Posfácio
Um novo sert‹o na literatura brasileira: Essa Terra, de Antônio Torres
A história narrada no romance Essa Terra, que Antônio Torres publicou em 1976, desenrola-se em espaços que tm referentes precisos na geografia do Brasil: as povoações do Junco, de Feira de Santana e Alagoinhas, situadas no interior do Estado da Bahia, e a cidade de São Paulo. Esta última, Alagoinhas e Feira de Santana surgem como áreas complementares, com maior ou menor importância no plano das ações e no nível do sentido, ao passo que a cidadezinha do Junco, atualmente denominada Sátiro Dias, forma o território fulcral da narrativa, aquele para o qual apontam em primeiro lugar os títulos da obra e das suas quatro partes. Embora a realidade geográfica do sertão brasileiro não esteja perfeitamente determinada — dado que em certas definições corresponde a todas as terras e povoações do interior, por oposição às do litoral, em outras engloba apenas as áreas mais desertas e distanciadas da costa e dos grandes centros urbanos e ainda noutras se restringe à zona interna da região nordestina, caracterizada por secas periódicas e pelo domínio da caatinga é, não resta dúvida de que ele É o espaço referencial nuclear de Essa Terra, pois o centro do mundo construído na narrativa (assim como algumas das suas periferias) se enquadra bem em qualquer das acepções mencionadas.
As formas e o significado que a representação do sertão assume nesse romance constituem a matéria do presente trabalho que busca, simultaneamente, posicioná-lo no quadro de uma possível literatura sertanejaÓ. Tal designa‹o se aplica aqui ˆ produ‹o liter‡ria erudita — da qual se excluem as produ›es de car‡ter popular como a literatura de cordel — em que se verifica uma estreita rela‹o entre o universo ficcional e a realidade f’sica e humana do sert‹o e que diversos estudiosos demonstraram constituir um fil‹o que atravessa a Literatura Brasileira desde o Romantismo. Nessa literatura, a manipula‹o dos aspectos f’sicos, sociais, econ™micos, pol’ticos, culturais e lingŸ’sticos do universo sertanejo tem, como n‹o podia deixar de ser, mudado ao longo dos tempos. A vis‹o que lhe est‡ subjacente varia entre dois extremos opostos, caracterizando-se ora pela idealiza‹o, pela exalta‹o, pelo otimismo, ora, ao contr‡rio, pelo realismo, pela atitude cr’tica, pelo pessimismo, quando n‹o combina tais caracter’sticas em propor›es e com efeitos variados. Nem mesmo no conjunto das obras que evidenciam uma forte marca de ÒveracidadeÓ na composi‹o do universo ficcional se encontra um retrato uniforme do sert‹o, porque, necessariamente incompleta, a imagem produzida em cada uma delas resulta da sele‹o, da combina‹o e da funcionalidade, no interior do texto, dos elementos extra’dos do real. Da’ a existncia n‹o de um, mas de muitos sert›es na Literatura Brasileira. H‡, contudo, semelhanas nessas representa›es, explic‡veis, em parte, pelas circunst‰ncias hist—ricas e pelas correntes estŽticas atuantes na Žpoca de produ‹o das obras, em parte, por motiva›es de natureza subjetiva.
Numa panor‰mica algo redutora, poder-se-ia considerar a emergncia de, pelo menos, quatro modos de abordagem do sert‹o: o rom‰ntico, o realista-naturalista, o neo-realista e o p—s-modernista. Se a modelagem rom‰ntica tem a sua express‹o mais acabada em O sertanejo, de JosŽ de Alencar, que, composto com as mesmas formas Žpicas e enaltecedoras utilizadas no manejo da tem‡tica indianista, traduz igual intuito de dar configura‹o m’tica ao homem e ˆ natureza brasileira, de acordo com as necessidades do nacionalismo da Žpoca, Os sert›es, de Euclides da Cunha, constituem um bom exemplo do tratamento realista-naturalista. A narrativa euclidiana, embora n‹o abandone inteiramente os processos da composi‹o Žpica, engrandecedora tanto do homem como da terra, n‹o os apresenta mais como meton’mias do todo nacional e d‡ primazia a uma reprodu‹o documental disf—rica baseada nas concep›es do determinismo e do positivismo. ƒ, por sua vez, herdeira do descritivismo realista e denunciat—rio de Os sert›es, mas n‹o comporta a sua vis‹o amplificadora, nem se sustenta nas mesmas teorias sociol—gicas e antropol—gicas, a recria‹o neo-realista do sert‹o, que tem manifesta›es numerosas no chamado romance nordestino dos anos 30, bem representado, neste caso, por Vidas secas, de Graciliano Ramos ou Seara vermelha, de Jorge Amado. Combina‹o nova das duas facetas da manipula‹o da tem‡tica sertaneja ocorre em Grande sert‹o: veredas, que se posiciona como marco fundamental no nascimento da fic‹o p—s-modernista brasileira e no qual o dado realista, local e epocal, ganha no plano simb—lico um car‡ter universal e supratemporal.
Embora com fun‹o seminal nos rumos tomados na abordagem contempor‰nea do universo sertanejo, o romance de Guimar‹es Rosa n‹o se imp™s como modelo obrigat—rio para os sucessores que, libertos das restri›es de uma poŽtica uniformizadora, se movimentam com uma independncia imposs’vel no passado. Disso d‡ prova a obra que vamos analisar, pois, influenciada quer pela constru‹o do Grande sert‹o: veredas, quer pela de formas anteriores da literatura do sert‹o, soube encontrar a sua pr—pria estrada, o que Ž tanto mais evidente quanto a recria‹o do universo sertanejo tem nela muito de autobiogr‡fico e de cat‡rtico.
Sob a forma de um relato fragment‡rio e memorial’stico, Essa Terra, apresenta a hist—ria tr‡gica de uma fam’lia de origem rural: a do narrador-personagem Totonhim. Nela se conta a ru’na e a desagrega‹o do seu cl‹, provocadas pelo abandono da terra natal — o Junco — e dos modos de subsistncia avoengos, que consistiam na cria‹o de gado e em alguns cultivos tradicionais, como o milho e o feij‹o. A tragŽdia se concretiza em numerosos acontecimentos, sendo os mais importantes: a ida para S‹o Paulo de Nelo, o irm‹o mais velho de Totonhim, e o seu fracasso na grande metr—pole: a mudana da m‹e, dos seus outros irm‹os e, posteriormente, do pai para uma povoa‹o vizinha mais desenvolvida — Feira de Santana — onde passam, contudo, a viver em situa‹o de maior pobreza; a perda da roa pelo pai, endividado com o Banco que aparecera emprestando dinheiro, mas o obrigara a introduzir o plantio do sisal; as sucessivas fugas das filhas e filhos crescidos, de que n‹o resulta melhoria significativa das suas condi›es de vida.
Ela tem como desfecho n‹o s— o suic’dio de Nelo, a loucura da m‹e, a solid‹o do pai, que, sem recursos, ter‡ de criar os trs filhos pequenos que ainda possui, mas ainda a decis‹o tomada por Totonhim de ir para S‹o Paulo. Essa partida, que se afigura como a œnica sa’da para superar o atraso e a misŽria, mas que pode implicar a repeti‹o do destino de Nelo, Ž uma solu‹o ego’sta, que o narrador-personagem parece querer justificar e expiar atravŽs de uma rememora‹o do passado onde se evidencia o sentimento ambivalente de amor e —dio que ele nutre pela fam’lia e pela terra natal. Tal ambivalncia Ž sugerida pelos t’tulos das quatro subdivis›es do romance, que s‹o na ordem em que aparecem: ÒEssa Terra me chamaÓ, ÒEssa Terra me enxotaÓ, ÒEssa Terra me enlouqueceÓ, ÒEssa Terra me amaÓ.
A hist—ria pessoal e familiar do personagem-narrador tem um car‡ter paradigm‡tico, pois comporta vivncias t’picas dos pequenos plantadores e criadores de gado e de seus descendentes, que comp›em uma das parcelas mais importantes da popula‹o do sert‹o brasileiro. Ë volta do entrecho principal giram personagens cujas figuras e hist—rias, constru’das de forma mais lacunar e com fei›es igualmente funestas, contribuem para alargar o painel calamitoso do universo sertanejo reproduzido na obra. Por conseguinte, o sert‹o est‡ perspectivado em Essa Terra a partir de uma —tica pessimista, denunciadora dos graves problemas da regi‹o e da misŽria dos seus habitantes, como j‡ havia acontecido na fic‹o do per’odo realista-naturalista e na dos anos 30/40 do sŽculo XX.
O romance assemelha-se ainda ˆ produ‹o liter‡ria das Žpocas referidas ao abordar matŽrias que nela constitu’am o cerne da problem‡tica sertaneja: o cangao, o misticismo religioso, as peri—dicas chuvas torrenciais e, sobretudo, o flagelo das secas c’clicas. Mas nele tais motivos aparecem ligados mais aos tempos passados do que ao presente. Assim, fazem parte da mem—ria coletiva do Junco tanto as figuras de Lampi‹o e de Ant™nio Conselheiro — este œltimo com um seguidor ainda vivo na cidade: o velho Caetano Jab‡, cujo apelido se deve ao fato de ter degolado em Canudos um soldado que estava comendo charque —, como a terr’vel seca de 1932, quando Òo lugar esteve para ser trocado do mapa do Estado da Bahia para o mapa do infernoÓ, e as chuvas diluvianas, que se lhe seguiram, trazendo um mort’fero surto de mal‡ria.
Diferenciam profundamente a obra de Ant™nio Torres das suas antecessoras a presena secund‡ria dessas tem‡ticas tradicionais e a pouca relev‰ncia que lhes Ž atribu’da como causa da misŽria do sert‹o e da sua popula‹o. Apesar de o Junco ser um fim de mundo onde nem Lampi‹o quis entrar, apesar de ser uma Òterra selvagem, onde tudo j‡ estava condenado desde o princ’pio. Sol selvagem. Chuva selvagemÓ, apesar de ser uma Òterra sempre igual a si mesma, dia ap—s diaÓ, com Òuma missa de vez em quando, uma feira de oito em oito dias, uma santa miss‹o de ano em ano, uma safra conforme o invernoÓ, configura-se tambŽm como uma Òterr [a] velh [a] e bo [a]Ó, mormente nos Òtempos em que os homens valiam alguma coisa porque tinham gado e palavraÓ.
Assim o define o narrador numa evoca‹o onde o sentido cr’tico n‹o esconde um afeto nost‡lgico:
O Junco: um p‡ssaro vermelho chamado Sofr, que aprendeu a cantar o Hino Nacional. Uma galinha pintada chamada Sofraco, que aprendeu a esconder os seus ninhos. Um boi de canga, o Sofrido. De canga: entra inverno, sai ver‹o. A barra do dia mais bonita do mundo e o p™r-do-sol mais longo do mundo. O cheiro do alecrim e a palavra aucena. E eu, que nunca vi uma aucena. Os cacos: de telha, de vidro. Sons de martelo amolando as enxadas, aboio nas estradas, homens cavando o leite da terra. O cuspe do fumo mascado da minha m‹e, a queixa muda do meu pai, as rosas vermelhas e brancas da minha av—. As rosas do bem-querer.
Para a ru’na atual s‹o, portanto, apontadas explica›es novas, diversas das expressas na literatura do passado e baseadas na compreens‹o moderna da existncia de uma espŽcie de colonialismo interno, em fun‹o do qual o sert‹o se tornou um territ—rio explorado e pauperizado pela regi‹o centro-sul, verdadeiro nœcleo do Estado nacional. Com efeito, esta regi‹o, representada na obra, sobretudo, pela cidade de S‹o Paulo, rouba ao Junco a sua fora produtora mais v‡lida — Nelo, ZŽ do Pistom, seu Caboco, Totonhim e um nœmero indefinido de rapazes, que nunca voltaram para buscar as moas que por eles esperam. Por isto, o pai de Totonhim s— v ˆ sua volta ÒCasas fechadas, terras abandonadasÓ e, considerando que ÒAgora o verdadeiro dono de tudo era o mata-pasto, que crescia desembestado entre as ruas dos cactos de palmas verdes e pend›es secos, por falta de braos para a estrovengaÓ, conclui que esses braos se encontravam ÒDentro dos ™nibus, em cima dos caminh›es. Descendo […] para o sul do BrasilÓ.
Mas a’ eles s‹o socialmente marginalizados e inferiorizados — difundidas que est‹o as idŽias de que Todo baiano Ž negro. Todo baiano Ž pobre. Todo baiano Ž veado. Todo baiano acaba largando a mulher e os filhos para voltar para a Bahia.
A’ tambŽm eles n‹o conseguem, em geral, uma boa situa‹o econ™mica e acabam por desiludir-se. Tal desilus‹o, indicada no profundo sentimento de solid‹o consubstanciado na afirma‹o de que ÒS‹o Paulo Ž uma cidade desertaÓ, est‡ expressa mais abertamente nas cartas em que Nelo, procurando convencer o pai a n‹o seguir para o sul, avisa que ÒS‹o Paulo n‹o Ž o que se pensaÓ no Junco.
Talvez n‹o seja distorsivo considerar-se que para Ant™nio Torres outro malef’cio oriundo da regi‹o sul se prende ˆ atua‹o do setor banc‡rio, uma vez que o centro financeiro do Pa’s nela se situa e na obra um representante de tal setor surge como elemento ex—geno, garantido pelo Estado Federal e propulsor de transforma›es econ™micas que a este primeiro interessam. Trata-se de ÒAncar: o banco que chegou de jipe, num domingo de missa, para emprestar dinheiro a quem tivesse umas poucas braas de terraÓ e que contribui grandemente para o empobrecimento de parte dos agentes econ™micos que restavam ao Junco, pois os convenceu de que os emprŽstimos oferecidos seriam fonte de progresso e os forou a introduzir novos cultivos, sem lhes dar as condi›es necess‡rias para o fazer. Nessa situa‹o se colocou entre outros o pai do personagem-narrador, que, como j‡ dissemos, teve de vender a sua roa para pagar as promiss—rias vencidas. Por isto, Caetano Jab‡, numa profecia apocal’ptica, impregnada do misticismo fatalista caracter’stico do sert‹o, pode resumir o evoluir desfavor‡vel da situa‹o econ™mica dos habitantes do Junco na seguinte assertiva: Ònossos av—s tinham muitos pastos, nossos pais tinham poucos pastos e n—s n‹o temos nenhumÓ.
O que mostramos permite entender que a abordagem da tem‡tica sertaneja em Essa Terra se afasta seja de uma meton’mica glorifica‹o do Pa’s, caracter’stica do Romantismo, seja de uma cr’tica externa de ra’zes sulinas ou litor‰neas e de bases positivistas e deterministas, que, expressa sobretudo nas œltimas dŽcadas do sŽculo XIX e nas primeiras do sŽculo XX, atribu’a a misŽria da regi‹o ˆs condi›es mesol—gicas e/ou ˆ forma‹o Žtnica da sua popula‹o. Pode-se, por outro lado, assinalar que tal abordagem partilha de um sentimento atual de revolta dos nordestinos contra o poder central, cuja explica‹o radica no fato de os desn’veis e as desigualdades entre as regi›es n‹o estarem sendo corrigidos, mas, ao contr‡rio, estarem a agravar-se com a expans‹o do modo de produ‹o capitalista por todo o territ—rio nacional. Nesse sentido, ela implica uma perspectiva interna ˆ sociedade sertaneja no seu desejo de reconhecimento e valoriza‹o pelo conjunto da na‹o.
O embasamento pol’tico e a atitude de denœncia n‹o prejudicam a realiza‹o estŽtica de Essa Terra, pois os elementos ficcionais se sobrep›em, afastando o risco do simples discurso panflet‡rio ou documental e produzindo uma imagem transfigurada e mais profunda do homem e do mundo. Essa imagem de fei‹o prioritariamente realista n‹o abandona de todo os mitos e os s’mbolos. Numa dialŽtica complexa, a intensa religiosidade do universo retratado se transfunde em sugest›es m’tico-simb—licas de ra’zes judaico-crist‹s, como a da Volta do filho pr—digo e a do Apocalipse.
A complexidade do universo criado no texto excede n‹o s— a das produ›es oitocentistas, mas ainda a de grande parte da fic‹o neo-realista. Mantendo grande fidelidade ao real, o sert‹o n‹o aparece nele apenas como cen‡rio, nem Ž objeto de descri‹o mais ou menos aut™noma, o que o distingue da literatura paisag’stica e descritivista do sŽculo passado. Enveredando pelos caminhos da narrativa sociol—gica e, sobretudo, psicol—gica, Ant™nio Torres faz dos aspectos f’sicos, sociais, econ™micos, pol’ticos, culturais do sert‹o matŽria essencial da trama e estabelece uma interdependncia profunda entre o espao, a a‹o e as personagens. O drama individual — ou melhor, uma prolifera‹o de dramas pessoais geradora de uma imagem multifacetada da realidade — ocupa o primeiro plano, mas os conflitos psicol—gicos descritos est‹o enraizados no contexto sertanejo, o que lhes d‡ uma dimens‹o englobante exemplar.
As personagens principais do relato n‹o se reduzem a representa›es t’picas do sertanejo. Totonhim, Nelo, o pai e a m‹e possuem profunda densidade humana, apesar da sua constru‹o fragment‡ria. Com qualidades e defeitos (talvez mais com estes do que com aqueles), tais personagens n‹o enfermam do manique’smo, nem da idealiza‹o dos her—is sertanejos tradicionais. O seu engrandecimento n‹o deriva tanto da peculiaridade dos valores do mundo de onde provm, mas da grandeza humana (e portanto universal) de tais valores. Personagens individuais e regionais, elas s‹o tambŽm figura›es arquet’picas do homem. A sua grandeza Ž a da condi‹o humana na busca infrut’fera da felicidade terrestre, concretizada no texto na procura frustrada, em cada uma, de condi›es de vida satisfat—rias. De igual modo, as numerosas personagens secund‡rias, que enriquecem a ambincia sertaneja da hist—ria, n‹o s‹o apenas figuras caracter’sticas do universo de que foram extra’das; s‹o, na sua incompletude, autnticos seres humanos, cujo car‡ter embrion‡rio n‹o as priva de fei‹o v’vida e din‰mica.
O sentido tr‡gico que impregna Essa Terra singulariza-a no conjunto das abordagens do sert‹o com que a temos confrontado. Este se manifesta quer na nostalgia de um passado irremediavelmente perdido, quer na cr’tica do presente, quer na ausncia de previs‹o duma felicidade futura. Contrapondo-se ˆ vis‹o euf—rica de uma natureza paradis’aca e de um homem ideal, que no Romantismo traduz uma ideologia conformista, defensora da ordem estabelecida, e ˆ vis‹o cr’tica que combina a denœncia do status quo com a fŽ numa ordem melhor, caracter’stica da ideologia reformista dos neo-realistas, o romance expressa uma postura n‹o conformista, mas tambŽm n‹o reformadora, cuja negatividade reside numa compreens‹o da tragŽdia essencial da condi‹o humana.
Caberia finalmente uma breve an‡lise da dimens‹o sertaneja da linguagem de Essa Terra, tanto mais que esse aspecto, nuclear na produ‹o liter‡ria, tem particular import‰ncia na Òliteratura sertanejaÓ, quase sempre muito ciosa da recria‹o dos falares regionais. No nosso romance n‹o ocorre a utiliza‹o sistem‡tica da linguagem nordestina, mas se encontram, tanto na fala das personagens como no discurso narrado, express›es e vocabul‡rio regional. As primeiras s‹o, todavia, pouco numerosas e parecem contaminadas pelo discurso do narrador, que, no momento da produ‹o do texto, j‡ estava distanciado do meio sertanejo e popular, quer pela educa‹o recebida, quer pela residncia fora do Junco, quer ainda pelo cunho erudito da tradi‹o liter‡ria em que se situa a sua narrativa.
A presena limitada do regionalismo lingŸ’stico explicar-se-ia tambŽm pela tendncia moderna para uma certa uniformiza‹o do linguajar popular, decorrente da atra‹o que a linguagem das ‡reas mais desenvolvidas do pa’s exerce sobre a popula‹o sertaneja. Esse fen™meno, bastante vis’vel na literatura de cordel, Ž assinalado no romance atravŽs da fala de um velho habitante do Junco que, recordando o seu encontro com Nelo e o prazer que sentiu ao ouvi-lo falar como ali ninguŽm seria capaz de fazer, afirma que Òa coisa que mais aprecia numa pessoa Ž ver a pessoa saber falarÓ. Ele revela, no entanto, um dom’nio insuficiente da linguagem ÒsulinaÓ, ÒcultaÓ, ao definir Nelo como Òum capitalistaÓ, atribuindo ˆ palavra o sentido de Òverdadeiro homem das capitaisÓ. Por conseguinte, a linguagem n‹o dialetal do romance n‹o indica um afastamento da realidade sertaneja, ao contr‡rio, confere coerncia e autenticidade ˆ narrativa.
Relacionando ainda outros aspectos da prosa ficcional de Essa Terra com a dos principais modelos da fic‹o sertaneja, observar’amos que, sendo a sua caracter’stica estil’stica mais marcante o despojamento, o cunho n‹o ornamental da linguagem, ela se afasta do tipo de prosa poŽtica de JosŽ de Alencar, de Euclides da Cunha ou de Guimar‹es Rosa, aproximando-se, por outro lado, da linguagem direta, contida e substantiva de Graciliano Ramos. Isto n‹o impede que apaream por vezes na obra imagens imprevistas e originais, constru’das a partir de elementos de realidade local. O trao essencial do discurso de Ant™nio Torres Ž, porŽm, uma linguagem oralizante, de frases curtas e ˆs vezes el’pticas e de lŽxico de extra‹o popular, como se tornou habitual a partir do Modernismo.
Caberia finalmente explicar por que se afirmou anteriormente ter a recria‹o do universo sertanejo em Essa Terra algo de autobiogr‡fico e de cat‡rtico. Esta idŽia encontra fundamento em semelhanas importantes detectadas nas biografias de Ant™nio Torres e do seu narrador, entre as quais se contam: a fam’lia numerosa, o nascimento no Junco, os estudos ginasiais em povoa›es vizinhas mais adiantadas, a emigra‹o para o sul, a atividade liter‡ria. Ajuda ainda a sustent‡-la o fato de aquela personagem ser designada apenas atravŽs do apelido Totonhim, freqŸentemente dado a quem tem o nome de Ant™nio. ƒ, por sua vez, sintom‡tico do aspecto cat‡rtico da obra — de f‡cil comprova‹o na sua estrutura interna, pois o sentido de expia‹o constitui o fulcro da rela‹o do narrador com o seu relato — a presena obsessiva na produ‹o romanesca do escritor dos mesmos dramas e do mesmo universo.
Vania Pinheiro Chaves
Professora de Literatura Brasileira na Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa