Prefácio da edição de bolso

Capas de Essa Terra

Essa terra é o romance que consagrou Antõnio Torres como um dos mais lidos e queridos escritores brasileiros contemporâneos. Com este seu terceiro livro, nosso autor encontrou sua voz distintiva e amadureceu artisticamente o filão evocativo que definiria o perfil literário de parcela considerável das obras que publicou depois. Hoje a produção textual de Antônio Torres está enriquecida por outras dimenções que explorou ao longo de mais de 35 anos de carreira. Por todo esse tempo, porém, Essa terra manteve intactos seu frescor e vigor originais, conquistando lugar de destaque entre as obras legadas para a cultura brasileira pela memorável década de 70 do século há pouco terminado.

ƒ impossível não ler Essa terra nos parâmetros da tradição regionalista, embora o valor da obra em última instância venha mais do jeito como Torres conta a história do que do lugar ocupado pelo livro nos esquemas de crítica e teoria literária. Dentro da tradição regionalista, a obra situa-se num momento de transição. A década de 70 do século XX assistia ao início de uma transformação radical da realidade e do imaginário brasileiro do sertão, que iria refletir-se aos poucos em todas as dimensções da cultura criativa nacional, da música popular à literatura, ao cinema, ao teatro. Tal transformação histórica encontra-se claramente delineada em Essa terra, de tal modo que o livro pode ser considerado obra pioneira de uma nova fase em nossa literatura, posterior à dos clássicos modernistas.

Nessa nova fase, o tema da experiência do sertanejo que deixa o Nordeste comea a ser substituído pelo tema da experiência do sertanejo vivendo no Sudeste, principalmente São Paulo. Em Essa terra, dita experiência aparece pelo negativo, é presença ausente, assim como o próprio personagem Nelo no romance é presença ausente, narrada pelos olhos do irmão-mais-novo-que-ficou. O romance nos conta o desfecho dramático da história de vida de Nelo, jovem do sertão que um dia deixou a Bahia, viveu anos em São Paulo e voltou à sua Junco natal. O fato de seu breve retorno à terra natal ser contado pelo prisma do irmão mais novo que nunca esteve na metrópole, funciona como metáfora perfeita do ponto em que a literatura regionalista se encontrava, no momento em que Antônio Torres escreveu este seu livro pioneiro.

Um ponto zero. O novo tropo sertanejo que se impunha para o escritor daqueles anos 70, ainda se apresentava como território desconhecido. Era profundamente real, mas também profundamente desconhecido. Hoje todos nós sabemos que o sertão não virou mar, virou periferia das grandes cidades. E não apenas das cidades do Sudeste. Toda periferia urbana, de qualquer capital ou cidade média brasileira, é o sertão. No novo imaginário, sertão e periferia são espaços sinônimos, intercomunicantes enquanto paisagem. O sertão está na cidade, a cidade é o sertão. O espaço de Nelo é já o espaço da Macabéia de Clarice Lispector, é já o espao de filmes como Amuleto de Ogum (Nelson Pereira dos Santos) e Central do Brasil (Walter Salles). Nesse espao contemporâneo, a narrativa sertaneja opera o encontro entre a aridez do sertão rural, regional, tradicional, e a do sertão urbano, nacional e pós-moderno. De um lado, o cacto. De outro, as casinhas sem reboco apertadas nas vielas degradadas.

Mas é preciso libertar a leitura de Essa terra de uma pauta exclusivamente regionalista. E aí voltamos ao jeito como Torres conta sua história: a maneira fragmentada, cheia de idas e vindas, sempre pelo prisma do narrador Totonhim, o irmão mais novo que ficara no Junco. Já em seu primeiro livro, Um c‹o uivando para a lua, Torres prestara, na epígrafe, tributo a William Faulkner, autor icônico, referente indispensável para entender as ambições e os parâmetros estéticos do grupo de escritores dos anos 70 ao qual Torres esteve ligado, o grupo paulista reunido na revista Escrita, de Wladyr Nader. Cada um desses autores – Marcia Denser, o próprio Torres, Roniwalter Jatobá, Silvio Fiorani, entre outros – apropriou-se de Faulkner à sua maneira. Quando releio em Essa terra as páginas que narram o percurso tresnoitado em que o narrador leva a mãe para ser internada numa instituição psiquiátrica, sempre me vem à mente o relato arquetípico da viagem dos irmãos com o cadáver da mãe no clássico Enquanto agonizo.

Enquanto agonizam, sobrevivo. Talvez esteja aí uma das chaves de leitura deste Essa terra. Em última instância, a obra narra uma história de família, uma história de família em situação extrema de diáspora, separação, distância, como contingência mesmo da vida em diáspora. Uma história de família narrada por quem ficou e recolhe os restos de tanta dificuldade de diálogo para talvez no futuro construir sua própria narrativa – narrativa essa que Torres veio efetivamente a colocar no papel em livros posteriores. Assim como em Joyce e Virginia Wolf, a lição básica de Faulkner é um modernismo narrativo que combina fragmentação a fluxo discursivo na tentativa de mímese dos processos subjetivos internos. Em Antônio Torres, essa combinação representa o esforço de recuperação dos laços afetivos, no contexto árido e rascante de relações humanas irremediavelmente falhadas. Eu disse irremediavelmente? Mas para Torres, existe um remédio para as falhas do afeto: sua redenção pela palavra romanesca, que é também, sempre, palavra poética.

Italo Moriconi
Escritor, professor e editor
Setembro de 2008