A escritura de Antônio Torres

Diário do Nordeste, 29/08/2004
Carlos Augusto Viana


A expressão literária de Antônio Torres centra-se, sobretudo, no compromisso em apreender, sem concessões, a condição humana. O homem, em seus contrastes, alimenta-lhe a ficção. Mas que não se enxergue aí o nó das introspecções. Não. Suas personagens, colhidas ao cotidiano, podem até amealhar seus grãos de silêncio; no entanto, realizam-se no outro e neste buscam referências. E, à semelhança dos heróis trágicos, fogem das coisas só para encontrá-las e delas se aproximam para perdê-las.

Um dos grandes temas do Autor é o da desintegração da existência: o homem devorado pela máquina do mundo. Assim, é, em sua escritura, recorrente o conflito entre o passado e o presente. Tem a consciência de que a pós-modernidade vive uma confusão moral. O indivíduo, perdendo a sua relação com a sociedade, é tão-somente um registro num documento. Contempla o espelho do tempo e busca, por entre águas baças, o seu verdadeiro rosto. Eis, ainda que embaralhados, os motivos de “O cachorro e o lobo” (Record, 219 páginas), romance que faz uma ponte com “Essa terra”, obra que abriu o caminho para a consolidação do nome de Antônio Torres como um dos mais virtuosos ficcionistas de nossa contemporaneidade.

Em “O cachorro e o lobo”, Antônio Torres, despojado, imprime, já nas primeiras linhas, a lâmina de sua incisão:

Eis-me de regresso a essa terra de filósofos e loucos, a começar pelo meu pai, que disso tudo tem um pouco.

E se aqui estou é por causa dele mesmo. Ou melhor, dos seus oitenta anos. Foi uma festa de arromba, me disseram. No dia seguinte!

Um presente de grego, pensei, sem saber se ria ou chorava. Sim, só fiquei sabendo quando já havia acabado e todos já estavam pegando o caminho de volta. E aí uma boa alma deu por falta de uma rês que fazia muito se desgarrara do rebanho. E fez o que seu coração mandava e suas pernas ainda podiam aguentar: correu. Como se algum filósofo lhe tivesse soprado ao pé do ouvido que não é a fé que remove montanhas, mas o complexo de culpa. Pois havia sido ela mesma, a benquista, tenra, responsável, abnegada, devotada etc., e agora chorosa mana Noêmia, a escolhida para avisar ao irmão ausente – o que vivia longe, sem dar notícias, sem escrever nem telefonar para ninguém. E, assim, o que se esquecera de tudo e de todos agora havia sido esquecido. (p. 7-8)

Vê-se, a partir desse fragmento, que a linguagem é uma nota singular em Antônio Torres. As palavras fluem naturais, espontâneas. Brinca, amiÚde, com o exercício da intertextualidade, principalmente com fragmentos do nosso cancioneiro popular: “Nessa terra sem rádio e sem notícias das terras civilizadas”; (p.12) “E assim se passaram vinte anos sem eu ver estes rostos…”; (p.17) da mesma forma, bem à vontade, dialoga com “O ébrio”: “Tornei-me um ébrio e na bebida busco esquecer…”; (p.24) com Pixinguinha: “Tu és/ divina e graciosa / estátua majestosa / do amor…” (p.98) ou com o “Corvo”, de Poe: “Disse o corvo: – Nunca mais!” (p.37).

Seus períodos, predominantemente curtos, encontram, na expressão nominal e na fragmentação sintática, os instrumentos por que possa o Autor conferir verdade e humanidade, quer ao foco, quer ao discurso: “Pobre filho de uma égua. Ele mesmo. Papai. Meu pai. O velho. Mas eu estava pau da vida com essa história de não haverem me avisado antes sobre os seus oitenta anos. Esqueceram de mim.”(p.12) O palavrão assume feição estética, uma vez que pincela, com tintas fortes, as emoções. Antônio Torres recusa quaisquer artificialismos. Rima carne com desejo, terra com memória.

A memória, aliás, ordena, em todo o livro, o desenvolvimento do foco narrativo. O narrador, sob o ponto de vista interno, recupera, no presente, o passado. Um tempo de vinte anos marca a linha entre a partida do protagonista e sua volta a Junco, no interior da Bahia. A experiência da personagem – que também narra a trama – consiste em reintegrar-se a essa nova ordem. A cidadezinha que carregara, até então, consigo, se já não mais existe enquanto realidade física, assoma, imperiosa, na fala geral da família, no que os ventos trazem em seu tropel atávico.

O sertão do longe se ergue, sobremaneira, na figura do octogenário. Ao fim da tarde, senta-se à varanda de sua casa da roça, acende um cigarro e se entrega a uma das horas abertas. Recebe a companhia dos mortos. Sempre solícitos e pontuais, despedem-se do velho, prometendo-lhe um novo encontro no dia seguinte. Nesta cena, Antônio Torres, recorrendo ao maravilhoso, relembra ao leitor que o cotidiano é, também, abrigo do insólito. Comumente, no imaginário das populações, a realidade física se alia a um mundo mágico. A tonalidade mágica tudo envolve, matiza, transfigura, mas convive com o real, e de tal forma a ele unida, que é impossível discerni-los ou desembaraçá-los. Faz-se, porém, necessário ressaltar que o maravilhoso está a serviço de uma expressão do social. Talvez por isso o insólito não faça nascer o medo no leitor ou nas demais personagens, uma vez que os que vivem tais experiências são acolhidos, socialmente, sem que despertem quaisquer temores.

No entanto, hoje, uma cidade existe. Para redesenhá-la o narrador, guardião da memória coletiva, serve-se do recurso da oralidade popular de que “Sempre houve o primeiro isso, o primeiro aquilo”. (p.57) Recrudescem, assim, as imagens do primeiro professor, para que ressoem os gritos dos menos afortunados ante a sádica palmatória; a mãe, como a primeira mulher a aprender a ler e a escreve, dentre as do seu tempo; a primeira prostituta que se confundira com a primeira visão do paraíso; o primeiro homossexual, um sacristão que sabia a missa inteira em latim; o primeiro homem triste, definhando por doenças venéreas.

De sua janela, a personagem protagonista depara o tédio do anonimato:

Agora sou eu o que volta, sem festa nem foguetório. Pelo tempo em que estou à janela e pela rapidez com que as notícias correm neste lugar, já era para te sido notado. Mas ninguém apareceu ainda para os rapapés de antigamente. Vai ver o ir e vir se tornou tão banal que já não impressiona a pessoa alguma. São Paulo virou um caminho de roça. O mundo ficou pequeno. Viajar já não pé mais uma aventura emocionante. (p.69)

E faz surgir no leitor a dÚvida acerca do que, em verdade, procura esse filho pródigo. Ora, sendo Antônio Torres, por natureza, um alegorista, a cidadezinha do Junco é metonímia do mundo atual. A partir de um microorganismo, o todo se impõe de modo inquestionável. A desfiguração é a grande marca da pós-modernidade. O homem sem rosto, de raízes desprovido. Voltar ao passado é, sobretudo, perdê-lo. A personagem, de sua janela, vivencia a vida besta. A realidade se incrusta entre o que ele esperava ver e aquilo que ele, deveras, vê. Nesse contexto, a alegoria é o realismo. E se assim se afirma, é porque encontra esteio na escrita do Autor, desprovida de todas as características supérfluas, daí livrar a alegoria das naturais condensação e complexidade.

Com melancolia, a personagem protagonista constata que a gente do lugar já não mais quer saber de roça; o povo quer mesmo é rua, é movimento, é animação. Já não há as casas de roça de antigamente. O canto dos galos já não singra os quintais. Já não se debulha o verde das sementes:

Ao saltar a cancela, no retorno da minha visita ao pedaço de terra onde o meu umbigo havia sido enterrado, assim a que a parteira passou-lhe a tesoura e o meu pai apressou-se em sepultá-lo nos fundos da casa, como fez com o de todos que nasceram antes e depois de mim, comecei a achar que eu era um homem de sorte. Porque tive muita sorte mesmo de entrar e sair ileso, sem levar um tiro nas costas ou ser preso, por invasão de propriedade alheia. A que em meus sonhos aparecia como ainda sendo nossa. A minha casa no campo, em algum lugar do Brasil”. (p.138)

é exatamente isso o que vive a personagem: uma sucessão de perdas. Junto a essa desastrosa experiência vem a consciência de sua irremediável solidão. E esse sentimento de perda se aguçará de tal forma que, como se estivesse diante de um enorme e mágico espelho, o protagonista enxerga o aniquilamento de sua história e a perda total de sua identidade como indivíduo.

Por tudo isso, existe entre Antônio Torres e o leitor uma cumplicidade. A comunicação que não se deixa impregnar pela comunhão não atinge a sua plenitude. Abre, a rigor, crateras de vazio. O verdadeiro artista é o que depara, no invisível, os visíveis necessários ao engrandecimento humano. Se, consoante Ezra Pound, a literatura não existe no vazio, e tem o escritor uma função social, Antônio Torres cumpre-a plenamente. E o faz porque, com imaginação, criatividade e inquieto espírito, está sempre instigando o leitor a redimensionar valores, a reordenar os dias, a refletir sobre o passado e considerar o que dele herdou a contemporaneidade. Tangos, boleros, forró e samba-canção. Memória e pó. O cachorro e o lobo.