/ Nem de pro que eu ia indo / Nem dos sonhos que eu sonhava / Afora isto ia indo, atravessando, seguindo / Nem chorando, nem sorrindo / Sozinho pra Capital.”

Impressões sobre a distância

Podemos perceber nas obras dos artistas analisados duas formas de representação de suas cidades natal: através de um caráter saudosista em relação ao passado e através de um caráter crítico que permeia a descrição atual de Junco e de Santo Amaro.
O fato de ambos terem passado sua infância (e adolescência, no caso de Caetano Veloso) em suas cidades é bastante representativo para a compreensão da primeira forma de abordagem. A cidade natal é largamente associada ao período da infância, da época de boas lembranças e descoberta do mundo, como resume a Caetano Veloso na brilhante expressão adolescidade, na canção “Acrílico”: “Tudo ido e lido e lindo e vindo do vivido / Na minha adolescidade / Idade de pedra e paz”.
Antônio Torres também revela claros sinais de nostalgia ao descrever Junco, seus locais e personagens. Lembremos da primeira descrição de Junco no romance “Essa Terra”, na ênfase dada à menção de pequenos elementos: “O cuspe do fumo mascado de minha mãe, a queixa muda do meu pai, as rosas vermelhas e brancas da minha avó”. Assim como Caetano Veloso, na letra da canção “Reino Antigo” (ver letra em anexo), confirmam o estereótipo da vida no interior.
A importância dada a esses detalhes ressalta ainda mais a diferença entre a cidade pequena e a metrópole. O efeito do tempo e da distância, assim como o convívio com as novas formas de sociabilidade “diluídas na grandicidade” alteram os modos de ver, e conseqüentemente de representar, suas pequenas cidades. Este é um resultado natural de mudanças de perspectiva ocasionadas pela mudança para uma cidade maior. Passe-se a admirar a calma e tranqüilidade que o interior oferece, sem contudo desejar, ou mesmo suportar, a volta à “tristeza de ter paz”, como podemos perceber no trecho da canção “Adeus meu Santo Amaro” (um refrão popular de samba de roda ao qual Caetano Veloso acrescentou uma composição própria):

Adeus meu Santo Amaro
Adeus meu tempo de chorar
E não saber porque chorar
Adeus, minha cidade
Adeus, felicidade
Adeus, tristeza de ter paz
Adeus, não volto nunca mais
Adeus, eu vou me embora.

Paralela a essa descrição podemos notar uma visão bastante crítica em relação à condição atual da cidade, no discurso de Caetano Veloso ao caracterizar Santo Amaro com uma “cidadezinha culturalmente semi-destruída mas resistente e encantada.”

Santo Amaro era uma cidade bonita à primeira vista. Quando eu era menino, a unidade arquitetônica e cultural se apresentava logo a quem chegasse, impondo-se sem deixar dúvidas. Hoje, só um espírito profundo e sensível pode flagrar essa em estado puro por trás das transfigurações (algumas inevitáveis e nem tão maléficas, mas algumas imperdoavelmente inúteis e estúpidas) sofridas por essa Vila de Nossa Senhora da Purificação.

Se esta era a visão do músico há 20 anos atrás, não se alterou muito com o passar do tempo. Ao passo em que reformas e campanhas pela preservação do patrimônio histórico e arquitetônico da cidade eram realizadas, Santo Amaro sofria com a contaminação do Rio Subaé, que atravessa a cidade, pela Mineradora de Chumbo Plumbum. Este também foi o tema de uma das canções de Caetano Veloso, intitulada “Purificar o Subaé”.
Esta reflexão crítica em relação às duas cidades é marcante também em ironias encontradas em adaptações de seus nomes, como “Acrílico Santo Amargo da Putrificação”, na canção “Acrílico” e no verso do poeta sergipano Ivo Mariano, que em visita a Junco o batizou com o novo nome de “Sátira de Antigos Dias”.
O saudosismo em relação ao tempo que já passou pode ser enfatizado e ao mesmo tempo minimizado através da música e da literatura, no resgate e na construção narrativas sobre a cidade.
Mesmo quando a demolição / desconstrução, gerada pela ambiciosa fúria do progresso, determina o apagamento da memória urbana traçada na escrita das pedras e tijolos de suas construções, é possível resgatar essa memória através do livro, lugar de inscrição do passado, frente ao que se vai transformando em ruínas.

Mais que uma mera contraluz

A influência das cidades de Junco e Santo Amaro se estendeu para muito além do início da carreira de dois de seus ilustres filhos. Ao longo dos anos e do sucesso alcançado por Antônio Torres e Caetano Veloso, a presença de suas cidades natal aos poucos deixa de realizar apenas uma função de referência, de forma a marcar suas origens, para tornar-se uma característica constante e significativa em suas obras. Ilustrando o verso da canção “Jenipapo Absoluto”, podemos dizer que os artistas consideram suas cidades e experiências vividas lá como muito mais que “uma mera contraluz que vem do ficou para trás”.
Junco esteve presente não apenas no romance “Essa Terra”, mas também em “Um cão uivando para a lua”, cujo personagem principal, um jornalista vindo de uma cidade do sertão baiano, trazia também traços autobiográficos. Em 1997, Torres decidiu retornar ao tema e aos personagens do consagrado “Essa Terra”. Vinte anos depois, ele volta à pequena Junco no romance “O cachorro e o lobo”, para encontrar uma cidade já transformada pela chegada do progresso.  O autor considera este livro como “apaziguador em relação ao seu passado de retirante”. Junco, mesmo quando não era o cenário de suas histórias, estava presente na construção dos personagens de outros romances, na sensação de deslocamento da terra natal que sempre os acompanhava. Quase dez anos depois, o autor completa a trilogia com “Pelo fundo da agulha” (Record, 2006), também ambientada na pequena cidade.
Da mesma forma Santo Amaro exerce sua influência na vasta obra de Caetano Veloso. Tão marcante quanto a menção feita à sua cidade em diversas letras, é a presença das raízes musicais do Recôncavo Baiano que define a produção musical de Caetano Veloso. Vemos constantemente em sua obra os reflexos desta ligação forte com a cultura local. Como exemplos podemos citar a inserção de cantigas populares e sambas de roda característicos da região do Recôncavo ou a gravação de marchinhas de carnaval e outras canções tradicionais (a exemplo de “Muitos Carnavais”, disco lançado em 1977.) Sobre o Lp “Araçá Azul” (1972) Caetano Veloso afirma que ele traz “muito do clima de Santo Amaro, da minha cidade, muito clima da minha infância.”E mesmo que de forma sutil, Santo Amaro também se encontra presente no cd “Fina Estampa” (1994), uma compilação de canções cantadas em espanhol – os boleros, tangos e canções argentinas, caribenhas ou mexicanas que faziam sucesso durante a infância do cantor em Santo Amaro e que iniciaram sua formação musical.

Conclusão: Tudo ido e lido e lindo e vindo do vivido

A cidade natal é sempre nosso ponto de partida e por isso sempre nos acompanhará, não importa quão distantes sejam nossos caminhos futuros. Esta relação torna-se ainda mais forte quando as relações com o ambiente urbano são próximas e íntimas, o que é característico das cidades de pequeno porte, onde todos se conhecem, se freqüentam, onde a natureza faz parte da descoberta cotidiana e onde a ausência da violência comum aos grandes centros urbanos traz a sensação de liberdade mais presente. A análise das obras destes dois artistas baianos, hoje artistas do mundo, nos mostram que mesmo distantes de suas cidades e vivendo em um espaço e em uma realidade completamente distintas das quais foram criados, os artistas mantém raízes presas a sua terra e expressam uma relação de gratidão e respeito por ela. Ao serem cantadas em versos ou contadas em livros, através dos olhos da saudade ou do desencanto, Santo Amaro e Junco tiveram a oportunidade de marcar seu lugar no mapa do mundo e fazerem-se reais para uma infinidade de ouvintes e leitores em todas as terras.                                                                                                        

Jenipapo absoluto
Caetano Veloso

Como será pois se ardiam fogueiras?
Com olhos de areia quem viu?
Praias, paixões fevereiras
Não dizem o que junhos de fumaça e frio

Onde e quando é jenipapo absoluto?
Meu pai, seu tanino, seu mel
Prensa, esperança, sofrer prazeria
Promessa, poesia, Mabel

Cantar é mais do que lembrar
É mais do que ter tido aquilo então
Mais do que viver, do que sonhar
É ter o coração daquilo

Tudo são trechos que escuto: vêm dela
Pois minha mãe é minha voz
Como será que isso era, este som
Que hoje sim, gera sóis, dói em dós?

“Aquele que considera” a saudade
Uma mera contraluz que vem
Do que deixou pra trás
Não, esse só desfaz o signo
E a “rosa também”

Trilhos urbanos
Caetano Veloso


O melhor o tempo esconde
Longe muito longe
Mas bem dentro aqui
Quando o bonde dava volta ali
No cais de Araújo Pinho
Tamarindeirinho
Nunca me esqueci
Onde o imperador fez xixi

Cana doce, Santo Amaro
Gosto muito raro
Trago em mim por ti
E uma estrela sempre a luzir
Bonde da Trilhos Urbanos
Vão passando os anos
E eu não te perdi
Meu trabalho é te traduzir

Rua da Matriz ao Conde
No trole ou no bonde
Tudo é bom de ver
São Popó do Maculelê
Mas aquela curva aberta
Aquela coisa certa
Não dá pra entender
O Apolo e o Rio Subaé

Pena de pavão de Krishna
Maravilha vixe Maria mãe de Deus
Será que esses olhos são meus?
Cinema transcendental
Trilhos Urbanos
Gal cantando o Balancê
Como eu sei lembrar de você

No dia em que eu vim-me embora
Caetano Veloso
Gilberto Gil


No dia em que eu vim-me embora
Minha mãe chorava em ai
Minha irmã chorava em ui
E eu nem olhava pra trás
No dia que eu vim-me embora
Não teve nada de mais

Mala de couro forrada com pano forte, brim cáqui
Minha avó já quase morta
Minha mãe até a porta
Minha irmã até a rua
E até o porto meu pai
O qual não disse palavra durante todo o caminho
E quando eu me vi sozinho
Vi que não entendia nada
Nem de pro que eu ia indo
Nem dos sonhos que eu sonhava
Senti apenas que a mala de couro que eu carregava
Embora estando forrada
Fedia, cheirava mal

Afora isto ia indo, atravessando, seguindo
Nem chorando, nem sorrindo
Sozinho pra Capital
Nem chorando nem sorrindo
Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital
Sozinho pra Capital

Onde Eu Nasci  Passa Um Rio

Caetano Veloso

Composição: Desconhecido
Onde eu nasci passa um rio
Que passa no igual sem fim
Igual, sem fim, minha terra
Passava dentro de mim

Passava como se o tempo
Nada pudesse mudar
Passava como se o rio
Não desaguasse no mar

O rio deságua no mar
Já tanta coisa aprendi
Mas o que é mais meu cantar
É isso que eu canto aqui

Hoje eu sei que o mundo é grande
E o mar de ondas se faz
Mas nasceu junto com o rio
O canto que eu canto mais

O rio só chega no mar
Depois de andar pelo chão
O rio da minha terra
Deságua em meu coração

Reino Antigo/ Adeus, meu Santo Amaro
Caetano Veloso

Meu doce reino antigo
Onde araçás de mel me enchiam de prazer
No alto de galhos verdes perto de folhas tenras
Olhava o tempo e o mundo sentindo a vida passar suave
Tocando de leve como brisa a minha pele
Meu doce reino encantado
Onde sonhos, canções, gargalhadas brincavam dentro de mim
Te lembro sempre assim
Às sombras serenas em tardes quentes e lentas
Com leve cheiro de jasmim
Meu doce reino dourado
Te guardo só pra mim
Teus tesouros segredados
Teus mistérios encantados
Doce reino já passado
Onde certamente fui rainha
E naturalmente …. fui rei
………………………………………………………..
Adeus, meu Santo Amaro
Que eu dessa terra vou me ausentar
Eu vou para Bahia
Eu vou viver, eu vou morar
Eu vou viver, eu vou morar
Adeus meu tempo de chorar
E não saber porque chorar
Adeus, tristeza de ter paz
Adeus, minha cidade
Adeus, felicidade
 

Acrilírico
Caetano Veloso
Rogério Duprat


Olhar colírico
Lirios plásticos do campo e do contracampo
Telástico cinemascope teu sorriso tudo isso
Tudo ido e lido e lindo e vindo do vivido
Na minha adolescidade
Idade de pedra e paz

Teu sorriso quieto no meu canto

Ainda canto o ido o tido o dito
O dado o consumido
O consumado
Ato
Do amor morto motor da saudade

Diluído na grandicidade
Idade de pedra ainda
Canto quieto o que conheço
Quero o que não mereço
O começo
Quero canto de vinda
Divindade do duro totem futuro total
Tal qual quero canto
Por enquanto apenas mino o campo ver-te
Acre e lírico o sorvete
Acrilíco Santo Amargo da Putrificação

Adeus e canto agora
O que eu cantava sem chorar
Adeus, não volto nunca mais
Adeus, eu vou me embora

Bibliografia

BATISTA, José Marcelo Torres. “Cruz e Estrada”. (Monografia de conclusão do curso de Jornalismo – Faculdade de Comunicação da Ufba – 2001.1)

CHAVES, Vânia Pinheiro. “Um novo sertão na literatura brasileira: “Essa Terra”, de Antônio Torres” (posfácio que acompanha a 15a edição do romance “Essa Terra”). Rio de Janeiro, Editora Record, 2001.

FERRAZ, Délio José e SILVA, Maria Auxiliadora da (orgs). Visões Imaginária da cidade da Bahia: diálogos entre a Geografia e a Literatura. Salvador: EDUFBA. 2004. 184 p.

VELOSO, Caetano. Sobre as letras. (Org. Eucanaã Ferraz.). São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

VELOSO, Caetano. Letra Só. (Org. Eucanaã Ferraz.). São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. (Org. Eucanaã Ferraz.). São Paulo, Companhia das Letras, 1997.

REVISTA IARARANA n° 6, de Salvador, BA.

SANTOS, Milton..Metamorfoses do espaço habitado. (p. 26-27) São Paulo, Hucitec, 1994.

TORRES, Antônio. “Essa Terra”. São Paulo, Ática, 1996.

Sites pesquisados

www.antoniotorres.com.br

www.caetanoveloso.com.br

FERRAZ, Délio José e SILVA, Maria Auxiliadora da (orgs). Visões Imaginária da cidade da Bahia: diálogos entre a Geografia e a Literatura. Salvador: EDUFBA. 2004. 184 p.

Ibid.
* Este artigo foi apresentado como trabalho final da disciplina “Cultura e Contemporaneidade”, na Faculdade de Comunicação da UFBA, ministrada pela Profa. Dra. Gisele M. Nussbaumer, no semestre 2005.1.

Letra de Caetano Veloso. Gravação original do disco “Domingo” (1967). Ver letra em anexo.

Disponível no endereço  https://www.antoniotorres.com.br/biografia.htm

TRIGO, Luciano. Antônio Torres: sucesso no exterior é mistério. O Estado de São Paulo.

Dados do censo brasileiro realizado em 2000. (Fonte: IBGE)

Ibdem

Letra e composição de Caetano Veloso. Gravação original do disco “Cinema Transcendental” (1979). Ver letra em anexo.

VELOSO, Caetano. Sobre as letras. (Org. Eucanaã Ferraz.). São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

TORRES, Antônio. “Essa Terra”. São Paulo, Ática, 1996. p. 13-14.

Santos, M. (1994)..Metamorfoses do espaço habitado. (p. 26-27) São Paulo: Hucitec.

VELOSO, Caetano. Sobre as letras. (Org. Eucanaã Ferraz.). São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

Letra e composição de Caetano Veloso. Gravação original do disco “Estrangeiro” (1989). Ver letra em anexo.

VELOSO, Caetano. Sobre as letras. (Org. Eucanaã Ferraz.). São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

  Antônio Torres em entrevista à Revista Iararana n° 6, de Salvador, BA.

TORRES, Jornal do Brasil, 07.09.98, B-1

TORRES, op. cit.pág. 89-90

O romance “Essa Terra” é dividido em quatro partes, respectivamente nomeadas: “Essa terra me chama”; “Essa terra me enxota”; “Essa terra me enlouquece” e “Essa terra me ama”.

TORRES, op. Cit., pág.62-63

Este trecho refere-se a uma bonita passagem do romance “Essa Terra”, que descreve o processo de mudança interna que leva Nelo a sair e depois retornar a Junco:
“Ficou apenas um irmão, (…) um irmão que não guardou o seu velho chapéu de palha, que o pai comprou na feira, para que ele nunca andasse com a cabeça no tempo.
Esse tempo começou com uma enxada no ombro, a caminho da roça.
Era um caminho muito comprido, que ia ficando mais curto, à medida que ia crescendo, para vê-lo mais curto.
Depois foi o caminho da escola, de lá para a cancela. Parecia não acabar mais, até virar uma simples vereda: a cada dia ele amanhecia mais comprido, para ver as coisas mais curtas, embora o sol continuasse muito alto, nascendo no oriente e se pondo no poente, mas nunca era o mesmo sol. Ele nascia e morria para nascer de novo, então não era o mesmo sol.
E este sol ia secando tudo, secando o coração dos homens, secando suas carnes até os ossos, secando-os até sumirem – e lá se vai o tempo, manso e selvagem, monótono como uma praça velha que faz força para não ir abaixo, como se isso não fosse inevitável, como se depois de um dia não viesse outro com seus dentes afiados, para abocanhar um pedaço de nossas vidas, deixando em cada mordida os germes de nossa morte. E essa é a pior das secas. A pior das viagens. (…)

  1. É por isso que não sei se volto ou se fico. Acho que agora tanto faz. Porque o tempo que comeu meu chapéu de palha, está comendo o lugar que deixei em São Paulo. Deu pra você entender, Totonhim?” (pág. 123-124)

Letra e composição de Caetano Veloso. Gravação original do disco “Caetano Veloso” (1967). Ver letra em anexo.

Trecho de crítica escrita por Caetano Veloso ao ensaio fotográfico “Recôncavo – Santo Amaro” de Maria Sampaio. (1985)

Ibid.

Não inserimos esta música no anexo contendo as letras e no cd que acompanha este trabalho por considerarmos seu tema principal bastante pontual em relação ao nosso foco de análise.

BATISTA, José Marcelo Torres. “Cruz e Estrada” (Monografia de conclusão do curso de Jornalismo, Faculdade de Comunicação da Ufba – 2001.1)

FERRAZ, Ibid. 2004. 184 p.

“”Aquele que considera” a saudade / Uma mera contraluz que vem / Do que deixou pra trás / Não, esse só desfaz o signo / E a “rosa também” (Letra e composição de Caetano Veloso. Gravação original do disco “Estrangeiro” (1989). Ver letra em anexo.)

Disponível no endereço: https://www.antoniotorres.com.br/vida&obra.htm

Caetano Veloso em Depoimento à Luiz Tenório de Lima. Disponível no endereço: “www.caetanoveloso.com.br/ sec_discogra_textos”