Me chamam de senhor

O Dia, Rio de Janeiro, 17/06/1997
Armindo Blanco

Do meu aquário de editor, na Última hora de São Paulo, eu o via no outro pólo da redação, junto à janela que dava para o Anhangabaú. Tímido, caladão, só observando. Aprendiz de repórter esportivo. Quando eu saía, por volta da meia-noite, para ir aos comes e bebes no Gigeto com Jô Soares, Inácio de Loyola Brandão e Zé Celso, ele já sumira na floresta de cimento armado.

Zé Celso era o novo mago do teatro paulista; Jô e Loyola brilhavam na equipe de UH. Equipe irretocável, segundo Cláudio Abramo, cheia de pessoal futuroso. Dela alçaram vôo, entre outros, o Ricardo Amaral, que fazia uma coluna para adolescentes e se tornaria rei da noite, e Ary Carvalho, que era chefe de reportagem e depois virou capitão de imprensa. Quanto ao mocinho de olhar atento que se alojava perto da janela, não virou patrão. Continua assalariado. Publicitário. Mas, sobretudo, romancista, autor de Um Cão Uivando para a Lua, Os Homens dos Pés Redondos, Essa Terra, Carta ao Bispo. Seu nome: Antônio Torres. Quem diria!

Fui à noite de autógrafos (sou freguês de caderno, ele nunca deixa de me mandar convite) em que lançou seu novo romance: O Cachorro e o Lobo. Mais gente do que num forró: escritores, bambas da publicidade, estrelas de teatro (Maria Padilha e Dora Pellegrino derramando eletricidade).

Na dedicatória, ele registra “o muito” que eu lhe teria ensinado, “há anos”. Quantos? Não quero fazer as contas. O Torres, caboclo nascido e criado a feijão e rapadura no Junco, povoado perdido nos cafundós baianos, mantém o riso trocista de Totonhim, o cachorro do romance; mas o declive para os 60 está bem à vista.

Voltara ao Junco vinte anos depois de ter emigrado para São Paulo. O Junco, cruzeiro de acontecimentos que sua memória guardara, não é mais o mesmo. Não havia nem rádio nas casas, hoje metidas a besta com suas antenas parabólicas. Mudou até de nome: agora é Sátiro Dias. Só não mudou o pai octogenário de Totonhim, que continua com seus hábitos de lobo.

Enquanto cozinha uma bóia para o filho pródigo, o velho cita as sagradas profecias sobre o fim do mundo: “Não mais a água; da próxima vez, o fogo”. Talvez, quem sabe, antes de começado o terceiro milênio. E faz um voto: “Se o mundo vai mesmo se acabar, eu queria estar aqui pra ver. Pois vai ser o maior espetáculo da terra”.

No entanto, há coisas piores, filosofa. Quem, como ele, viveu além da conta, sabe muito bem: “Fim de mundo mesmo, Totonhim, é a velhice. é você olhar para uma linda mulher e ela lhe chamar de senhor”.

O Cachorro e o Lobo consagraria o autor, se ele já não fosse afamado europas afora. Estava eu me regalando na leitura, me perguntando se o Torres teria aprendido comigo a escrever essa prosa tão ligeira e bem temperada, quando pintou, antes de dobrada a primeira meia centena de páginas, aquele papo sobre a velhice. Um trauma. Sob o matriarcado em que trabalho, eu que venho do tempo em que redação de jornal era clube do Bolinha, estou rodeado de lindas mulheres. E – reparo agora – todas, ou quase todas, me chamam de senhor.