NAS LEMBRANÇAS DO HOMEM, A RELEITURA DO PASSADO: MEMÓRIAS EM O CACHORRO E O LOBO, DE ANTÔNIO TORRES

Capas de O Cachorro e o Lobo
Algumas capas de O cachorro e o lobo

Trabalho de conclusão de curso de Letras – Uneb 10 – sobre O Cachorro e o Lobo.
Teixeira de Freitas – Bahia – 2009
Cibele Soares Hermano
Cristiane Diamantino de Oliveira
Izabel Freitas Machado

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Uma fábula do bicho homem

Cid Seixas

“Num tempo em que esse mundo velho era povoado por contadores de histórias, um galo cantando fora de hora já era o começo de um romance”. É assim que Antônio Torres abre um dos capítulos iniciais do livro O cachorro e o lobo, assinalando um duplo resgate: o retorno a um tempo mítico, no qual o homem encontrava o vagar necessário para reparar nas coisas, e o resgate daquela gente que sabe contar histórias.

Habitando a fratura entre dois lugares distintos, a cidadezinha da infância perdida e a metrópole da competição, a obra de Torres se caracteriza pela procura do novo, pelo experimento. Já com este livro, ele abre as comportas do açude, deixando sangrar as águas da emoção mais direta e despojada. Se nos primeiros romances, a escritura precisava se ancorar na razão e apostar no experimentalismo para neutralizar as confissões do sujeito, chegou um tempo em que as descobertas devolveram à linguagem o saber necessário para falar do silêncio e do tumulto do homem.

O cachorro e o lobo é resultado do encontro da sensibilidade do autor com a sensibilidade do leitor, fundindo os dois rios num estuário em que a emoção e o sentimento mais íntimo não precisam ser escondidos. Quando a escrita é simultaneamente pessoal e transferível, o mar de palavras constrói aquilo que já foi definido por Drummond como o sentimento do mundo.

Autor de uma obra formada por quase uma dezena de livros, Antônio Torres vem sendo reconhecido, sobretudo, como o autor de Essa terra, romance publicado em 1976 e reeditado sucessivas vezes. As traduções do livro para o inglês, o francês, o alemão, o espanhol, o italiano etc. serviram para abrir espaço nas letras nacionais para este baiano do sertão que, a exemplo de outros retirantes, partiu em busca da terra prometida dos nordestinos: a São São Paulo, conforme o título da canção de um outro baiano emblemático.

Torres começou a vida como jornalista em Salvador, transferindo-se depois para a Última Hora de São Paulo e, finalmente, para o Rio, onde trabalha em publicidade.

O interior continuou sendo uma referência um tanto longínqua, embora forte, constituindo o espaço e o cenário mais profundo e recuado do seu mundo ficcional. Foi este espaço interior e paisagístico, que tem como centro polar a antiga Junco, no caminho dos sertões de Antonio Conselheiro, que forneceu a seiva de Essa terra. Foi este mesmo livro que consolidou o nome de Antônio Torres como escritor.

REFERENCIAL – Ao retornar, vinte anos depois, à ruidosa quietude da sua Macondo, Torres escreveu um livro que não apenas dá continuidade à saga de Totonhim pelas veredas do Junco e pelas terras da promissão que ficam “pra lá do Vale do AnhangabaÚ”. O cachorro e o lobo é um livro que, pela madureza da escrita e pelo domínio da técnica romanesca, passa a ser o referencial da obra do autor. Feito escritor, maduro e senhor do seu ofício, a volta ao lugar da partida serviu para corrigir o viés do olhar, ou para reescrever, com ternura e sabor de fruto sazonado, o intervalo entre a cidade e o sertão – a civilização e a natureza.

Durante muito tempo, embora refinando a escrita e diversificando a temática, Antônio Torres continuou sendo o autor de Essa terra. Mesmo quando a crítica apontava nele um artesão do texto mais seguro e cheio de inventos, o livro de 1976 projetava sombras sobre as novas histórias. Caio Fernando Abreu escreveu na Veja que Torres vinha conquistando um universo próprio inconfundível, com a garra de quem estava disposto a ocupar um dos grandes lugares vazios deixados na literatura brasileira por Clarice Lispector, Guimarães Rosa ou Osman Lins.

Mas Essa terra persistia como afirmação e desafio. O lugar da partida era apenas um ponto distante, um pólo distinto do lugar de chegada.

O cachorro e o lobo apresenta-se com a força de uma obra essencial, coroando a plenitude do romancista e propondo-se como referência obrigatória. Os fantasmas e criaturas do universo romanesco de Antônio Torres não mais pertencem ao pequeno mundo da velha vila do Junco. Pertencem à cidade solar da criação, ao lugar do sonho e do desejo de todo leitor. Ou melhor: o Junco que serve de paisagem ao romance O cachorro e o lobo não é mais uma cidadela plantada na “boca do sertão” baiano, nas estradas de poeira levantada pelas sandálias da gente de um outro Antônio, que erguia igrejas e torres. O engenho da ficção integrou o lugarejo desconhecido na geografia literária do mundo contemporâneo.

A Macondo de Antônio Torres e o Junco de García Márquez (que embaralham e confundem capitais de países de sonhos tão diversos) são cidades um pouco parecidas. Cidades que flutuam na memória e na sensibilidade de milhares de leitores.

O romancista de Essa terra, de Balada da infância perdida, escreveu uma Carta ao Bispo, pegou Um táxi para Viena d’áustria e, finalmente, conseguiu reunir frente a frente duas espécies próximas e distantes: O cachorro e o lobo.

LUGAR DE SONHO – Para juntar antepassados e pósteros de uma mesma família de migrantes desgarrados, o autor precisou criar um habitat adequado. Um lugar de sonho plantado sobre pálpebras abertas e olhos esbugalhados. Ele construiu uma cidade de todos nós, situada naquele espaço tão grande e desconhecido para o perplexo viajante, que Drummond cunhou o topônimo Oropa-França-Bahia, perdido nos confins do horizonte e da razão.

Com o progresso do Centro-Sul do país e o desequilíbrio crescente entre esta região e o Nordeste, uma nova humanidade de retirantes – não mais os retirantes da seca, mostrados pelo romance regional – habita as páginas da ficção torreana. São os migrantes de um outro Brasil, do Brasil perdido no tempo e nas roças abandonadas. Com a ilusão criada pelas luzes da Cidade Grande, o homem do Nordeste que plantava e colhia a vida nesse chão, nessa terra, foi plantar sonhos e desilusões nas construções de concreto de São Paulo.

é este homem, retirante de si, que Antônio Torres vai buscar para constituir a população da sua cidadela de papel. O velho lobo espalhou as crias pelo mundo. Mas, em vez de lobos, capazes de habitar as tocas do mato e liderar a matilha, nascem cachorros desgarrados, perambulando pelas ruas da cidade.

Uns são atropelados pelas máquinas. Outros desaparecem. Um ou outro cão solitário consegue se fazer ouvir, uivando para a lua, na esperança de algum dia reunir a matilha, como faziam os ancestrais.

Livro linear, que conta uma história palpável e de fácil assimilação, O cachorro e o lobo é também um romance emblemático, alegórico, onde leituras paralelas conferem uma nova dimensão à linearidade da fábula.

O forte deste livro é retomar o gosto de bem contar uma história, como faziam os narradores de ontem e como fazem os narradores de hoje e de sempre. Cervantes, Maupassant, Camilo, Machado, Torga, Amado ou Adonias.

Josué Montello, no Diário da noite iluminada, diz que todo o drama de Narciso está no fato da imagem que ele tem de si mesmo não coincidir com a imagem vista pelos outros. E lembra: por vezes, não é outro o desencontro do autor e do leitor.

Mas quando o artista vai se tornando senhor do seu engenho, o tiro no escuro, ou o experimento meramente probatório, na busca desesperada de fazer coincidir as duas imagens, cede lugar à confluência da emoção do autor para a sensibilidade do leitor. é o que acontece neste novo livro de Antonio Torres.

Farrapos de memória, cerzidos com fios dourados de ficção, ganham consistência ao serem aplicados à entretela do romance. Uma resistente costura de tacos multiformes constitui o bordado, ou o novo tecido, feito de materiais de natureza diversa para formar a textura una e bem urdida de uma bela colcha de retalhos onde nasceram o cachorro e o lobo.

Cid Seixas é jornalista e escritor. Dedica-se à crítica.

SEIXAS, Cid. O cachorro e o lobo: Uma fábula do bicho homem. A Tarde, coluna “Leitura Crítica”, caderno 2, p. 5, 30 jun 97.

SEIXAS, Cid. Antonio Torres escreve a fábula do bicho-homem. O Estado de S. Paulo, Caderno 2, p. 3, 8 de novembro de 1997. (Este texto resulta de uma nova versão do artigo anterior.)

. TORRES, Antonio: O cachorro e o lobo. Rio de Janeiro, Record, 1997.

Uma fábula sobre a felicidade

Jornal do Brasil – Rio de Janeiro, 14 de junho de 1997.
Telmo Wambier

Dos sentimentos do ser humano a felicidade é a mais sutil. Encoberta pela ansiedade, pelo desejo, pela ambição, normalmente é percebida como tempo passado. Vivido. “éramos felizes e não sabíamos”. Porque costuma-se confundí-la com a satisfação do desejo, com a conquista, com a posse. Dificilmente é sentida como presente e separada do ter. O ser humano está fadado à miséria da insatisfação. E talvez por isso a coloque sempre como tempo futuro ou passado. Raramente no presente.

Cego pela ansiedade, presa da propaganda e do consumo, o homem caminha por sobre ela numa rua ensolarada sem dar por isso, engole-a sem sentir-lhe o sabor, confunde-a entre sons e cheiros. A percepção da felicidade em sua sutileza é privilégio de poucos. E entendê-la como possibilidade construída no minimalismo existencial, de menos ainda.

O Cachorro e o Lobo, a mais recente criação de Antônio Torres, é um romance com título de fábula, que na essência versa sobre isso. Ou uma fábula na forma de romance. Que conta de um “cachorro” que procura a felicidade. Imagina-a vagando entre as luzes da cidade grande, já que não a vê onde nasceu. Deixa a sua Junco, um vilarejo perdido nos confins da Bahia, “terra de filósofos e loucos”, e perde-se imaginário São Paulo- Paraná, a terra rica do sul, paraíso verde onde as chuvas são um perene mês de maio e que “fica pra lá do Vale AnhangabaÚ, do Viaduto do Chá”. é dos cachorros o tudo revirar, na busca curiosa da vida.

Retornar 20 anos depois para comemorar os 80 anos do pai, um velho e matreiro lobo solitário, que todos tomam por maluco e bêbado. é dos lobos a solidão e a territorialidade. E descobre ali, no silêncio da cidadezinha quieta, “enfeitada de arvores e antenas parabólicas, à espera do fim do mundo”, entre os fantasmas do passado e a nostalgia da lembrança, tudo que um ser humano precisa para ser feliz.

Ela não está no São Paulo-Paraná, com seus carros, luzes e civilização. Mas no jeito de se olhar as coisas. Devagar, reparando na grandeza que há nelas. No sol que filtra pela janela da tapera do pai e ilumina a ponta de um banco de madeira, na sombra de uma amendoeira contra o cimento do passeio da rua, no cheiro da macaxeira colhida na horta do fundo do quintal.

Nas três etapas de um dia que segue o curso do sol – manha, tarde, noite – o narrador revisita a infância, a paz, o silêncio do passado. Conversa com os seus fantasmas e redescobre a sábia ingenuidade do pai que só, livre da família, tem por companhia meia-dÚzia de galinhas, que ciscam mas não falam. LÚcido e feliz, não precisa da civilização mais que cigarros, fósforos e sal. Uma vida de poucas necessidades.

Como todo filho do lugar que vai para terra dos sonhos, é recebido com festa, como celebridade. E percebe quão pouco se é pelo ter. E a riqueza do pai, traduzida na paz do cigarro fumando à janela da casa da rua. E no silêncio com que percebe a chegada da noite.

Na volta ao Junco, percebe que se afasta da paz ao criar necessidades desnecessárias. E entristece ao descobrir que o progresso e suas vicissitudes é inevitável. Que não tem mais serenata e prosa depois do jantar. Foram substituídas pela novela que entra pela parabólica. Mas ainda restam, lá, na praça, a Igreja do Povo de Deus, a bóia feita no fogão de lenha e um solão danado que reflete o branco das casas.

O progresso trouxe televisão, vídeo, o primeiro assalto, tudo isso posto no lugar dos causos, das visagens. Do sobrenatural. Tirou o povo da praça, chumbando-o às poltronas das salas. As longas noites, a noite, mãe das almas, madrinha dos sonhos, acabou. Como eram longas. Encurtou a saia das moças e a imaginação dos homens.

Mas nada disso tem muita importância. O Junco continua lá, no fundo da memória, a lembrar que o essencial pode ser vivido ali ou em qualquer parte, desde que se preste atenção nele. E que é feito de bem pouco. Muito pouco.

O banco levou tudo do velho lobo. As terras, a casa. Da antiga sobrou apenas um caco de telha. Só lhe restou a tapera, dois palmos para uma horta, as galinhas. E a sabedoria que o banco não leva. Eis aí. Isso lhe basta. Mais não precisa. Lá embaixo está a rua, como o lugar sempre foi chamado, desde os seus tempos de povoado. Virou uma cidadezinha quieta, silenciosa, enfeitada de árvores e antenas parabólicas. Talvez por isso fique olhando cismado para o radinho de pilha que ganha na despedida. “Não precisava”. Pra que se incomodar?

Vinte anos depois da publicação de Essa Terra, romance emblemático dos anos 70 que se tornou um clássico, Antônio Torres dá meia-volta. Seu narrador caminha novamente sobre sua terra.

O cachorro e o lobo demarca a maturidade do estilo. é o nono livro do autor, editado pela Record. Bom, leve, fácil, recheado ora de humor fino, ora do melancólico nordestino que mora na cidade grande mas namora com o interior. Numa linguagem enxuta, sem excessos, amarra o leitor à poltrona do começo ao fim. Livro para se ler de uma sentada. São 219 páginas. E depois ficar pensando se não está na hora de mudar de vida. De parar um pouco com o São Paulo-Paraná e procurar o Junco, ainda que numa janela da Avenida Paulista.

Escritor retoma personagem de 1976

Totonhim, o protagonista do novo livro de Antônio Torres, O cachorro e o Lobo, tem muitos pontos em comum com o seu criador. Ambos nasceram na pequena cidade de Junco, interior da Bahia e foram tentar a vida em São Paulo. Há quem chame Torres de Toninho, como o escritor e amigo Eric Nepomuceno, aproximando os nomes. No entanto, as semelhanças terminam aí. Enquanto Totonhim precisa voltar para Junco por ocasião do aniversario de 80 anos de seu pai, Torres nem pensa nesta possibilidade. “Sou um urbanóide, sempre gostei da cidade grande. Quando saí de Junco sabia que era uma viagem sem volta.”

E foi o que fez, mas ao poucos. Primeiro mudou-se para Alagoinhas para estudar e depois foi para Salvador, onde começou a escrever no Jornal da Bahia. Quando chegou em Salvador criou coragem para ganhar o Sul maravilha começando por São Paulo. Só mais tarde, depois de um período de três anos em Portugal, veio para o Rio de Janeiro. Isso não impediu, no entanto, que Antônio Torres revisitasse diversas vezes a cidade natal através de sua ficção. “Vim do interior, minha memória está nele. Isso me permite ficcionalizar histórias sobre Junco”. O caminho na ficção de saída e de volta a Junco já foi feito há 20 anos em Essa Terra, em 1976. Nele, o irmão mais velho de Totonhim, depois de passar 20 anos em São Paulo volta para a cidade, se desilude com o que encontra e acaba se enforcando no gancho da uma rede.

é a partir desta história que se desenvolve a trama de O Cachorro e o lobo. “O cenário e o personagem dos dois romances são os mesmos. Mas as histórias seguem idéias diferentes. Enquanto o Essa Terra tem uma tragédia por trás de si, O Cachorro e o Lobo tem um olhar otimista”. A cidadezinha de Antônio Torres deixou para trás quando tinha apenas 14 anos aparece no novo romance como um pequeno paraíso semidestruído, que absorveu a modernidade através das antenas parabólicas, do asfalto e até dos assaltos que já começam a acontecer. “Mas não existe desilusão na descoberta desta nova cidade. O romance não é saudosista nem cheio de falsos otimismos. Ele mostra que estes lugares perderam parte de sua identidade, se tornado híbridos”.

No entanto, esta descoberta não desagrada ao personagem. Ele vai chegar a pensar se realmente pode ter um lugar ali. “O mais importante do livro é o reencontro dele como seu pai, seu passado e consigo mesmo”. De uma forma ou de outra, este reencontro literário foi difícil de ser realizado pelo autor. O escritor passou quase quatro anos elaborando o romance, e depois depurando a linguagem e forma. “às vezes eu achava que não ia conseguir fazer o livro. Parava uns tempos, depois voltava. Sempre tive medo de fracassar nesse projeto, mas hoje posso dizer que foi um livro que me deu prazer.”

Quanto à sua própria vontade de voltar ao lugar e rever a família, Antônio é categórico: não volta. Gosta das cidades grandes em que morou e não hesita em viajar mais para conhecer outras e colher material para novos romances. Mas existe uma ponta de saudade da vida que podia levar em Junco. “Sinto falta do tempo em que eu era apenas eu, com uma japona, a pastinha do colégio na mão e um curioso olhar de descoberta”.

Filho Pródigo

Correio da Bahia – Salvador, segunda-feira, 17 de agosto de 1998.
Jean Wyllys

O escritor Antônio Torres passou o fim de semana ao lado dos personagens que o transformaram em um grande escritor de literatura brasileira e o colocaram no circulo dos romancistas que gozam de prestígios no exterior. O que pode parecer uma história fantástica não passa de pura realidade. Há décadas afastado de sua terra natal, Junco (hoje, Sátiro dias), Torres retornou ao lugar perdido no agreste da Bahia, a 191 LM de Salvador, para comemorar os 40 anos de emancipação do município. Como o protagonista do ultimo romance – O Cachorro e o Lobo –, o escritor voltou para a terra que cobre suas raízes.

Com saudades e faixas em todos os cantos, uma banda de pífaros e um bolo de 40m de comprimento, Sátiro Dias despertou de seu sono de morte não para festejar o aniversário, mais para homenagear aquele que a colocou nas páginas do jornal Le Monde, de Paris. A faixa estendida sobre a biblioteca municipal (que leva o nome do escritor) é o melhor exemplo dessa gratidão. Ela dizia: Totinho, obrigado por colocar essa terra no mapa do mundo“. Sendo Totinho o apelido local de Antônio Torres e Essa terra o título de seu mais famoso romance.

Impossível olhar para as mais de três mil pessoas que compareceram à missa em ação de graças a Torres e não ver os personagens da maioria de seus livros, gente dividida entre o amor à terra natal e a esperança de uma vida melhor em outras plagas. Todas as pessoas entre 15 e 20 anos entrevistadas pretendem deixar a cidade para morar em São Paulo. Difícil caminhar pelas ruas de Sátiro dias e não reconhecer o velo Junco descrito por Torres, pobre, ignorante e temente a Deus, apesar das antenas parabólicas. De acordo com o atual prefeito, Joaquim Cardoso Neto (PL), 54% da população de Sátiro Dias, é de analfabeto.

O próprio Antonio Torres, em seu discurso de agradecimento, disse não saber onde terminava a autobiografia e onde começava a ficção. “Meus personagens têm a cara dessa gente e essa gente tem a cara de meus personagens.”, ele disse. De fato, com nomes diferentes e existência real, os personagens de Torres podem ser encontrados em todos os lugares de Sátiro Dias. Desde “Nelo”, de Essa Terra (1976), até o “Totonhim”, de O Cachorro e o lobo (1997), passando por “Virinha”, o patriarca que aparece em todos os livros que têm Junco como personagem.

Aliás, Junco, a cidadezinha à espera do fim do mundo, e São Paulo, o eldorado, são ora protagonistas ora antagonista das histórias de Torres, assim como das histórias particulares dos moradores de Sátiro Dias. Para alguns, Sampa é o sonho que se converteu em pesadelo; para outros, Junco é a encruzilhada da qual São Paulo é a saída. No confronto concreto ou abstrato entre esses dois mundos, alternam-se sonhos, esperanças, desilusões, conformismo, loucura e morte.

Entre a ficção e a realidade

Os personagens de Antônio Torres, ele mesmo e a população de Sátiro Dias vivem consciente ou inconscientemente, e função da Parábola do filho pródigo – aquela história alegórica sobre o filho que abandona o lar na ânsia de viver experiências melhores, mas acaba voltando e encontrando a felicidade no lugar de onde nunca deveria ter saído. “A gente sai por causa da necessidade e volta por causa da saudade.” Explicou a mãe do escritor, dona Durvalice Torres, 77 anos, que há 34 deixou Junco para dar uma vida melhor aos filhos.

Seu Zeca de Julião (em Sátiro Dia, as pessoas ainda são identificadas assim0, 95 anos, também perdeu os seus sete filhos para o mundo. Morando no que restou da fazendo Mato Grosso, ao lado da esposa, dona Jardina, seu Zeca é a própria encarnação do “Velho” de O cachorro e o Lobo, solitário em suas conversas com os mortos. Sentado em uma cadeira de rodas, o velho Zeca de Julião ainda se lembra, com previsão de datas, a partida de cada um dos filhos. Já cega, devido à catarata, dona Jardina disse que até hoje chora o inevitável abandono.

A partida para a cidade grande é certa, mas o sucesso na mesma, nem sempre. O personagem “Nelo”, de Essa terra, ao retornar para Junco, enforca-se porque sua Cida miserável em São Paulo não correspondia às expectativas da família. O mesmo aconteceu com Lela de Tote, de quem os moradores de Sátiro Dias preferem não lembrar. Já seu Manoel do Nascimento, 65 anos, não tomou nenhuma atitude trágica ao voltar para Junco foi a melhor das decisões. “São Paulo é a terra em banco de praça”, contou.

A estudante Jeane da Cruz (mais conhecida como Jeane de Branco), 18 anos, sonha em deixar Sátiro dias para fazer um segundo grau decente (ela esta na 6ª série) e arranjar um emprego. “Salvador é o meu destino, eu sei disso”, confessou. Sentada no Cruzeiro da Ladeira, aonde vai rezar de vez em quando, cabelos ao vento, Jeane lembra a personagem “Virinha” de Adeus, velhos, a garota que, no “Cruzeiro dos Montes”, pensava em deixar o “buraco de solidão e poeira” para conhecer “o mundo das cores, das flores, das luzes”.

Torres já disse que “a palavra escrita tem muita força quando transmite ou reflete o que está na cabeça de todo mundo”. De fato, a indecisão entre o porto seguro e além-mar não é exclusiva dos habitantes de Sátiro Dias. Convidado, durante toda programação de aniversário da cidade, a falar sobre essa tensão, o escritor disse que mais do que ficar ou partir, o pior talvez seja parar no meio do caminho.

“O Cachorro e o Lobo” World Literature Today – Inverno de 1998

Universidade Estadual de San Diego, Califórnia
Malcolm Silverman
Tradução: Cláudia Mello Belhassof

Em seu oitavo romance, Antônio Torres (nasc. 1940) consegue aprimorar seu estilo habitual e, ao mesmo tempo, introduzir um formidável elemento lírico, cujo tom alivia consideravelmente temas familiares pesados como injustiça, sofrimento e morte. O apelo telÚrico não é mais rompido pela ambivalência e descrito em termos neonaturalistas, nem a sofisticada atração da costa megalopolitana brasileira está necessariamente em oposição dialética ao costumbrismo baiano “retrógrado”. Como expressão mais recente de autobiografia ficcional transformada em confissão, O Cachorro e o Lobo, com seu fluxo analítico de percepção, seu diálogo espontâneo e seus padrões circulares de tempo e espaço, apresenta um agradável tom de simetria pós-moderna.

O encadeamento da trama é bastante descomplicado, e o autor confia, uma vez mais, em uma (re)interpretação moderna do retorno do filho pródigo, sobreposta ao fluxo migratório endêmico no Brasil. é nesse mesmo contexto que o narrador-protagonista Totonhim, bem conhecido dos leitores de Essa Terra (1977), de Torres, encontra-se no meio dos acontecimentos, reaparecendo sem aviso em sua cidade natal, Junco, depois de um hiato de vinte anos passados em São Paulo. Aparentemente, Totonhim volta para casa com a intenção de atenuar um fervilhante complexo de culpa em relação ao pai, depois de ter faltado à comemoração – e consequente reunião de família – de seu aniversário de oitenta anos. Durante sua estada relâmpago, ele revisita pessoas e lugares bem conhecidos, refletindo sobre o contato cara-a-cara com seu pai. Nesse processo, no entanto, ele principalmente redescobre a si mesmo.

Torres estrutura seu dramático encontro de mentes (e, no caso da ex-paixão Inês, de corpos) em uma moldura cronológica e espacial cujos parâmetros condensados e claramente definidos são repletos de emoção teatral, ou mesmo clássica. Na verdade, meticulosamente envoltos por uma estada de 24 horas, estão ambientes específicos tão díspares quanto uma cozinha, um budoar, uma árvore mal-assombrada, o bar local, a delegacia de polícia, a escada da igreja, e a praça principal, para mencionar os mais memoráveis. A ambientação em tais locais abrange uma escala que vai desde a quase fantasmagoria até a objetividade fotográfica, fornecendo, também, uma arena propícia ao estudo dos personagens.

Sucessivamente, a maioria dos personagens, seja em carne e osso ou em lembranças (principalmente por parte de Totonhim), tendem a ser inocentes e inofensivos; e quando não o são, podemos, pelo menos, contar com seu humor cáustico e sua vivacidade. Personagens secundários – por exemplo, o prefeito que atende às próprias necessidades, a empobrecida tia Anita, o louco da cidade, e o sacristão homossexual – assim como personagens principais, mais especificamente o opinioso pai de Totonhim e a professora primária Inês, acrescentam profundidade tanto ao desenvolvimento dos personagens quanto à atmosfera de cidade pequena do nordeste. Quanto a Totonhim, quando não está conversando com os cidadãos de Junco, está pensando sobre eles, sonhando com eles ou falando neles, frequentemente incitado por catalisadores familiares, animados ou inanimados, que aparecem à sua volta.

Enquanto isso, o macrocosmo de Junco está repleto de sons reconhecíveis, especialmente de mÚsica moderna, cuja popularidade contagiante e letras transcritas de maneira liberal inadvertidamente servem para reduzir ainda mais a tradicional divisão entre os dois mundos do Brasil (e de Totonhim). Além disso, ao longo da narrativa há, também, uma abundante intertextualidade literária, mais extensa, compreensivelmente, na homenagem do autor a Pedro Páramo e nos mÚltiplos paralelos dos clássicos mexicanos com O Cachorro e o Lobo. Com a presença do luar, de cheiros, de São João, do roubo de galinhas, de um toque sobrenatural, e de uma nostalgia palpável, esse lugar atrasado tornou-se um palco vibrante e sensual e uma alternativa desejável à afobada cidade de São Paulo.

Por isso, não é de surpreender que fotografias não convencionais do convencional eixo norte-sul – aquele notável por sua privação e este por sua onipresença – estabeleçam, talvez, o mais duradouro assunto do romance, dominando o tema, o espaço e a caracterização. Em todos os níveis, o autor enfatiza o contraste divergente em todas as suas nuances sutis e não tão sutis: velho/novo, tradicional/moderno, pobre/rico, interior/litoral, paz/violência, antes/depois, calmo/nervoso, e mesmo faz-de-conta (reconfortante)/(dura) realidade. O titulo do romance também faz alusão, simbólica e subconscientemente, à diversidade dicotômica, aqui personificada no filho e no pai, como se um fosse um canino dependente e domesticado e o outro, um nobre e experiente caçador.

No conjunto, O Cachorro e o Lobo é, paradoxalmente, uma narrativa insistentemente contemporânea e uma odisséia atemporal. O realismo psicológico predominante no livro, no qual até a metaficção faz uma ou duas pequenas aparições, une-se de maneira simbiótica a interlÚdios tão poéticos quanto a exuberância erótica da perda de inocência de Totonhim e Inês, certamente a passagem mais lírica da narrativa. O assunto principal do livro é a jornada mÚltipla com viagens sobrepostas dentro e à volta do paraíso na Terra chamado de Junco. O vinculo, o afeto e o respeito mÚtuo entre pai e filho estão abundantemente presentes em toda parte. Na verdade, no final do romance surge até mesmo uma chuva de purificação, como se anunciasse um novo começo. Além disso, O Cachorro e o Lobo é, antes de mais nada, uma extensão otimista e uma esperança de um novo Brasil, harmonicamente transformado em um só.

Volta ao Lar

Revista ISTO é / 1461-1° – 10/1997
Maria González

“Antônio Torres narra suas lembranças sem pieguice”

Vinte e quatro horas, um dia apenas, para tentar compensar 20 anos de distância, é o desafio enfrentado por Totonhim, filho de Totonho, o migrante que um dia deixou sua Junco natal, nos sertões da Bahia, para cumprir a sina de menino estudado, virando funcionário do Banco do Brasil na São Paulo de todos os sonhos. O menino que volta, homem feito, pai de família e amante de boleros, veio apenas por algumas poucas horas para reencontrar o pai que comemora 80 anos de excêntrica solidão. Este encontro cheio de emoção e lembranças é o cerne do novo livro do baiano Antônio Torres, O Cachorro e o Lobo, um ponto de partida que, apesar de igual ao de muitas outras bobagens cometidas em nome da saudade da terra abandonada, resulta num romance sensível e original.

Não há no trabalho de Torres nenhum rastro da pieguice que costuma assolar as reminiscências dos paus-de-arara de diferentes calibres e acervos, sempre ávidos por seguir os rastros de miséria imortalizados por Graciliano Ramos. Ao contrário, toda emoção é burilada com bom humor e uma dose de elegante ironia, proporcional ao risco de ridículo de cada situação. Não se trata, no caso, de uma história triste de migração lamentada, mas de uma ode ao amor de um filho pelo pai e de um pai por seu filho. Torres faz um brinde à saudade saudável, que dói de mansinho, e à ternura das memórias cultivadas de outros tempos. Não existe no livro – porque ele não faz a menor falta – a miséria indigna, que humilha. Mesmo a pobreza que atravessa o caminho do protagonista ostenta orgulho na sua história.

Os amores esquecidos, ao ressurgirem fugazes, têm a deliciosa função de reavivar, na ponta da língua o doce sabor dos beijos adolescentes e não de amargar o coração com ressentimentos. As lembranças dos mortos e as desgraças desbotadas pela poeira dos anos servem tão-somente para valorizar os vivos e suas rotinas pacatas. Até os medos primitivos, as assombrações que ficaram na memória de um menino, são instrumentos de reconhecimento de uma realidade que já não é mais ofuscada pelas antenas parabólicas e pela globalização das gentes. Um livro, em suma, ideal para quem gosta de suas próprias lembranças.

Me chamam de senhor

O Dia, Rio de Janeiro, 17/06/1997
Armindo Blanco

Do meu aquário de editor, na Última hora de São Paulo, eu o via no outro pólo da redação, junto à janela que dava para o Anhangabaú. Tímido, caladão, só observando. Aprendiz de repórter esportivo. Quando eu saía, por volta da meia-noite, para ir aos comes e bebes no Gigeto com Jô Soares, Inácio de Loyola Brandão e Zé Celso, ele já sumira na floresta de cimento armado.

Zé Celso era o novo mago do teatro paulista; Jô e Loyola brilhavam na equipe de UH. Equipe irretocável, segundo Cláudio Abramo, cheia de pessoal futuroso. Dela alçaram vôo, entre outros, o Ricardo Amaral, que fazia uma coluna para adolescentes e se tornaria rei da noite, e Ary Carvalho, que era chefe de reportagem e depois virou capitão de imprensa. Quanto ao mocinho de olhar atento que se alojava perto da janela, não virou patrão. Continua assalariado. Publicitário. Mas, sobretudo, romancista, autor de Um Cão Uivando para a Lua, Os Homens dos Pés Redondos, Essa Terra, Carta ao Bispo. Seu nome: Antônio Torres. Quem diria!

Fui à noite de autógrafos (sou freguês de caderno, ele nunca deixa de me mandar convite) em que lançou seu novo romance: O Cachorro e o Lobo. Mais gente do que num forró: escritores, bambas da publicidade, estrelas de teatro (Maria Padilha e Dora Pellegrino derramando eletricidade).

Na dedicatória, ele registra “o muito” que eu lhe teria ensinado, “há anos”. Quantos? Não quero fazer as contas. O Torres, caboclo nascido e criado a feijão e rapadura no Junco, povoado perdido nos cafundós baianos, mantém o riso trocista de Totonhim, o cachorro do romance; mas o declive para os 60 está bem à vista.

Voltara ao Junco vinte anos depois de ter emigrado para São Paulo. O Junco, cruzeiro de acontecimentos que sua memória guardara, não é mais o mesmo. Não havia nem rádio nas casas, hoje metidas a besta com suas antenas parabólicas. Mudou até de nome: agora é Sátiro Dias. Só não mudou o pai octogenário de Totonhim, que continua com seus hábitos de lobo.

Enquanto cozinha uma bóia para o filho pródigo, o velho cita as sagradas profecias sobre o fim do mundo: “Não mais a água; da próxima vez, o fogo”. Talvez, quem sabe, antes de começado o terceiro milênio. E faz um voto: “Se o mundo vai mesmo se acabar, eu queria estar aqui pra ver. Pois vai ser o maior espetáculo da terra”.

No entanto, há coisas piores, filosofa. Quem, como ele, viveu além da conta, sabe muito bem: “Fim de mundo mesmo, Totonhim, é a velhice. é você olhar para uma linda mulher e ela lhe chamar de senhor”.

O Cachorro e o Lobo consagraria o autor, se ele já não fosse afamado europas afora. Estava eu me regalando na leitura, me perguntando se o Torres teria aprendido comigo a escrever essa prosa tão ligeira e bem temperada, quando pintou, antes de dobrada a primeira meia centena de páginas, aquele papo sobre a velhice. Um trauma. Sob o matriarcado em que trabalho, eu que venho do tempo em que redação de jornal era clube do Bolinha, estou rodeado de lindas mulheres. E – reparo agora – todas, ou quase todas, me chamam de senhor.