Clique para ver maior em uma nova aba: Identidades Fragmentadas: o olhar profícuo Pelo Fundo da Agulha – Ulisses Macedo Júnior.
identidades_fragmentadas_UlissesMacedoCom a coragem e a cara (2015) Fernanda Sampaio Carneiro
Anoitecia. Lá se fora a Ladeira Grande. Adeus, Junco. Junco: assim se divulgava o nome daquele lugar, que o ônibus ia deixando para trás. Cada vez mais. (p.109)
Pelo fundo da agulha (1ª edição em 2006, 4ª edição em 2014) fecha a trilogia iniciada com Essa Terra, e seguida por O cachorro e o lobo. A saga de Totonhim continua – o nordestino que foi embora para São Paulo aos 20 anos. Antes de ir ele viu o suicídio do irmão Nelo na terra natal de ambos. Foi um dos motivos que o fez abandonar a sua terra. A mãe enlouqueceu e foi internada num hospício em Alagoinhas; o pai em Feira de Santana, cada um para um lado. Totonhim rumo a São Paulo.
O juízo da gente é assim como aquela linha fininha, que as costureiras enfiam no fundo da agulha. Quando se rompe, fica difícil de fazer remendo. (p.99)
O protagonista de Pelo fundo da agulha é casado, trabalha no Banco do Brasil e é pai de Rodrigo e Marcelinho, ele conta histórias aos filhos antes de dormir, viaja à Paris “em suaves prestações”, foi assaltado em Barbesse. Visita o túmulo de Oscar Wilde e vira flâneur pelas ruas onde pisava Charles Baudelaire. Conversa com o taxista filho de imigrantes armênios, que é francês, mas considerado cidadão de segunda classe. Nosso viajante fala francês, portanto. Faz “turismo fúnebre”, interessa- lhe os epitáfios, visita o túmulo de Balzac no Père-Lachaise. E na despedida, o taxista lamenta por seus pais não terem imigrado ao Brasil, aonde os filhos de armênios tornam- se cidadãos de êxito. E agora vem a genialidade narrativa do autor, que arremata com essa frase que condensa todo um sentimento universal e inerente à maioria dos seres humanos:
Aonde quer que você for, vai encontrar alguém com um lugar de sonhos. (p. 30)
Totonhim viaja. A menininha moradora no extremo norte do país estuda na Guiana Francesa para aprender francês e um dia ir morar em Paris.
O desejo era o seu passaporte, ele pensaria. Não, não teria coragem de cortar- lhe as asas, com advertências inúteis: “Assim como os rios, as mais sedutoras cidades do mundo têm suas margens. Você pode estar destinada a cair na pior delas.” (p. 33)
(…) Corre menina, corre. O mundo ficou tão pequeño quanto o fundo de uma agulha. Grande é o teu sonho de criança. (p. 34)
Na página 88 existe uma descrição perfeita do motivo que fazia (e ainda faz) muitos brasileiros do interior escaparem para as grandes cidades do Brasil ou do exterior.
A linguagem é contemporânea e o tempo não é linear. A narrativa acontece em épocas diferentes e em lugares diferentes. Totonhim jovem empreendendo sua grande aventura na metrópole; maduro, já na época das memórias. O narrador é onisciente: seletivo, vê tudo, sabe de tudo, sabe o que sente o personagem, opina. Essa obra é menos descritiva que as duas primeiras da trilogia. O mundo psicológico é mais intenso, há mais divagações sobre temas variados, como pequenas histórias dentro da história. Viagens, leituras, cinema, música. O tempo vai e volta, o protagonista agora é viúvo e está só. Os filhos crescidos estão pelo mundo. O narrador joga magistralmente com a forma trágica da morte da esposa do protagonista, baleada aos 50 anos pelas costas quando fugia de um assalto.
“Mais parece uma colagem de alguma matéria de jornal” (p.62) – e o narrador revela o pensamento mentiroso do protagonista que aumentou a idade da mulher e revela, que, na verdade, está separado, a mulher não está morta. Criativa essa forma de narrar! O narrador refere-se a “Totonhim” (de Antão, não Antônio como eu pensava) como “senhor”. Filho de Antão.
O tema da terceira idade é tocado sem panos-quentes. É ruim envelhecer pelo lado biológico, a perda de vitalidade e cabelos, as marcas do tempo, as constantes idas ao médico, os exames. A aposentadoria que mata. O taxista da Praça da Sé, com 70 anos, aposentado há 25 – o táxi o livrou de uma depressão – concorda:
Aposentadoria mata, meu chefe. (p. 62)
E a narrativa volta ao Junco, cidadezinha na Bahia onde Nelo, o primogênito, se enforcou. A mãe enlouqueceu, mas recuperou a sanidade e passa a linha pelo fundo da agulha sem óculos. Totonhim a reencontrou com 75 anos (em O cachorro e o lobo), mas e agora? Os pais estariam vivos?
A viagem de ônibus pau-de-arara da Bahia à cidade de São Paulo é dura, interminável, cheia de incomodidades e dormências, mas também cheia de esperanças e saudades. O espanto da chegada, o formigueiro humano que é a estação de ônibus em São Paulo. A solidão. Todos estão sozinhos. Essa parte emotiva da narrativa rumo ao desconhecido começa na página 91.
Lembram quando “antigamente” existia o vendedor de enciclopédias que ia de porta em porta? E as portas se abriam, sem medo?! Sim, essa profissão existiu no Brasil e foi a primeira (e efêmera) profissão de Totonhim em São Paulo. A narrativa da chegada quebra o estereótipo de uma cidade de São Paulo fria e impessoal.
Já leu “Paulicéia desvairada”, de Mário de Andrade? Um dos autores que Totonhim anotou mentalmente quando passou na biblioteca pública municipal Mário de Andrade.
Há o preconceito no sudeste contra o nordestino? O Brasil é um país racista ( sempre e ainda)? Basta ler os jornais ou acompanhar as redes sociais que você vai encontrar a resposta, embora os casos rotineiros não saiam nas notícias, são dolorosos igualmente. Esse tipo de obra deve servir como reflexão, auto-análise. O preconceito surge por causa do desconhecimento. De todas as formas, Totonhim teve uma melhor sorte que Nelo.
A trilogia fecha com chave-de-ouro: “Pelo fundo da agulha” termina a colcha de retalhos, o quebra-cabeça. Nesse livro são citados quatro suicídios – é um tema recorrente na trilogia. As sagas e dores familiares, essas, as que mais açoitam (na ficção ou na vida).
Não se mate pelo que acha que deixou de fazer por sua mãe, seu pai, seus irmãos, mulher, filhos, o país, tudo. E, principalmente, por você mesmo. Ou pelo que deixaram de lhe fazer. Nem por isso o mundo acabou. Abrace-se sem rancor. Depois, durma. E quando despertar, cante. Por ainda estar vivo.(p.218)
(A minha admiração e homenagem a todos os nordestinos e nortistas que tiveram a coragem de sair das suas cidades/povoados para tentar uma “vida melhor”, normalmente em condições adversas e sem dinheiro. Em especial às minhas avós, e depois, à minha mãe, migrante aos 17 anos, que partiu de Feira de Santana para São Paulo, e que sempre soube transformar a dor em força, e ao meu pai (in memoriam), que aos 18 anos cruzou o Atlântico do Porto para fazer a América, um menino, que continuou menino toda a sua vida, com seu coração nobre e sonhador. O legado continua).
(…) E assim adormece. Com o coração mais leve, se sentirá um camelo capaz de passar pelo fundo de uma agulha. (p.218)
Fernanda Sampaio Carneiro Resenha publicada no Jornal de Letras, do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2015, cujo texto postado aquí foi revisado por sua autora).
Pelo Fundo da Agulha (2006) – O GLOBO Luciana Ackermann
RIO – A hora de pendurar as chuteiras, é um momento delicado para muitas pessoas. Este momento de mudança, com os dilemas de um homem diante da aposentadoria é o tema do novo livro de Antônio Torres , de 66 anos, “Pelo fundo da agulha”. Nele, o personagem principal Totonhim refaz a trajetória de sua vida e diversas reflexões sobre a hora de parar. O livro fecha a trilogia iniciada com o romance “Essa Terra”, de 1976, passando pelo “O cachorro e o lobo”, lançado em 1997.
Totonhim é um nordestino, que, como muitos, para melhorar de vida mudou-se para São Paulo. Lá, estudou muito, passou em um concurso público para uma vaga no Banco do Brasil, onde fez sua carreira. Formou-se em administração de empresas. Dedicou toda a sua vida ao banco. Nos últimos dois anos, foi gerente da área de recursos urbanos do banco. Em seu dia-a-dia, já havia se acostumado a ouvir as queixas e os lamentos daqueles que estavam se desligando do banco para se aposentar. Mais tarde, Totonhim mudou de lado e também precisou deixar o banco.
É nesse contexto que Torres desenvolve as profundas reflexões de Totonhim em sua primeira noite de sua aposentadoria. Para compor o personagem e todos os seus conflitos, Torres explica que, além da própria intuição, também fez diversas pesquisas de campo com profissionais da área de recursos humanos e entre aposentados. Nelas, encontrou casos de pessoas que gostam de viajar, fazer cursos, descansar. Outros que têm a capacidade de se autogerenciar, investem em algum negócio, e, aqueles que se sentem abandonado, sem saber o que fazer com o tempo livre.
Um dos relatos mais curiosos é o de um senhor aposentado que dia sim, dia não vestia seu terno para visitar o antigo trabalho e tomar um cafezinho com os colegas. No entanto, ele não ia embora e ficava dando palpites e aborrecendo os colegas.
– Para muitos a primeira angústia é a perda do crachá, que simboliza a perda dos vínculos com a empresa. Nesse momento perde-se um mundo de referências, a vida social, as festinhas, os amigos, os puxa-sacos, as estagiárias. Enfim, há um vínculo emocional entre o homem e a empresa, afirma Torres.
Para o autor, a alternativa para não sentir tal angústia é procurar ter outras atividades além da vida profissional, como a prática de esportes, ter uma vida social cultural, como visitar exposições, ir aos cinemas, aos lançamentos de livros etc. Ele, que está viajando o país para lançar o livro, diz que vários leitores o abordam para dizer que ficaram emocionados como o assunto é abordado.
Dor e delírio em tempo e espaços condensados
Prosa & Verso – O Globo 18/09/2006 Marcelo Moutinho*
Sempre que passa pela Travessa do Ouvidor, Antônio Torres pára por alguns segundos em frente à estátua de Pixinguinha para uma singela reverência. Mais do que simplesmente um pedido de benção ao mestre do choro, o gesto de Torres encerra uma poderosa metáfora sobre a própria obra. Desde “Um cão uivando para a lua” (1972), sua estréia na ficção, o escritor baiano radicado no Rio tenta jogar luz sobre um país que parece fora de foco. Através de personagens singularíssimos e desterritorializados, ele se detém sobre o que é peculiar, no específico, na cor local. Cor que, de uma forma ou de outra, em geral se dissipa.
Vida e obra se amalgamam quase que indissoluvelmente na trajetória de Torres, cimentada em 10 romances que a Record vem reeditando e agora ganham a companhia de “Pelo fundo da agulha”, com noite de autógrafos marcada para a próxima terça (19), na Livraria da Travessa. O novo título marca o realinhamento do autor com os elementos estéticos e temáticos dos trabalhos anteriores a seu recente passeio pela narrativa histórica, que rendeu “O Centro das nossas desatenções”, “Meu querido canibal” e “O nobre seqüestrador”. Paralelamente, o livro fecha a trilogia iniciada há 30 anos com “Essa terra” e que se seguiu com “O cachorro e o lobo”, lançado em 1997.
A trilogia centra-se sobre o êxodo nordestino sob o ponto de vista do protagonista Totonhim, originário do pequeno município de Junco, no sertão da Bahia, e cujo irmão, Nelo, emigrou para São Paulo, em percurso que espelha o do próprio autor. Em “Essa terra”, Totonhim relata a volta trágica do irmão ao torrão natal, que sob a pena de Torres ganha a dimensão mítica de uma Macondo, embora seja real e, tendo trocado de nome, esteja hoje inscrita no mapa como Sátiro Dias. No retorno cercado de expectativa após duas décadas vividas no “Sul Maravilha”, Nelo procura tatear a identidade que fora esgarçada ao limite na megalópole – e tropeça no impasse. Se a migração não lhe reembolsara o milagre prometido, Junco agora ficara inevitavelmente para trás. Sem lugar, resta-lhe o suicídio.
Em “O cachorro e o lobo”, é Totonhim, já radicado em São Paulo, quem pega a estrada rumo ao passado a fim de tentar desfazer, a partir do reencontro com o pai e com a topografia do lugar que virou lembrança, o nó da morte do irmão. A viagem a Junco contempla uma outra viagem, interior, e o narrador turva sua saudade em choros e sambas-canção que parecem fora de época, reminiscências ainda latejantes de um tempo que vai, apressado. “Em quatro semanas, acabara descobrindo que o lugar em que nascera já não lhe pertencia. Sequer lhe oferecia um galho em que se segurar”, lamenta o narrador. A aparente imobilidade das coisas escondia mudanças profundas. A exemplo de Nelo, Totonhim também perdera a cidade que um dia fora sua.
Situado mais de dez anos depois, “Pelo fundo da agulha” traz Totonhim recolhido a uma cama, entre o sono e a vigília, na companhia espaçosa da solidão. Recém-aposentado e envelhecido, longe da mulher e dos filhos, ele embarca em novo périplo, agora inteiramente introspectivo, no qual se reencontrará com a mãe. São Paulo, Junco, o pai, o primeiro amor, o irmão suicida, tudo virou apenas matéria de memória, que remexe, movediça e fantasmagórica, em seu delírio.
“Era outra a cidade, e outro o país, o continente, o mundo deste outro personagem, um homem que já não sabia se ainda tinha sonhos próprios”, anota o narrador, que atua como uma espécie de ‘consciência crítica’ do protagonista, chegando a intervir no enredo. Quanto Totonhim pretende carregar na dramaticidade para justificar a ausência da esposa, por exemplo, ele o repreende: “Vamos combinar que esta história da morte brutal da sua mulher é má literatura ou, no mínimo, uma solução fácil, senhor”.
Torres mais uma vez comprova sua destreza na construção de mundos complexos em tempo e espaços condensados. Como já havia acontecido em “Balada da infância perdida” (1986), cuja trama decorre durante uma única madrugada e limita-se ao apartamento do protagonista, o desvario de Totonhim dura apenas algumas horas e se dá no exílio de seu quarto. O isolamento que a aposentadoria agravou é “uma dor que puxa os restos das outras” e o leva a concluir que numa cidade como São Paulo “é possível você suportar tudo, quase tudo, menos a falta do que fazer”.
Um regresso a Junco não faz mais sentido – ele já o experimentara. Tampouco lhe apraz a dura poesia concreta das esquinas paulistanas. Na cidade natal, havia o sonho de partir. Na metrópole, o de voltar. “Agora era janeiro. De um ano qualquer, já numa década avançada do século XX, que ia inflando, inflando, como um balão de gás solto no ar, levando sua juventude dentro dele”. E Totonhim esvaziou-se.
Estrangeiro onde quer que esteja, ele não vislumbra a perspectiva de reatar os fios que se romperam e flerta com a possibilidade do suicídio, personificada numa bela (porém demasiado longa) citação de “O mito de Sísifo”, de Camus. Junco, e mesmo São Paulo, são agora cidades imaginárias, passíveis de existência tão-só na remontagem quase fictícia que as recordações engendram. Na tentativa de impedir sua extinção, ele se apega em desespero a tais imagens.
Torres pinta o crepúsculo de seu personagem em tons sombrios, matizando um Brasil que enjeita a padronização e, sob o silêncio opaco de milhões de testemunhas, também começa a desaparecer. Ao registrar em papel a história de Totonhim, o autor acaba por salvá-la do esquecimento e esculpindo a memória em pedra bruta – como aquela que, já lapidada, tomou a forma de Pixinguinha e parece tocar sax em plena Travessa do Ouvidor.
* Marcelo Moutinho é escritor e jornalista
Feito de memória e de esquecimento
Revista Entrelivros, São Paulo, Maio de 2007 Renato Bittencourt Gomes
Ao contar história de bancário que se aposenta, Torres encerra trilogia que refaz meio século do país
Em um quarto de hotel, um homem sozinho, aposentado e separado repassa a vida, imaginando cartas e conversas, lembrando de acontecimentos, Quem é ele? “Esta é a história de um mortal comum, sobrevivente de seus próprios embates”. Onde está? “Na região sem tempo dos sonhos”, ou do limiar dessa região: o que lhe passa pela cabeça é revelado ao leitor não tem exatamente uma natureza onírica e também não traz a consistência iniludível daquilo que rotineiramente chamamos de realidade. Ele elenca seus fantasmas, um a um, “pois agora sua vida seria só isso: memória”. Mas quem é esse homem?
“Um foragido e um sobrevivente. Alguém que conseguiu escapar do anonimato, que vem do sofrimento menor, da tragédia cotidiana e obscura que se desenrola sob os tetos de minha pátria”, disse de si mesmo o poeta Ferreira Gullar em um vigoroso testemunho, Uma luz do chão (1978). O mesmo parecem dizer os protagonistas de Antônio Torres, incluindo o nosso homem no hotel: foragidos e sobreviventes. E esses romances de Torres também trazem o tom de testemunho ao narrar a saga dos sertanejos na cidade grande. Porém, isso não acontece impunemente, porque à sua volta – e mesmo neles – o que se vê é aflição, desespero, alcoolismo, loucura e morte. Desde o primeiro livro, Um Cão Uivando para a Lua (1972). Há, no entanto, espaço também para a felicidade – as alegrias amorosas, a construção de uma carreira profissional, a formação de uma mínima prole, o reencontro com os familiares que ficaram no sertão.
Com o recém-lançado Pelo Fundo da Agulha (2006), Torres fecha uma trilogia começada com Essa Terra (1976) e prosseguida com O Cachorro e o Lobo (1997). Essa é a tríade de Totonhim, que, assim como o autor, é natural do Junco, lugarejo do interior seco da Bahia. Em Essa Terra, Totonhim decide deixar o Junco depois de sofrer o impacto do suicídio do irmão primogênito, que havia retornado depois de 20 anos em “São Paulo-Paraná”. Nesse primeiro tomo, já temos os conflitos e rancores familiares: a sombra do irmão, herói da família e do lugar; o pai apegado ao modo de ser do sertanejo; a mãe que quer outra vida. Em O Cachorro e o Lobo, Totonhim volta à cidadezinha para confraternizar com o pai, que completara 80 anos de idade. Nessa visita, surpreende-se com as mudanças ocorridas e, mais que tudo, observa a vida que evitou, a existência que, migrando, deixou de levar. Nesses dois primeiros volumes, não sabemos que bagagem ele acumulou em São Paulo, recebemos apenas dados preliminares, burocráticos: casado, dois filhos, funcionário do Banco do Brasil.
Só no terceiro volume sabemos o que ele passou na metrópole: a pensão, o emprego no banco, o casamento, a convivência com o sogro, os filhos, a morte do sogro, a separação. E tudo retrospectivamente, quando tudo já não é mais, quando Antão da Cruz Filho, o Totonhim, reduziu-se a um homem em um quarto de hotel, sozinho com sua memória. É pela memória que ele repassa tudo que viveu, assim como o autor vai reescrevendo mais ou menos a mesma história do livro de estréia, na trilogia, Balada da infância perdida (1986), compondo nesses vários volumes um mesmo “romance sujo”, redigido com a mesma pegada do Poema sujo (1976) de Ferreira Gullar, a mesma evocação da infância, a memória familiar, as vivências de um homem que é habitado por uma cidade e sua gente
Isso garante uma unidade de obra até mesmo nos recentes romances históricos – Meu querido canibal (2000) e O nobre seqüestrador (2003) –, que enfocam nosso passado colonial e nos quais o autor de alguma forma se insere na narrativa, com sua vivência de sertanejo habitando o Rio de Janeiro, migrante debruçado sobre o mistério da nossa aquática metrópole tropical. Assim, ao longo dos volumes da trilogia e de toda a romanesca de Antônio Torres, vemos ser composto um painel da vida brasileira nas últimas cinco ou seis décadas, nas quais o chamado progresso mudou nossa maneira de ser de viver.
Tendo iniciado sua obra com um romance sob o signo da loucura, Torres apresenta uma escritura que muitas vezes corteja o delirante, adentrando exageros que poderíamos chamar de barrocos, no que se aproxima de José Alcides Pinto, prosador e poeta oriundo do sertão do Ceará, autor da Trilogia da maldição (1964-74). Parece que em Pelo fundo da agulha é terminada a descrição do amplo arco que vai do Junco a um quarto de hotel em terra distante. Totonhim pode finalmente entrar na “região sem tempo dos sonhos”, mas tudo indica que a obra não acaba. Se o retorno e o suicídio do irmão foram uma confissão de derrota (“É como dizem: quem volta é porque fracassou”), Totonhim seguiu em frente. Antônio Torres, também.
A angústia no fim da linha Em romance reflexivo, Antônio Torres encerra trilogia iniciada há 30 anos
Caderno Idéias JB, 23/09/2006. Henrique Rodrigues*
Antônio Torres escreve musicalmente. Em palestras e oficinas que ministra pelo país, deixa clara essa associação no seu processo criativo. O resultado é uma prosa que traz o embalo do jazz e a melodia na leitura. Diferente de várias tendências da moda nas literatices, Torres não tem intenção de asfixiar o leitor: antes, convida-o para dançar.
O lançamento de “Essa Terra”, em 1976, trouxe novo fôlego ao debate acerca do dualismo sertão/cidade. O romance, hoje na 21ª edição, narra o fracasso diante da migração nordestina para locais com promessa de vida melhor. Totonhim assiste à desintegração das suas referências familiares quando os pais e irmãos se mudam de Junco (hoje chamada de Sátiro Dias) para Feira de Santana, outra cidade do interior da Bahia, e acabam por mergulhar ainda mais na pobreza. Lá, o banco emprestara dinheiro ao pai sob a condição de que plantasse sisal, uma cultura que não vingara, deixando-o endividado; sem perspectiva, os irmãos fogem de casa tão logo estejam crescidos. E a tragédia mais lancinante: o suicídio do irmão mais velho Nelo que, após fracassar em São Paulo, não encontrou mais referências na cidade que deixara para trás. O personagem se tornou, na literatura brasileira, um símbolo da perda da dignidade humana perante as sucessivas derrotas sociais.
Diante desse quadro, restou a Totonhim seguir o caminho do irmão, rumo a São Paulo, para tentar superar o atraso em que a família se encontrava. Ainda que lutando com a possibilidade de repetir a história de Nelo, vinte anos depois Totonhim retorna à cidade natal, onde, tal como acontecera ao outro, já era um estranho. Esse regresso é narrado em “O cachorro e o lobo”, lançado em 1997. Ali, a memória constitui o caldo grosso onde flutuam, em permanente conflito, as expectativas e frustrações dos seus personagens, em especial no embate de Totonhim com o pai.
Espaço e tempo lhe escapam pelos dedos, construindo para o personagem um ambiente físico e psicológico segundo o qual a realidade é um imenso e, paradoxalmente, exteriorizado oco.
A consciência desse vazio imenso está em “Pelo fundo da agulha”. No desfecho da trilogia, Totonhim se vê no seu quarto, em São Paulo, abandonado pela mulher e filhos, na primeira noite após se aposentar. Financeiramente, sua jornada não foi desfavorável. No entanto, a solidão lhe preenche como a um aquário com peixes moribundos, num delírio formado por lembranças que desfilam pelas quatro paredes. Entre o sono e a vigília, o protagonista olha o próprio passado como se fosse pelo buraco de uma agulha, na qual sua mãe, idosa porém com mão firme, passava a linha.
Dentre as recordações, percebe-se um tom de auto-ironia, manejado com destreza pelo uso recorrente do discurso indireto livre, no qual a narrativa se desdobra em si mesma, dando lugar a uma segunda voz: “Agora ele avistava um sinal amarelo. Esperar. Mas atenção! Olho vivo nos semáforos. Cuidado para não ser atropelado. Como entrar na cidade e integrar-se nela? Com a ajuda de um, a mão de outro e empurrões da sorte. E prestando muita atenção aos seus sinais. Avante, camarada!”. O riso de agonia é, ainda que de forma resignada, um viés possível de compreensão que o personagem tem de si mesmo.
“Rever é perder o encanto”, já arrematou Millôr Fernandes. Na trilogia de Antônio Torres, rever significa trocar um desencanto por outro. A angústia se torna o território inexorável, onde irremediavelmente vai aportar a trajetória humana.
A saga de Totonhim, de certa forma, traduz a própria curva de desencanto da sociedade brasileira nos últimos 30 anos, representada no cidadão cujas raízes se fragmentam, cada vez mais destituídas de som e fúria.
Henrique Rodrigues é escritor
ANTÔNIO TORRES: filamentos de uma escritura
Caderno Cultura, Diário do Nordeste 26 de Novembro de 2006. Fortaleza, Ceará.
Antônio Torres ocupa, na ficção brasileira, uma posição singularíssima: tece, como poucos, um texto peculiar, posto longe das tendências ou das correntes literárias, ao mesmo tempo em que, diante do leitor mais atento à elaboração da escritura do que ao próprio desenrolar-se do enredo, constitui sempre um desafio: decifra-me ou devoro-te. E tal peleja se torna mais árdua quando o romancista trabalha com temas recorrentes, como, de modo específico, dá-se com a trilogia, iniciada com ´Essa Terra´, seguida por ´O cachorro e o lobo´ e que fecha o círculo, agora, com ´Pelo Fundo da Agulha´. (Editora Record, 220 páginas) Tais questões integram o motivo maior dessa edição, pois Antônio Torres estará em Fortaleza, na próxima terça-feira, dia 28, para, no Centro Cultural do BNB, abrir o Seminário ´Migrações: geografia das palavras´ – evento coordenado pelas professoras Sarah Diva Ipiranga e Solange Kate Araújo. Carlos Augusto Viana – Editor.
A linguagem é uma estrutura simbólica que comporta a realidade. Através dos signos lingüísticos, os homens se comunicam entre si a a respeito do mundo – mas não com o mundo. Há, portanto, uma separação entre sujeito e objeto; os signos circulam entre os indivíduos, comportando um sentido que exige uma investigação: ´A linguagem reclama o pensar: a palavra é propriamente o esquema do conceito; quem a profere vai ao conceito´. (DUFRENNE, 1969, p. 31)
Múltiplos são os caminhos por que se pode ler uma obra literária; no entanto, em se tratando de romance, deve-se, antes de tudo, concentrar uma especial atenção no título e (caso haja) na epígrafe – principalmente, se esta se referir ao texto como um todo. (O título há de ser retomado mais à frente; por enquanto, urge a epígrafe.) Em ´Pelo Fundo da Agulha´, conscientemente ou não, (pouco importa) a epígrafe, em vez de posta no frontispício, (nesta posição sofre, quase sempre, o desprezo do leitor) assiste à entrada do primeiro capítulo:
´A fronteira crepuscular entre o sono e a vigília era, neste momento, romana: fontes salpicando e ruas estreitas com arcos. A dourada e pródiga cidade de flores e pedra polida pelos anos. Às vezes, em sua semiconsciência, estava outra vez em Paris, ou entre escombros de guerra alemães, ou esquiando na Suíça e num hotel entre a neve. Algumas vezes, também, era um barbeiro da Geógia, certa madrugada em casa. Era Roma esta manhã, na região sem tempo dos sonhos´.
Este fragmento é da escritora norte-americana Carson McCullers. Nascida em Columbus, (Geórgia) partiu, ainda adolescente, para Nova Iorque, perseguindo o sonho da fama como escritora. Viveu, na carne e na alma, o choque cultural, bem como o tormento de ter o comportamento social (vivenciou as mais diversas transgressões) regulado pelo olho da opinião pública. Sua ficção, cuja atmosfera remonta à densidade psíquica de Dostoievsky, é plena de comportamentos macabros e configura o viver como a expressão de um pesadelo.
Todo esse intróito se sedimenta numa funcionalidade: preparar o leitor para o universo que, a partir de agora, irá palmilhar, da mesma forma como, num lance antecipatório, mostra uma identidade entre essa escritura (a própria escritora) e o protagonista da trama que, então, há de abrir-se ao leitor. O protagonista da ´Trilogia do Suicídio´, de Antônio Torres, tem o seu percurso ontológico no seguinte movimento pendular: Totonhim – Antão Filho – Totonhim, uma vez que vive aquele mesmo impasse da personagem lírica do teatrum mundi drummoniano: ´Você marcha, José! / José, para onde?´. (DRUMMOND, ), delineando, assim, o desajuste entre o sujeito e o mundo – situação, aliás, que inaugura a narrativa:
Era outra a cidade, e outros o país, o continente, o mundo deste outro personagem, um homem que já não sabia se ainda tinha sonhos próprios.
Cá está ele: na cama.
Não o imagine um guerreiro que depois de todas as batalhas finalmente encontrou repouso, abraçado a uma deusa consoladora dos cansados de guerra. Esta é a história de um mortal comum, sobrevivente de seus próprios embates cotidianos, aqui e ali bafejado por lufadas da sorte, mais a merecer uma menção honrosa pelo seu esforço na corrida contra o tempo do que um troféu de vencedor. Assim o vemos: deitado. Imóvel. A olhar para o teto e paredes de um quarto. E a assustar-se com a sombra de uma cortina em movimento, que supôs ser o fantasma de uma alma tão penada quanto a sua. Uma alma de mulher com certeza. (p.7-8)
Assim, a narrativa põe diante do leitor uma personagem entregue a divagações e a incertezas, apontando, por outro lado, duas preocupações temáticas por que há de orientar-se a organização da trama: o estrangeiro e a metrópole; ou seja: o estranhamento que resulta desse encontro; por um outro, a construção do discurso, com pausas dramáticas e cortes abruptos, ressalta a problemática da linguagem como um dos elementos-chave dessa criação ficcional.
A princípio, a desfiguração do espaço entranha-se à da personagem: ´um homem que já não sabia se ainda tinha sonhos próprios´. O narrador, por sua vez, ao referir-se ao protagonista como ´outro personagem´, reconhece-se como tal e, pela intrusão, estende esse estado também ao leitor: ´Não o imagine um guerreiro…´ Nesse sentido, personagem, narrador e leitor formam um inextrincável tripé – atores, evidentemente, de todo o estranhamento, partícipes da pós-modernidade, cúmplices por ´sua total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico´. (HARVEY, 1992, p. 49) Desse modo, todos – e não apenas o protagonista – são ´um mortal comum´, e, por inferência, transformados em coisa: ´Assim o vemos: deitado. Imóvel.´ Ora, se ´o vemos´, (narrador e leitor) é porque, assim como ele, (o protagonista) também estamos imóveis: ´a passividade é a marca do olhar´. (CHAUÍ, 1998, p. 33) Todos, enfim, aniquilados, despidos de sua condição de sujeito.
Nas atividades semióticas, a literatura integra um estatuto privilegiado: ´tem a linguagem ao mesmo tempo como ponto de partida e como ponto de chegada; ela lhe fornece tanto a sua configuração abstrata quanto sua matéria perceptível´. (TODOROV, 2004, p.54) A literatura é a linguagem plena de significado: ´A grande literatura é simplesmente a linguagem carregada de significado em seu mais alto grau´. (POUND, 1959, p.23)
Antônio Torres realiza ´A grande literatura´. Nesse fragmento em análise, imprime-se a habilidade com que tece o discurso, servindo-se do jogo de ´palavra-puxa-palavra´ – recurso estilístico pouco encontrável em prosadores. (Cf. Garcia, 1978, p.202-234) Esse processo resulta do encadeamento de palavras, fruto de afinidades as mais diversas, configurando associação semântica: um termo evoca um outro, que evoca um outro etc: ´Era outra a cidade, e outros o país, o continente, o mundo deste outro personagem…´
Essa seqüência frasal tem como pilares a recorrência implícita a ´Era´ e explícita ao termo ´outra´ em suas declinações. Sendo ´outra a cidade´, entra esta em oposição a Junco e às metrópoles por que andou, antes, (o leitor sabe tratar-se de uma trilogia) a personagem; ´outros´ são ainda ´o país, o continente´ e, sobretudo, ele, o protagonista´, que, embora seja o mesmo, é ´outro´, pois vive o inferno da alteridade. O parágrafo ´Cá está ele: na cama.´ transmite ao leitor a sensação de intimidade, de estar diante de alguém a quem possa, facilmente, identificar. E tal situação se consolida em ´Não o imagine um guerreiro que depois de todas as batalhas finalmente encontrou repouso…´, pois, assim, o leitor recupera, por associação, o ser e o tempo deste: Antão Filho e suas desventuras.
[Terceira Página do Caderno Cultura domingo – DIÁRIO DO NORDESTE 26 de Novembro de 2006. Fortaleza, Ceará]
ANTÔNIO TORRES Pelo fundo da agulha
Editora Verdes Mares Enviado por Laéria
Fundindo pensamento e linguagem, e, assim, estabelecendo uma perfeita harmonia entre enunciação e enunciado, a narrativa de ´Pelo fundo da agulha´ entrelaça memória e imaginação, de tal forma que a unidade se anuncia a partir de fragmentos. O processo da tessitura textual consiste, fundamentalmente, na seguinte constatação: o que é pó em memória retornará. Trata-se, portanto, de um mundo reconstruído pelo avesso: recuperam-se as migalhas para que o pão seja refeito. Carlos Augusto Viana – Editor.
Talvez por isso haja, em todo o romance, um privilégio das impressões sensoriais, sobretudo das que evocam a visão, a audição e o olfato: ´Oh, memoráveis serenatas em noites enluaradas para moças sonhadoras recém-saídas do banho, cheirando a eucalipto, todas farfalhantes em suas cambraias engomadas…´ (p.45) Enumeram-se, ao longo do texto, os ruídos das descargas, dos móveis que se arrastam, dos automóveis que se chocam; quando não, os frêmitos atávicos, que se evolam de ´um carro de bois, vagaroso, gemedor´, (p.111) e que hão de conduzir a personagem às ´luzes de uma cidade, que lhe provocariam um impacto jamais igualado´. (p.111)
Memória é evocação. Através dos sentidos, o ser reconstrói o que o tempo dissolveu. Eis, quem sabe, a razão de não nos cansarmos de cantar a mesma música, de repetir determinadas frases, de saborear, reiteradamente, os alimentos. Em toda a obra de Antônio Torres, há sempre uma música a tocar no rádio: ´Rosas vermelhas, as do bem-querer´; (p.117) e das notas musicais advêm os passos, os compassos, os descompassos: ´E dançava conforme outra música. Cesse tudo. Silêncio. Ouça, menina bonita: Eu sei que vou te amar / .. Por toda a minha vida eu vou te amar…´ (p.146)
O exercício da memória está, intrinsecamente, ligado à aprendizagem. Aprender é apreender. O homem, perdido de si mesmo e de seu semelhante, busca o passado na sofreguidão de marcar um encontro consigo mesmo no presente. Desse modo, o protagonista de ´Pelo fundo da agulha´ percorre toda a narrativa , reiterando aquele movimento pendular: Totonhim – Antão Filho – Totonhim; e reside aí a natureza de sua viagem:
Memória. Um irmão que se matou. Mas isso faz muito tempo. Foi o seu pai quem fez o caixão, a consolar-se numa garrafa de cachaça. Assim que o esquife ficou pronto, tratou de levá-lo para a cova. ´Tinha tão pouca gente´, desolou-se, ao voltar do enterro. Foi tudo nos conformes da lei dos homens, velho. A igreja fechou-lhe as portas. Suicida não entra na casa de Deus, nem no reino do céu. E afasta as pessoas. Apavora-as. (p.64)
Uma das virtuoses desse romance é fruto da escolha do ponto de vista, uma vez que, conduzida pela terceira pessoa, a narrativa sofre, freqüentemente, o entrecorte do discurso indireto-livre, que, muitas vezes, desemboca no fluxo da consciência. Nesses momentos, depara-se a interioridade da personagem, e esta se torna mais complexa, mais humana, carregando em si um universo de dúvidas, de contradições, de gozo, de culpas, de doces lembranças ou de amargas recordações:
Por quantos anos mais os esteios e as paredes daquelas casas se manteriam de pé? Nascera numa delas, de fundos para o Nascente, rodeada de árvores frutíferas, quintal de flores, verduras, abóboras, bananeiras. E com um avarandado para o poente. Para os crepúsculos longos e mais silenciosos do mundo.
Agora via um menino saindo de lá e pegando um caminho que chegava a uma cancela. Era uma manhã ensolarada, igual a muitas outras. Ao passar de um pasto para outro, ele, o menino, se deparou com uma explosão de tomates, estonteantes ao sol, tão vermelhos que pareciam enfeites de um presépio. (p.105-106)
Esse excerto comprova que um dos aspectos estilísticos mais recorrentes é a fusão do passado com o presente, pois, o protagonista, com freqüência, entrega-se a devaneios; são momentos em que procura um sentido para a existência ou uma explicação para os mistérios que a rodeiam.
A recorrência com que o Autor se utiliza do discurso indireto-livre, fazendo com que a personagem seja, também, responsável pela condução do enredo, transpõe para o foco em terceira pessoa (ou ponto de vista externo) a onisciência prismática; – esta é erigida a partir do seguinte expediente: em vez de um narrador que se apresenta tão-somente com a onisciência, (aquele que tudo sabe e tudo vê, aquele que conhece o narrar e o narrado) o leitor entra em contato direto com a realidade, enxergando-a pelo prisma da personagem. Inscreve-se, assim, uma constante preocupação com as contradições da consciência e mesmo do inconsciente do ser dentro do contexto de uma realidade, emergindo as tensões. E tudo se dá pela fusão de perspectivas temporais: ora a simples lembrança; ora o momento presente; ora a projeção do passado no presente, a partir da qual assoma o futuro, para que, finalmente, tudo se funda no intemporal, pois os elementos configuradores do real têm dissolvidos os seus contornos:
Agora cá estava. Sim, com meio caminho andado, entre o passado e o futuro. Ainda não avistara o sinal verde franqueando-lhe a passagem, no viaduto entre os dois tempos. (p.128)
O título desse romance – Pelo Fundo da Agulha – é um achado. Anulada e aniquilada, a existência do protagonista só poderá refazer-se através da verbalização. Transmuda-se, por isso, em vozes. É ele o oráculo de si mesmo. Tendo o olhar voltado para suas próprias entranhas, não contempla a opacidade da cidade pela janela de um quarto de hotel, pois outra é sua viagem: ´Toda narrativa é uma viagem – percurso construído pela imaginação para escoar possibilidades´. (DALCASTAGNÈ, 2000, p. 11)
Palmilhando ruas e avenidas, becos e ruelas, num banco de táxi ou de um ônibus, no frio da Europa ou sob o sol do empoeirado agreste, está o protagonista, em verdade, imóvel, e, em sua direção, apenas o passado e suas sombras. Inútil, pois, jogar fora todas as cordas: inúmeros, os camelos; inexorável, a agulha. A noite se dissemina em agônicas assombrações: ´Não percebeu que era tudo o que seu irmão queria? Uma corda para se enforcar?´ (p.96) A noite água a dúvida, o inesperado, o imponderável: ´o desaparecimento da luz nos confina no isolamento, nos cerca de silêncio e portanto nos desassegura´.(DELUMEAU, 1989, p. 99)
Pelo fundo da agulha, passa uma narrativa alinhavada; passam os automóveis, os aviões, o rugir ronceiro de um carro de boi, os solavancos de um coração, os dados que se quedam sobre a mesa, a cadência remissiva dos boleros, ´Xote, marcatu e baião´, (p.143) os olhos do enforcado, a indiferença de um ´Deus que não amava os suicidas´. (p.212) Desse modo, na narrativa, todos os referenciais ´misturam os discursos numa compulsão circular, moebiana.´. (BAUDRILLARD, 1991, p. 28) Na solidão de um quarto, emaranham-se os tijolos da construção de um ser em narrativa: ´todo o ato de pensar é feito quando se está a sós, e constitui um diálogo entre eu e eu mesmo; mas esse diálogo dos dois-em-um não pede o contado com o mundo dos meus semelhantes´. (ARENDT, 1989, p. 528)
Entre a janela de um quarto de hotel e o buraco de uma agulha, duas linhas por que se cirzem o passado e o presente: o tecido num bastidor, o pergaminho da memória. O bordado de um texto no entrecruzar-se dessas linhas: embora o real não seja mais possível, é possível a ilusão de um avarandado coração; assim, ´mais leve, se sentirá (o protagonista) um camelo capaz de passar pelo fundo de uma agulha´. (p.218)
BIBLIOGRAFIA
ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. BAUDRILLARD, J. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d´Água, 1991. CHAUÍ, M. Janela da alma, espelho do mundo. In O olhar, NOVAES, A. (org.) São Paulo: Companhia das Letras, 1988. DALCASTAGNÈ, R. A garganta das coisas. Brasília: Editora UnB, 2000. DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente (1300 – 1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1989. DUFRENNE, M. O poético. Porto Alegre: Editora Globo,1969. GARCIA, O. Alguns processos poéticos de Carlos Drummond de Andrade. In: Carlos Drummond de Andrade, BRAYNER, S. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1978. HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992. POUND, E. O que é literatura, o que é linguagem etc? In: Ensaios críticos de literatura, BEAVER, H. (org.) São Paulo: Lidador, 1959 TODOROV, T. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2004. TORRES, A. Pelo fundo da agulha. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.
TRECHO
Calma aí, homem. O mundo ainda não acabou, se é assim que lhe parece. O que ele não oferece é o encanto dos descobrimentos, como na era das grandes navegações. Sejamos sinceros: viajar, hoje, não tem a menor graça. É um saco. Aeroportos enormes, desconfortáveis, cansativos. Conexões estorvantes. Passageiros destituídos de glamour e pessoal de bordo sem tempo para delicadezas. Lembra da sua primeira viagem aérea? Quando o avião balançou e o prato de comida voou da mesinha para o seu peito, logo surgiu uma aeromoça com uma toalha embebida em água quente e lavanda para, com mãos de fada, remover toda a sujeira sobre o seu paletó azul, comprado à prestação especialmente para aquela estréia no ar. Havia algo de material naquele gesto, não? Agora, o seu vôo será realizado num plano impessoal, com a frieza da lógica. Embarque, ajeite-se como puder, fique atento aos avisos eletrônicos, aguarde os serviços de praxe e tente dormir, se for capaz de não se apavorar com as turbulências. No seu sonolento embarque, perceberá que o mundo ficou igual, no que tem de pior. No mercadão universal não há sonhos à venda. Mas bugigangas que podem ser encontradas ali na esquina. (TORRES, A. Pelo Fundo da Agulha. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006, p.36-37)
©2004 Editora Verdes Mares. Todos os direitos reservados. Enviado por Laéria (laeria@terra.com.br)
Manhã de domingo em Tietê
O Estado de S.Paulo (17/11/2006) Ignácio de Loyola brandão
O que posso dizer para o Antônio Torres? Estava entre Porto Feliz e Tietê, no sítio de Lisa, uma amiga, contemplando paisagens em diversos tons de verde que iam do mais claro ao quase negro, enquanto o Rio Tietê, lá embaixo, fazia uma curva e cintilava ao sol. As caipiroscas de framboesas, colhidas ali no sítio, cheias de sumo, equivaliam a uma bênção papal com indulgência plenária, nos levando ao céu para sempre. Alguém propôs.
– Vamos a Tietê? – O que tem lá? – Uma pracinha central gostosa que vale a pena ver.
Em 20 minutos chegamos e a entrada da cidade é graciosa, florida. Aqui e ali os jardins se sucedem, até darmos com uma grande placa: Tietê, Cidade das Flores. Domingo, atravessamos ruas desertas, como em qualquer cidade do mundo nesse dia. Eu pensando: como apresentar o Antônio Torres que não precisa de apresentação?
Então, demos com a pracinha, que se chama Elias Garcia e não é pracinha, é praçona, cheia de roseiras, de flores, com fontes e um coreto. Comovente a presença de coretos. Tietê manteve o seu intocado no centro da praça. Jatos prateados subiam das fontes e as águas eram azuis, límpidas. Finalmente uma cidade onde as águas das fontes ou chafarizes são cristalinas, transparentes. Já vínhamos gostando da limpeza, parece que as ruas tinham acabado de ser lavadas, varridas. Decidi comprar um jornal, por todas as cidades em que passo levo um ou dois locais. Entrei na banca, uma portinhola numa esquina, perguntei ao jornaleiro:
– Qual o melhor jornal da cidade.– Temos cinco.– Então? Qual o senhor me aconselha?– Como aconselhar? Não sei o seu gosto, não conheço a sua opinião! Indico um, o senhor pode detestar. E como fico?
Diplomata o homem. Bela cidade que tem cinco jornais, numa era de tevê, internet, e tudo o mais. Um senhor se aproximou e me soprou dois títulos, comprei. Aproveitei:
– Quantos habitantes têm a cidade?– Trinta mil.
Agradeci, ia saindo, outro senhor me segurou pelo braço:
– Não temos 30, não. Tietê tem quase 40 mil. Corrija, 40 mil!
Estava orgulhoso e olhou feio para o outro, o que tinha diminuído a população local. Saímos para um volta e me apaixonei por uma velha casa em frente da praça, a de número 52 (mas há também uma placa com o número 59), ao lado do Hotel Cuitelo. Residência? No hotel – um belo prédio vermelho, anos 30 ou 40 – me responderiam. Queria perguntar, mas não havia recepcionista, não havia ninguém. Seria um hotel self-service? Num banco da praça, um grupo de homens, latas de cerveja na mão, jogavam conversa fora. Aposentados? Seguimos pela mesma rua até chegarmos à esquina da Rua Antonio Nery, onde há duas casas magníficas. Uma amarela, outra de janelas vermelhas, com jeito de casa abandonada. Subimos a Nery e demos com outra casa linda, no meio de um terreno, numa esquina. Fechada. Por toda a cidade, belas casas antigas, parte restaurada e conservada com classe e estilo.
Então, demos com um edifício comprido que pegava uma esquina inteira, em tijolos aparentes. Atmosfera de fábrica desativada. No térreo, havia uma agência de turismo, uma oficina ou borracharia e uma loja de eletrodomésticos. Daqueles prédios que nos deixam sem fôlego. Tombado? Vazio? Ali acontece alguma coisa? Perguntei a duas ou três pessoas, nada sabiam. Na padaria Duas Irmãs, onde tem uma saborosa carolina de maçã, também a dona não soube responder. ‘Não sou daqui’, nos disse.
Uma placa indicava: Oficina Cultural. Havia a placa, mas nenhum prédio com a indicação de Oficina Cultural. A rua virava contramão, passamos por trás da rodoviária, voltamos e nada da Oficina. Parecia conto do Borges. Ali perto, dominando uma esquina, uma casa que dava gosto, toda rosa, senhorial e altiva. Casa Rosada, pensamos. E nos ligamos a Buenos Aires. Borges e Buenos Aires. Fechava o clima. Rodávamos e não queríamos partir, a cidade tem um belo astral, a gente se sente bem nela. Ainda mais que todos que passavam diziam: m’dia, m’dia, m’dia. Nenhum deixou de nos cumprimentar com um sorriso. Coisa rara em um mundo no qual as pessoas estão cada vez mais grosseiras e mal-educadas.
Uma pena, a igreja na praça Elias Garcia estava fechada, apesar de ser domingo. Não fiquei sabendo se tem um altar de Santo Antônio. Subi ao coreto, contemplei a casa 59 (ou 52?) e, de repente, as coisas me vieram com clareza, naquele silêncio, na tranqüilidade de Tietê. Agora sabia o que dizer sobre Antônio Torres e seu romance Pelo Fundo da Agulha na noite da próxima terça-feira, dia 21, na Fnac de Pinheiros. Um livro que pergunta: ao nos aposentarmos, o que fazer? Tempo de ainda construir alguma coisa? O que é a velhice? Ao rever a vida pelo fundo da agulha, um homem pensa no sentido de tudo. A vida tem sentido? Torres envelhece com poesia e ternura nos textos. Delicadeza e compaixão. Pediram-me para falar do livro antes que ele autografe – e quem não for não saberá o que perdeu. Ando pela praça e raciocino: falo sobre o livro ou falo sobre a amizade? Torres e eu estamos envelhecendo juntos, tendo começado jovens na Última Hora, tendo trilhado – com João Antônio que precisou partir antes, nem se despediu, morreu só – este Brasil de ponta a ponta conversando com as pessoas, falando sobre o ofício de escrever que nos apaixona e diverte. Torres é íntegro, leal, exerce a escritura sem ressentimentos, sem rancores, compreendendo o êxito não merecido de um, lamentando o ostracismo não merecido de outro. Jamais o ouvi falar mal de um colega. Falo do livro, falo do autor, falo dos dois? Venham – vocês leitores – conhecer/reconhecer Torres e levar um dos mais belos romances sobre o tempo que passa e nos acaricia e morde, afaga e faz doer.
A TRILOGIA BRASIL
jornal A Tarde, Salvador, 16 dez. 2006 Gerana Damulakis
Sabemos que construir uma trilogia é uma tentação para muitos romancistas, mas se o romance em si já exige tanto como gênero, quando se quer romance e não mero entretenimento misturando os famosos ingredientes: um moço bonzinho e sabichão, uma moça linda, um crime, um bocado de cultura inútil para o leitor sentir que tem em mãos um livro “maravilhoso”, imagina-se, então quanto talento e quanto fôlego são necessários para escrever um texto que perturbe o imaginário do leitor, revolva idéias sobre o sentido ou a falta de sentido da vida, ou que o faça lembrar daqueles versos de Drummond no poema “Viver”: “Mas era apenas isso,/ era isso, mais nada?/ Era só a batida/ numa porta fechada?”. Quantos romances suscitam esta pergunta. E, então, valem a pena. Melhor ainda se um romance puxa por outro e mais outro e daí resulta uma trilogia.
Quando Antônio Torres fechou sua trilogia com o recentemente lançado Pelo fundo da agulha, foi difícil resistir e deixar de colocar um título: Trilogia Brasil. De saída vem um paralelo com a trilogia USA, e apesar de não haver a necessidade de recordar uma trilogia estrangeira, já que temos na nossa literatura algumas muito boas — e agora vem o nome de Luis Ruffato, autor de uma delas —, cabe justificar o título culpando as associações, pois elas têm sempre uma razão que a própria razão tantas vezes desconhece e, afora este lugar-comum, é fácil achar a causa da lembrança. A trilogia USA, de John dos Passos, é composta por The 42nd Parallel (Paralelo 42, Rocco, 1987) publicado em 1930, seguido por Nineteen nineteen (1919, Rocco, 1989), editado em 1932 e finaliza com The big money (O grande capital, Rocco, 1999), de 1936, quando arremata a história de um americano vivendo na idade do progresso estadunidense, simbolizado pelo sacrifício; assim, um rapaz faminto e sozinho andando pelas estradas, faz a crônica da desilusão em relação à promessa americana, resultando na troca da sua inocência pela sua sobrevivência. Num trabalho sobre esta trilogia, Henry James é citado por conta de sua máxima: “O romancista é herdeiro do sagrado ofício do historiador.” John dos Passos registrou uma passagem da história norte-americana nas andanças do personagem, tal como faz Torres na trilogia Brasil.
Porque a trilogia de Antônio Torres não deixa de conter a nossa história, a história do povo brasileiro do sertão, tomando um caminho que tantos tomaram no século 20. Quando o autor publicou Essa terra, em 1976, o narrador contava a ida e a volta do irmão Nelo para São Paulo: o caminho do retirante. Mas há uma visão diferente daquela mais usual, encontrada nos romances que narram sobre os que deixam a terra. A questão está na abordagem de Torres, pois a miséria do sertão pode até ter a seca como uma das causas de falta de perspectiva, contudo a região centro-sul, tida e vista como núcleo do Estado nacional, chama as pessoas, vendendo esperança e, por fim, roubando a força produtora do sertão. Portanto, se não há a critica que culpa as condições climáticas ou a formação étnica, não há também uma glorificação do sertão, porque, enfim, não há momento em que o texto se queira panfleto, seja louvando a força do sertanejo, seja buscando a condição única e determinante de seu flagelo.
Vale repetir que a abordagem é bastante ampla, não se restringe a fazer ou não fazer dinheiro no sul maravilha. Torres estampa o modo como os baianos Nelo, Zé do Pistom, seu Caboco, Totonhim são avaliados pelos paulistas. Os baianos são conhecidos como aqueles que vão embora de suas terras e não voltam para buscar nem as namoradas. A marginalização chega ao ponto da generalização: “Todo baiano é negro, é pobre, é veado, acaba largando a mulher e os filhos para voltar para a Bahia. São Paulo não é o que se pensa”, diz o personagem.
Já supracitada é a existência do outro diferencial na história dos retirantes do Junco, ou seja, não há herói sertanejo, há personagens completos, com virtudes e defeitos, sem idealização, que buscam uma condição de vida mais satisfatória: é só isso. E sendo só isso, o objetivo do texto não é a denúncia, desde que o autor não prega revolução de qualquer tipo, reforma seja lá de qual natureza; mas, por outro lado, ele não chega ao conformismo, já que há a tragédia do homem que lhe é inerente. Antônio Torres elaborou sua história sobre o ser humano e suas tristes condições, de forma a usar o espaço, a ação e seus personagens concorrendo num conflito psicológico com raiz no contexto sertanejo. Daí a linguagem: como o narrador está distanciando quando resolve contar, pois já saiu do meio sertanejo, as expressões e o vocabulário do que ele conta são usados depois que sofreram a transformação pela distância. Não se pode apontar um regionalismo lingüístico, sequer estranheza na leitura. É interessante enfatizar que, além da presença secundária da tradicional seca, há também a ausência do cangaço, porque “Lampião nem quis entrar no Junco”, o que, de resto, acaba sendo mais um diferencial em relação a outros textos da narrativa sertaneja.
Na trilogia, sempre a música se faz presente, levando à comparação com Alfred Hithcock e suas aparições nos próprios filmes; é, na verdade, a presença de Antônio Torres, um aficcionado por música : do bolero ao choro, aos sambas-canções, uma história musical corre paralela, seja para marcar o tempo, seja para incrementar os sentimentos.
Se cabe em Essa terra o suicídio do irmão do narrador, Nelo, a loucura da mãe, a solidão do pai, a ida dele próprio, Totonhim, para São Paulo, mesmo que haja o reconhecimento de que “essa terra me chama, me enxota, me enlouquece, me ama”, é em O cachorro e o lobo, 20 anos depois de Essa terra, que encontramos o narrador de volta à terra natal: o pai completa 80 anos, Totonhim vai visitá-lo sem levar a mulher e os filhos, talvez por serem estereótipos doa habitantes de uma grande cidade. Antes de chegar ao sertão, Totonhim vai ver a mãe e, já neste segundo volume da trilogia, o fato de que aquela senhora enfia a linha pelo buraco fino da agulha sem necessidade de ajuda é-lhe surpreendente. O pai de Totonhim está instalado no alto de uma colina a conversar com os mortos, ou, quem sabe, remoendo as terras perdidas depois que o Banco apareceu ali, emprestando dinheiro e mandando plantar sisal, empreendimento que deu errado e o levou à ruína. Junco agora é uma cidade cheia de antenas parabólicas, mas a única loura da terra continua a ser “Inês, Inesita Inesinha, ou simplesmente I”, a primeira namorada, a dos cabelos de boneca de milho, neste momento professora numa “terra de filósofos e loucos”. Volta a imagem do pai fazendo o caixão do próprio filho Nelo: imagem que deve voltar também à memória do pai que, com a chegada de Totonhim, faz de tudo, no capricho, para receber bem o filho. Medo de que este tenha voltado para repetir o feito do outro, igualmente se enforcando? O certo é que o pai, confabula com Inês, ambos tratam de limpar a casa e oferecer um almoço delicioso e farto ao visitante. Não há como temer que a volta dele seja como a de Nelo: o almoço do filho com o pai e com a primeira namorada, a noite de amor com ela, a abstinência do pai que, tido como bêbado, ele encontra sem tocar em álcool; enfim, tudo saiu muito bem, não haverá mais uma morte apressada.
Pelo fundo da agulha fecha a trilogia 30 anos depois. Antão Filho, cujo apelido já sabemos que é Totonhim, está aposentado do banco, no qual trabalhava em São Paulo, e a viagem para o Junco desta feita será pelas técnicas fragmentárias da memória humana: há muitas vozes nas lembranças de Totonhim sozinho, separado da mulher e dos filhos, já tendo perdido também o melhor amigo. A mãe velhinha, mas que enfia a linha pelo fundo da agulha, imagem já presente no livro anterior, serve como um quadro que ocupa o centro de uma sala gigantesca, onde cabe uma vida. A narrativa é mais uma vez musical e sons e letras de músicas acompanham a primeira noite do aposentado “sem despertador”. Apenas no final do romance o sono vence como se fosse a linha de chegada da viagem pela memória neste décimo primeiro romance de Antônio Torres. As duas frases finais dizem: “Adormece. E, finalmente, entra na região sem tempo dos sonhos”
A jornada foi longa, são tantos mortos nesta altura da vida, são tantos os remorsos, mas a viagem chega ao vale dos suicidas para ser comparada sem vantagem à vida dos aposentados. Chegam à memória o primo Pedrinho, o amigo de infância Gil, além do irmão Nelo. O primo Pedrinho deu o estilingue a Totonhim no dia em que este foi embora: “um presente para o pior caçador de passarinho que o mundo já havia conhecido”, ele disse. Como o homem nasce e morre só, depois do desfalque na Justiça do Trabalho, em Juazeiro, e para pagar dívidas da campanha eleitoral, o amigo Gil mergulha num copo de formicida, deixando uma carta para o bispo “Agora estou só. Tão desgraçadamente só quanto no dia em que nasci. Mas agora dispenso a parteira e não preciso mais berrar ao mundo que estou só”. Quanto a nelo, sabemos em demasia que se enforcou ao voltar para Junco sem trazer dinheiro de São Paulo. O vale dos suicidas evoca uma razão na citação de Albert Camus: “num universo subitamente privado de ilusões e de luzes, o homem sente-se um estrangeiro…”
Totonhim, no entanto, está não apenas lembrando, está já no mundo da utopia e, por isso, Oscar Wilde é chamado dentre os devaneios: “Um mapa-múndi que não inclua a Utopia não é digno de consulta, pois deixa de fora as terras onde a Humanidade está sempre aportando”. A utopia foi São Paulo, que chamou Nelo, que chamou Totonhim. No volume Pelo fundo da agulha, é o lado paulista da história que prevalece na narrativa: a chegada, os primeiros empregos, o primeiro amigo em São Paulo, o amazonense Bira, que acaba assassinado, assim como a esposa Sílvia, nos tempos duros da ditadura e logo após um encontro com Totonhim: aqui há uma cena pungente, quando Totonhim compra duas rosas, deita-as sobre o chão molhado do sangue do casal de amigos, benze-se e diz: “Ite missa est”. Continua a bela cena, com Totonhim lembrando e dizendo a si mesmo e chamando-se de senhor: “O senhor foi andando lentamente, a passo de funeral, um hoje, outro amanhã, e olhando para ontem, como se tivesse perdido o ritmo e o rumo das horas. Ao voltar a cabeça na direção das flores, percebeu que elas já haviam sido esmagadas pelos sapatos dos transeuntes. Toda a história de uma grande amizade terminava ali, debaixo das pisadas de quem a desconhecia,…”
Neste lado paulista da história, como foi acentuado, ficamos sabendo que Totonhim casou-se com Ana, que ele havia conhecido no casamento dos amigos Bira e Sílvia. Sabemos que Ana era colega de universidade de Sílvia. Sabemos o quanto Totonhim foi amigo de copo do sogro, que confiou nele deixando uma mala, quem sabe se repleta de documentos sobre a ditadura, porém, nem Totonhim nem nós saberemos o que continha, pois é queimada num ato que se traduz como lealdade e respeito pelo sogro morto. Tudo isto pode passar a impressão que há um afastamento da realidade sertaneja, mas não é assim: a narrativa é autêntica, ocorre que, se nos volumes anteriores, o narrador ainda está perto da caracterização do homem do sertão que se vai para o sul, agora lemos o que sucedeu ao sertanejo na cidade grande, embora o tom oralizante seja o mesmo, as frases curtas estejam igualmente ali.
Para finalizar, vale estabelecer os espaços precisos da trilogia: o Junco, atualmente uma cidade chamada de Sátiro Dias, Feira de Santana, para onde a mãe de Totonhim se mudou, e Alagoinhas, lugar do hospício para o qual a mãe foi levada por Totonhim em completo desatino após o suicídio do filho Nelo, e, enfim, São Paulo, para onde foram Nelo e, depois, Totonhim. Apenas o Junco, e apesar de tudo, é descrito poeticamente, pois é lá que se pode admirar “a barra do dia mais bonita do mundo e o pôr-do-sol mais longo do mundo”.
Vânia Pinheiro Chaves professora de literatura brasileira na faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, estudando o volume Essa terra analisa as formas e o significado que a representação do sertão assume e que constituem a matéria da “literatura sertaneja”. Muito eficiente, o rótulo serve à perfeição para englobar “um filão que atravessa a Literatura Brasileira desde o Romantismo”, como atenta a professora. Manejando os espaços físicos, os aspectos sociais e econômicos, além dos políticos e culturais, incluindo os aspectos lingüísticos do universo sertanejo, ora idealizando-o, ora mirando-o criticamente, Vânia Chaves aponta quatro modos de abordar o sertão: o romântico de Alencar, o realista-naturalista de Os Sertões, de Euclides da Cunha, o neo-realista dos romances nordestinos dos anos 30 e o pós-modernista em Guimarães Rosa. Ela detecta influências de Grande sertão: veredas em Essa terra. Afora qualquer dívida, se ela existe, a trilogia de Antônio Torres é singular dentro da “literatura sertaneja”, como é singular cada caminho que se faz, mais ainda porque o autor deu expressão ao indizível e ao invisível nas entrelinhas daquele caminho.
Os três volumes têm um complemento sob a forma de uma pequena coletânea com três contos, estes últimos reunidos em Meninos, eu conto (Record, 1999). Por sinal, o título é uma homenagem a Gonçalves Dias, que, no poema I-juca-pirama, coloca na boca do narrador, um velho pajé que conta a história ao pé de uma fogueira, o verso “Meninos, eu vi!”. Tudo é, contas feitas, resultado da soma da memória mais a invenção. E o talento do escritor Antônio Torres.