UFRJ – Brasil
Ligia Vassallo
(Ensaio publicado na revista Censive da Universidade de Nantes, n’º 3, editado por Luiza Lobo e Carlos Maciel, 2008)
O Nobre Seqüestrador,
romance do escritor baiano Antônio Torres publicado em 2003, dá ensejo
a refletir sobre a tendência ao hibridismo na literatura brasileira
atual.
Romance e hibridismo são duas categorias que se remetem mutuamente,
uma vez que, ao longo de sua construção, o gênero romanesco se tornou
um composto híbrido por excelência, já que incorporou à sua estrutura
outros gêneros, como o ensaio, a carta, a biografia, as fontes de
cultura oral e assim por diante. Isto ocorre, como sabemos, desde os
primeiros balbucios até sua maturidade literária, com a Comédia Humana,
de Balzac, no século XIX, momento em que atinge sua forma canônica.
A partir do século XX, entretanto, tem sido muito operoso o trabalho
de desconstrução desta mesma forma canônica, fato que se pode
constatar não só nas obras das diversas vanguardas como também nas
grandes experimentações do período, situação por demais conhecida. Esta
desconstrução, em alguns casos, tem a ver com o hibridismo, como se
verifica em parte na literatura da América Latina.
De todo modo, o hibridismo, no tocante à forma romanesca, é apenas
uma das faces da questão, que envolve igualmente conceitos e
elaborações teóricas. Tais discussões enriqueceram-se muito, em especial
no último quartel do século XX, graças à contribuição de estudiosos
provenientes de áreas geográficas periféricas da cultura ocidental, de
que destacamos alguns, como o palestino Edward Said, o anglo-indiano
Homi Bhabha, o peruano Antonio Cornejo Polar, o argentino Nestor Garcia
Canclini, os quais, com suas teorias, põem em questão princípios e
valores eurocêntricos que por tanto tempo foram impostos como
hegemônicos, em particular na América Latina, continente que ocupa
nossos interesses e análises.
Essas teorias exóticas, que por tanto tempo nos sufocaram, apagam a
especificidade de nosso continente, de si mesmo já híbrido devido à
conjunção de autóctones, europeus e africanos, continente que é o
‘espaço-entre’ tão bem conceituado por Silviano Santiago, no qual as idéias estão fora do lugar, para evocar a célebre expressão de Roberto Shwarz.
A esse respeito, tem razão Eduardo Coutinho ao invocar Edward Said,
para quem a circulação da idéias, apesar de ser uma condição básica da
atividade intelectual, não pode desvincular estas mesmas idéias de sua
historicidade e de seu contexto originários, com os quais mantêm
fortes laços, e que as interferências na apreensão das teorias do
primeiro mundo, caso sejam transportadas sem perspectiva crítica para
um novo contexto, podem levar a interpretações duvidosas e inadequadas.
Valoriza-se agora, com Homi Bhabha, a emergência dos interstícios,
dos entre-lugares, a sobreposição e o deslocamento dos domínios da
diferença, geradores de hibridismos culturais que emergem em momentos
de transformação histórica, Daí a necessidade de erigir-se um novo
paradigma e é nesse sentido que a fronteira se torna o lugar a partir
do qual algo começa a se fazer presente, em um movimento ambivalente.
Lembremos que fronteiras, sincretismo, mestiçagem e hibridismo
constituem vieses de um só fenômeno, ligado à s questões
interculturais. Alias, este último termo, que envolve um movimento de
interação, troca, intercessão entre dois pólos, é preferível ao de
multiculturalidade, uma vez que esta última categoria, ao contrário,
leva ao separatismo, ao isolamento e, sobretudo, ao gueto.
A hibridação é um termo detonante, que aponta para uma questão
crucial. Para um dos mais importantes teóricos do tema, Nestor Garcia
Canclini, ‘a hibridação não é sinônimo de fusão sem contradições, mas,
sim, que pode ajudar a dar conta de formas particulares de conflito,
geradas na interculturalidade recente em meio à decadência de projetos
nacionais de modernização da América Latina’.
Ou, dito de outro modo, Canclini entende por hibridação aqueles
‘processos culturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que
existem de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas,
objetos, práticas’.
Eles contribuem assim para identificar e explicar múltiplas alianças
fecundadas, como a junção entre a estética popular e a dos turistas, a
das culturas étnicas nacionais com as das metrópoles, etc.
Corrobora nessa direção de a afirmação de Mario Valdéz, para quem os
‘sistemas subalternos reformulam, ressemantizam e criam estruturas
híbridas e imagens sincréticas, que em conjunto é o que lhes tem dado
seu caráter distintivo e que talvez, para entender o sincrético,
tivéssemos que pensar dialeticamente’.
à assim que têm funcionado a cultura e a literatura na América
Latina ‘ incluindo-se aí o Brasil -, segundo o parecer coincidente de
estudiosos recentes. A propósito, Antônio Cornejo Polar
observa que nos últimos anos é freqüente detectar, sobretudo no romance
regional, certos elementos não romanescos que costumam ser descritos
como próprios do mito, da epopéia, da História, do testemunho, da
denúncia social, dos relatos folclóricos, etc. A partir de certo
conceito de romance, essas formas heterogêneas são percebidas como
impurezas, sem que se suspeite que tal heterogeneidade produz um desvio
peculiar na constituição do gênero, além de representar um conflito
entre duas culturas distintas: a índole de um universo agrário,
semifeudal, e recursos e perspectivas marcados pela procedência
citadina e burguesa. Este é um fato especificamente literário, que
consiste na modificação da estrutura de gênero, inclusive em seus
aspectos formais.Por isso, na América Latina, é difícil ater-se aos
habituais julgamentos e requisitos sobre as virtualidades do romance,
especialmente se estas virtudes são concebidas em termos de um contexto
diverso, como o europeu ou o norte-americano.
Desse modo, ao que tudo indica, Cornejo Polar advoga que a estrutura
formal híbrida, no romance, é uma especificidade latino-americana.
Característica semelhante é também apontada por Ana Cecília Olmos, em
artigo na revista Bravo!
a propósito da literatura argentina do pós-boom, que mistura gêneros
diferentes para pensar um país diferente. Essa produção recente tem no
hibridismo, na mistura de gêneros, a sua mais singular característica,
pois ela
optou’ por entremear a ficção com outros registros discursivos (a
História, o jornalismo, o testemunho, a crítica literária, a
autobiografia), explorando uma zona de indefinição genérica para seus
relatos. A hibridez, apesar da idéia de esterilidade que a palavra
encerra, seria, então, o traço que define uma singularidade literária
que rendeu e continua a render uma volumosa narrativa.
A contaminação textual está na base de romances que, ligados à s
cenas políticas do país, interrogam uma experiência histórica que
reitera, sob diferentes desígnios (ditaduras militares e projetos
neoliberais), a brutal instauração e o fortalecimento de sistemas de
controle e exclusão social.
Informa ainda o mesmo texto crítico que, com maior sutileza estética
e em estreito diálogo com o discurso histórico, outras ficções
voltam-se em direção ao passado na tentativa de compreender os
conflitos do presente.
As ponderações de Ana Cecília Olmos se aplicam perfeitamente ao
romance O nobre seqüestrador (2003), que nos propomos a analisar.
Buscamos com isso detectar de que modo seu autor procede para compor um
texto que escapa à s categorias já codificadas, misturando e
recombinando procedimentos conhecidos porém provenientes de áreas
distintas, nem sempre estritamente literárias, de modo a atingir um
resultado ímpar e novo, fora das classificações habituais. à
indispensável ter em mente, contudo, que esta tendência, embora
presente na literatura brasileira atual, está longe de ser majoritária,
porque de maneira geral a literatura brasileira ainda é bastante
pautada pela escrita linear e pela fatura realista-naturalista, situação
que não cabe aqui desenvolver.
Estas duas tendências, por sinal, são bem visíveis no conjunto da
obra de Antônio Torres, na qual dois títulos, Meu querido canibal
(2000)
e O nobre seqüestrador (2003), evidenciam uma nítida virada de rumo.
Neles, em especial no último, como veremos a seguir, entremeiam-se
gêneros como o romance histórico e o de aventuras, a biografia e as
memórias, poemas e letras de músicas, cartas e documentos históricos,
ensaio e até mesmo matéria de jornal.
Observa-se logo de saída que, devido a esta imbricação de gêneros,
nenhuma das subcategorias de romance manifesta-se textualmente em sua
ortodoxia. Assim, embora não configurem romances históricas canônicos,
ambos os títulos têm claros envolvimentos com situações e personagens
históricos que, além do mais, ancoram-se no Rio de Janeiro, mais
particulares em dois momentos assinalados pela presença de franceses no
Brasil, nos séculos XVI e XVIII respectivamente. Tal circunstà¢ncia já
de si é híbrida, uma vez que os eventos que lhe servem de eixo
pertencem à História desses dois países. O primeiro livro focaliza
Cunhambebe, o líder da Confederação doa Tamoios, no século XVI, árduo
combate dos portugueses porém grande aliado de François Durand de
Villegagnon, o idealizador da França Antártida. O segundo título se
dedica a René Duguay-Trouin, corsário francês do tempo de Luís XIV, que
seqüestrou a cidade do Rio de Janeiro por mais de 50 dias de 1711. Por
sinal, o diário de bordo deste último, publicado originalmente em 1740,
mereceu uma recente edição no Brasil.
Por outro lado, apesar de tais romances serem centrados nos feitos e
traços de importantes personalidades, em nenhum dos casos pode-se
falar de romances estritamente biográficos, porque em ambos Antônio
Torres precisou se valer de suas astúcias de escritor para preencher as
lacunas e os silêncios que a História não registrou. Quanto a
Cunhambebe, além do mais, Torres teve que dar vida a um personagem
vindo de uma outra cultura completamente diversa, até mesmo por
pertencer a uma sociedade ágrafa. Já René Duguay-Trouin, por seu turno,
é desmistificado e humanizado, mostrado com as fragilidades e
insucessos de um herói-canalha.
O romance de aventuras pautado no corsário divide-se
equilibradamente em três partes e tem dois personagens principais, uma
voz masculina e uma feminina, respectivamente agente e paciente da
mesma história, que se expressam em primeira pessoa do singular ao
longo do texto. Este se concreta sobre o primeiro, referido no título,
representado pela jactanciosa estátua de René Duguay-Trouin, o agressor
que se gaba de seus feitos aventurosos e guerreiros. Contrapondo-se a
ele situa-se, em plano menor, o objeto ‘ ou melhor, o espaço ‘ de
sua façanha maior, a cidade do Rio de Janeiro, denominada a Praça do
Rei, a qual se lastima de sua posição de mulher vilipendiada e vítima
dos maus tratos recebidos naquele momento, em 1711, e aliás hoje
também, lamentando-se como um coro de tragédia grega.
à indispensável salientar que a personificação da estátua do
corsário, bem como a da Praça do Rei, constitui uma grande invenção de
Antônio Torres. Aliás, o escritor dá o mesmo tratamento a outras cidades
mencionadas na narrativa, como La Rochelle e Niterói. Ressaltemos que
este recurso retórico, pelo qual a Aurora, em Homero, tem dedos
cor-de-rosa, é raramente ou quase nunca empregado em um romance
moderno, embora seja muito comum não só na epopéia como na poesia
neoclássica setecentista, conferindo desse modo coincidência temporal
entre o procedimento literário e a época do personagem biografado.
Por outro lado, como os seres que foram personificados não são
animados, eles podem ultrapassar as contingências humanas e logram,
assim, fugir à s injunções temporais do romance, o que os capacita a
abordar o presente e o futuro em relação a eles, em igualdade de
condições. Aliás, esta condição da presbiopia, ou vista de longe, ocorre
também freqüentemente na Divina Comédia, de Dante ‘ uma obra fulcral
mas igualmente inclassificável e híbrida. Por esses motivos a
linearidade temporal da narrativa de Torres é freqüentemente
interrompida; ela se concreta no século XVIII, mais particularmente em
episódios de 1711, sendo porém entrecortada por remissões ao presente
da enunciação e a alusões explícitas aos dias de hoje
Em O nobre seqüestrador aparece ainda uma terceira voz narrativa,
anônima, a de um narrador onisciente que se desdobra ou se confunde com
um narratário que é, ao mesmo tempo, não só o ouvinte silente das
peripécias da estátua falante ‘ o ‘você’ a quem ela se dirige sem
obter resposta, como em O grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa ‘
como também é o ‘brasileiro’ do texto, que vai à França à
procura de informações históricas para seu livro. Ou seja, o ouvinte
mudo revela-se, portanto, como sendo o autor do romance, com alguns
problemas profissionais e existentes a resolver. Mas nem por isso tal
artimanha dá ao texto um caráter confessional de obra memorialística,
porque ilumina apenas uma fração dessas confissões.
à figura do autor do romance, contudo, não bastam à s digressões,
pois ele se intromete na história de seu biografado e começa a falar de
si, embora em terceira pessoa, inserindo na narrativa principal suas
preocupações pessoais bem como seus passos em relação à pesquisa
empreendida para a elaboração do livro. Este ardil narrativo não chega
ser equivalente ao que se lê nos roteiros de filmes, aproximando-se ao
invés daquilo que alguns denominam o making of da obra, ou o
desnudamento de sua preparação.
à figura do autor do romance, contudo, não bastam à s digressões,
pois ele se intromete na história de seu biografado e começa a falar de
si, embora em terceira pessoa, inserindo na narrativa principal suas
preocupações pessoais bem como seus passos em relação à pesquisa
empreendida para a elaboração do livro. Este ardil narrativo não chega
ser equivalente ao que se lê nos roteiros de filmes, aproximando-se ao
invés daquilo que alguns denominam o making of da obra, ou o
desnudamento de sua preparação.
Na fatura de O nobre seqüestrador é interessante explorar a presença
de inúmeros textos não propriamente ficcionais, a saber: as múltiplas
cartas de diferentes signatários, incorporadas ao texto entre aspas; a
presença implícita ou explícita de diversos documentos históricos; as
transcrições de diários de bordo, tanto de viagem transatlà¢ntica (p.
84; p. 189) quanto da campanha francesa (p. 189-215); as listas
diversas (p. 175; p. 177; p. 221); o currículo de Francisco Távora, o
novo governador da cidade (p. 220); uma citação do livro do historiador
francês Roger Vidal sobre a imagem de René Duguay-Trouin (p. 123) e
certamente várias outras ocorrências.
Dentre tantos fragmentos, alguns são mais destacados
tipograficamente, como o que consideramos duas colagens de matéria de
jornal, uma tomada a O Globo de 3 de dezembro de 2002 (p. 142-143) e
outra ao Jornal do Brasil de 25 de fevereiro de 2003 (p. 247-248).
Estas transposições operam uma espécie de mise em abyme, porque
abordam, na atualidade, a questão do medo, comum nessa época e ao
século XVIII, que decorre da insegurança dos citadinos ‘ não só pelo
ataque do corsário, no passado, bem como pela recente ocupação da
cidade do Rio de Janeiro por parte dos narcotraficantes, em 2003, ação
interpretada textualmente como um seqüestro. Aliás, muito a propósito, a
transcrição do Jornal do Brasil incrustada no livro remete à
empreitada de Duguay-Trouin.
Sem destaque tipográfico e embaralhadas em meio à s conjeturas da
estátua falante e da Praça do Rei, surgem passagens textuais
informativas de cunho histórico e geográfico sobre as cidades associadas
à s atividades do corsário, como Saint-Malo, La, Rochelle, Brest e Rio
de Janeiro, que mais parecem saídas das páginas de um guia turísticos
ou de um enciclopédia. Em compensação, tal assepsia é contraposta pelo
excessos de subjetividade das figuras personificadas, em especial a
linguagem vulgar usada pertinentemente pela estátua em certas
situações, constituindo entretanto um verdadeiro anacronismo em relação
à fala local do século XVIII.
Não se pode deixar de mencionar um outro aspecto muito interessante
do último romance publicado por Antônio Torres, que concorre para
ressaltar a originalidade de seu hibridismo formal. Trata-se da
incorporação de elementos habitualmente tidos como paratextuais, tal
como bibliográfica, agradecimentos e créditos, os quais costumam
constar de trabalhos acadêmicos e ensaios, mas nunca ou raramente de
obras ficcionais. Só conheço esta ocorrência no belíssimo poema O
oratório dos Inconfidentes, de Domício Proença Filho, outra obra de fatura igualmente híbrida.’
A estes aspectos acrescenta-se também um outro, proveniente da
produção ensaística, como as passagens caracterizadas pela função
metalingüística, encontradas sobretudo nas várias explicações sobre as
especificidades e diferenças existentes entre corso e pirata (p. 16; p.
26; p. 28; p. 43). Quer-nos parecer que tais elementos, junto com os
recortes-colagens de jornal, estão presentes para burlar o pacto com o
leitor, desnudando a pesquisa empreendida pelo escritor e seu making of
do romance.
A esfera dos textos ortodoxamente literários também é visível, sob
diferentes modalidades, nas inserções textuais de O nobre seqüestrador.
Destaquemos da saída as letras de música quem pontuam o texto,
estrategicamente situadas no princípio, no meio e no fim do romance, de
modo a construir uma espécie de marcação de suas três partes e três
vozes. A primeira delas, colocada à guisa de epíteto à obra, é a
‘Canção de Duguay-Trouin’, de Chico Buarque e Edu Lobo, criada
originalmente para a peça O corsário do rei, de Augusto Boal. A segunda
é uma anônima cantiga de ninar sobre o famoso corsário, que na França
‘os pescadores cantavam para as suas crianças’ (p. 113). Ambas se
concentram sobre a figura do protagonista masculino, preponderante na
primeira parte do romance, como sabemos, ao passo que a terceira letra
de música, incluída ao final da terceira parte da obra, é a transcrição
de um conhecido hino de louvor à cidade do Rio de Janeiro (p. 243), a
voz feminina da Praça do Rei.
Arrolamos ainda diversas citações de obras literárias ao longo do
romance: o inferno segundo Jean-Paul Sartre (p. 149); um poema do
português Alexandre O’Neil sobre o medo (p. 143) e um fragmento de
Baudelaire (p. 151); o início de ‘um conto memorável’ (p. 153); um
fragmento de Shakespeare (p. 116), ‘umas linhas do inglês George
Orwell’ (p. 168), mais precisamente de seu famoso romance 1984, do
qual o medo é justamente um dos principais ingredientes.
O que é que se pode então concluir a propósito do sincretismo nessa
obra de Antônio Torres? Por um lado, corroborar a assertiva de Nestor
Garcia Canclini, já citada, para quem práticas discretas, que existem
separadamente, se combinam para gerar outras estruturas e objetos. Mas
também reconhecer no escritor a bagagem de técnicas e procedimentos da
tradição literária do passado, aos quais dá um uso renovado. Porém,
mais do que todos esses aspectos, salientar o desejo bem sucedido de
focalizar cenas deixadas à sombra em nosso processo histórico, na
medida que resgata episódios e personalidades até então vistos
monoliticamente sem grandeza pelo discurso oficial. Para fugir à
mirada canônica foi preciso, coerentemente, criar uma nova modalidade
romanesca, esse romance híbrido, sincrético, mestiço, com formas
articuladamente desarticuladas, pois esta é a única maneira de falar
fímbria e do não-dito. Aí repousa a grande originalidade de O nobre
seqüestrador.
Vemos assim de que modo opera a sintonia entre a literatura
hispano-americana e a que é praticada no Brasil. O hibridismo, tal como
realismo mágico e o fantástico, são tendências que ocorrem nas duas
literaturas, embora no Brasil se verifiquem em muito menor proporção.
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