In: FONSECA, Aleilton (org.). O olhar de Castros Alves.Ensaios críticos de Literatura Baiana. Salvador: Assembléia Legislativa do Estado da Bahia; Academia de Letras da Bahia, 2008. 500 p., p. 322-329.
Jaqueline Cardoso da Silveira
Introdução
O texto híbrido de Meu querido canibal apresenta de maneira radical a
questão da fronteira dos gêneros ao incorporar uma diversidade de
formas narrativas como o relato histórico (história oral), a utilização
de mitos, contudo sem renunciar à ficção.
O romance é composto por três partes que marcam a temporalidade em
que o narrador se situa. A partir desta divisão acompanhamos a
trajetória da “Confederação dos Tamoios” (grupo social que uniu os
guerreiros nativos do litoral paulista ao Rio de Janeiro, na maior
organização de resistência aos colonizadores do país). Em seguida o
autor transporta-nos para o tempo místico das narrativas sobre a criação
do mundo, confrontando o livro Gênesis a uma narrativa dos índios
tupinambás. Na terceira parte Torres conta sua peregrinação pelas tribos
e a trajetória de sua pesquisa, utilizando-se da história oral a fim de
reconstruir a história indígena com enfoque principal na figura de
Cunhambebe, constituindo assim uma biografia romanceada, por falta de
registros do chefe da nação tupinambá, gerando contradições em relação a
identidade e nacionalidade brasileira.
Neste momento o autor torna-se personagem e relata, em primeira
pessoa, a maneira totalmente distinta de como as raízes indígenas estão
em seu povo atualmente, estabelecendo ainda um paralelo entre as formas
atuais de violência e aquelas que levaram ao massacre dos índios no
princípio da colonização.
A Visão Européia sobre o Índio
As representações étnicas apresentadas no romance mostram de certa
forma o caráter plural tanto da história brasileira como indígena. É
nesse sentido que se faz necessário um olhar direcionado que possibilite
a ressignificação da história indígena, modificando os discursos que
durante tanto tempo e ainda hoje representam nossos nativos com
adjetivos pejorativos e de forma europeizada. É apontar, definitivamente
perspectivas mais seguras de compreensão do universo histórico e
cultural do índio.
O foco agora recai sobre o momento inicial da aproximação dos
portugueses e dos franceses e o seu olhar sobre o homem, para eles
primitivos, que habitava a região denominada Brasil. Buscam-se novas
leituras daquele encontro e novas descobertas em relação a aceitação ou
recusa do colonizador ao colonizado.
O estudo do romance traz à tona questões históricas até então pouco
debatidas, concedendo-nos espaço de se ler de modo divergente o que a
história oficial registrou sobre a imagem do índio, seus costumes, suas
crenças. Bem como a forma heróica como os portugueses ficaram conhecidos
por “descobrir” e “colonizar” as terras brasileiras.
O que se propõe é uma reflexão do passado para um entendimento do
presente, superando a visão do indígena como selvagem, compreendendo
para isso o seu universo histórico e cultural.
No romance faz-se uma profunda distinção do modo como era a relação
dos índios com os portugueses e dos mesmos com os franceses, para
ilustrar esta relação faz-se necessário uma passagem pelo livro A guerra
dos Tamoios de Aylton Quintiliano, nele o autor esclarece que:
É de se notar que não andavam muitos bons termos as relações entre
índios e portugueses, por serem estes, quase sempre de trato rude,
assaz, arrogantes. Os franceses, por saberem dessas desavenças,
utilizam-se de uma política de extrema indulgência. Enquanto o
portugueses aprisionavam o aborígine para escravizá-lo, o francês apenas
o tratava como amigo, como comerciante. O que interessava (aos
franceses) era o pau-de-tinta (pau-brasil), o algodão, as penas, as
aves, os animais raros.1
Os indígenas representavam a estranheza, o diferente para o
estrangeiro, cuja presença incomodava também aos nativos. Dentre as
inúmeras diferenças entre os povos habitantes no território brasileiro
as que mais incomodavam aos estrangeiros de acordo com relatos do
próprio autor são de que: “os tupis não prestavam culto organizado a
deuses e heróis”2 enquanto que os portugueses estavam presos a
ideologia cristã , respaldados pelo cristianismo e com o apoio dos
padres e dos jesuítas, além disso o modo de vida indígena também não era
aceito pelo colonizador que se escandalizavam ao observar o ritual
antropofágico, que eles interpretavam como ato de canibalismo, ou mesmo a
forma de transmissão cultural indígena a partir da narração de mitos
que eram passados de geração em geração, já que os índios eram ágrafos,
todas essas diferenças ameaçavam a paz portuguesa e amedrontavam os
tripulantes, pois o nativo representava o desconhecido, não existia
neles o desejo pela troca de conhecimentos ou pela aceitação.
Um fator que dizimou boa parte da população indígena foram as doenças
estrangeiras, resultando na morte de inúmeros guerreiros e também do
grande líder Cunhambebe “aquela peste só podia ser artimanha dos
brancos, que os havia infeccionado, de propósito. A velha história das
roupas e panos impregnados de vírus, para contaminá-los, no mais sujo
dos combates pela sua dizimação”3 . A revolta de Cunhambebe se
restringia aos portugueses por estes serem exploradores e impiedosos, já
com os franceses as relações eram mais cordiais. Estes mantiam com os
índios uma relação comercial onde saiam lucrando sempre, como bem relata
Torres uma das passagens do romance:
Umas certas traficâncias e piratariazinhas, a que davam um sentido de
escambos. Assim trocavam utilidades de civilização européia- machados,
foices, martelos, facões, anzóis, os famosos espelhinhos e perfumes
pelas preciosidades da terra, como o pau-brasil, chamado pelos índios de
Ibirapitanga, o pau de tinta, tão grosso que três homens não lhe
abraçariam o tronco e que fornecia a tinta vermelha com que os nativos
pintavam o corpo.
Os portugueses enxergavam está relação amistosa entre índios e
franceses como negação a identidade do povo europeu e se escandalizavam
por achar que os índios viviam sem lei, sem rei e sem fé. Porém este
estranhamento estrangeiro encontrou resposta, pois o homem indígena
também se sentia incomodado com a presença de outros povos em suas
terras, povos que queriam lhe impor regras e costumes impróprios ao seu
meio de vida.
Os Índios e a Confederação dos Tamoios
Os índios eram pacíficos, não conheciam nada dos brancos, só
conheciam a natureza que lhes dava tudo de comer e de curar alguma
doença do mato, ferimentos ou comida mal digerida. Seus deuses eram as
forças da natureza. Não tinham armas de fogo nem facas e facões porque
não conheciam o metal; nem tampouco prisões. Os portugueses, para usar
seu trabalho escravo, impunham grande pavor, matando, esfaqueando e
prendendo com correntes de ferro os desobedientes.
Comandados por Cunhambebe e pelos caciques Aymberê, Caoquira e
Pindobossú, os índios eram muito numerosos. Os registros do Padre José
de Anchieta indicam a chegada de mais de duzentas canoas com mais de
vinte índios cada uma, além dos milhares que vinham por terra,
provenientes das tribos situadas nas planícies acima da Serra do Mar.
Os portugueses auxiliados pelos jesuítas, que tinham grande poder
sobre a bondade na terra e suas recompensas na eternidade, conseguiram
aplacar a ira dos chefes morubixabas com promessas de castigos divinos e
muitas ameaças do furor das forças da natureza, que era a única coisa
real que orientava as ações e os pensamentos daqueles homens primitivos
em seu estado natural mais puro. A voz do padre que chegara para
catequizar os índios, agora era utilizada para alcançar os interesses
políticos, totalmente descomprometidos com a missão religiosa. Anchieta
mostrava-se diferente dos outros portugueses afirmando que antes de
tudo, dava a sua palavra de que ele e Nóbrega não partilhavam dos mesmos
sentimentos dos portugueses que matavam e escravizavam os índios. Para
provar as suas boas intenções, lembrou o que já tinha feito pelas
aldeias, num incansável trabalho para educar crianças, tratar os
doentes, consolar os velhos e defender os fracos contra os opressores.
Padre Anchieta enganou os indígenas de forma tão eficiente que até
mesmo os chefes das tribos concordaram com o pedido de paz e trégua
proposto por ele, ordenando os guerreiros a abaixar as armas, Anchieta
convencia-os de que “O sangue de cada tamoio é precioso e nobre. Para
que derramá-lo, se pode, para a grandeza da Terra de Santa Cruz,
conjugá-lo com o sangue branco?”5
Os índios recolheram seus arcos, flechas e bordunas em atenção às
promessas de paz e convivência com os brancos garantidos pelos jesuítas.
Depois de uma viagem do cacique Cunhambebe a São Vicente, junto com o
padre Manoel da Nóbrega para acerto dos acordos de fim das hostilidades,
foi combinada a Paz de Yperoig, que serviu de argumento para o desânimo
dos franceses que queriam ver os portugueses expulsos. Cunhambebe e
seus guerreiros acreditaram na boa fé dos acordos. Os vários chefes com
seus homens se dispersaram, se desarmaram e voltaram para suas tribos.
Mas a história não comenta que, logo depois de terem se desarmado e se
dispersado, os índios foram massacrados pelos rudes e estúpidos
colonizadores portugueses interessados no ouro, nas riquezas e nas
terras descobertas.
A confederação dos Tamoios teve a significação de por em risco a
colonização portuguesa. Não foi um movimento sem consistência, de
natureza ocasional sem uma direção firme e consistente. Os tamoios
organizavam-se de modo inteligente e seguro de que poderiam obter um
grande êxito, como afinal estiveram ás vésperas de obter.
Desvirtuando o olhar romântico sobre a figura indígena
A partir do século XIX ocorreu uma intensa busca por uma identidade
nacional para representar o povo híbrido que habitava o Brasil.
Inicialmente o índio foi esse objeto de representação do nacional na
literatura, porém suas ações eram retratadas de forma deturpada, sem
levar em consideração o seu universo cultural. Criou-se, para tanto, um
índio europeizado que se distanciava, a cada representação, do seu povo,
de sua cultura, de sua nação.
No entanto os autores da época necessitavam dessa figura para compor
uma literatura originalmente brasileira, mesmo que ela apresentasse
traços europeizados. Desta forma os românticos uniram a representação do
bom selvagem à expressão patriótica, fornecendo assim à sociedade do
novo Brasil um temário nacionalista e sentimental, que se adequava às
necessidades de auto-valorização, buscada pelo público leitor.
Como afirma Ecléa Bosi em seu livro Memória e sociedade “uma tradição
se mantém pela narrativa de fatos e de lembranças, e o esquecimento da
tradição é um dos fatores que contribuem para a perda dos referentes
históricos de um povo.”6 Dessa forma, como poderia os índios, naquele
momento, afirmar sua identidade se o processo de aculturação imposto
pelos portugueses, fazia-se cada vez mais presente no cotidiano
indígena?. Além disso, a falta de formas para a conservação do
patrimônio cultural dos índios foi fator determinante no
apagamento/substituição de sua cultura, ademais a própria forma como
suas tradições foram transmitidas através das primeiras manifestações
literárias do Brasil.
Conclusão
A construção da identidade em Meu querido canibal delineia-se aravés
de uma revisão do passado histórico para formação do sujeito moderno. Há
um sentimento de pertencimento a uma comunidade, estando estes ligados
ao processo de interiorização ou de personalização dos valores que a
regem. Podemos observar isto não só nos indígenas mais também nos povos
que colonizaram o território brasileiro.
Torres nos possibilita alterar conceitos, que os olhos europeus
interpretaram segundo seus interesses, propondo um jogo de memória e
esquecimento que demonstra grande eficácia no processo de construção e
fortalecimento da identidade e da nacionalidade de um país, forçando-nos
a olhar para o outro e nele nos reconhecermos, dando espaço para que
novas interpretações possam ser feitas a respeito de nossa história.
A construção identitária ou da auto-imagem dos povos que aqui
habitavam passa obrigatoriamente por dois focos de análise: um
corresponde ao processo interno de construção e reconstrução identitária
da própria imagem do grupo, como etnia específica, isto é, com etnônimo
próprio e suas estruturas hierárquicas (sócio-culturais, religiosas e
políticas). As relações desses sujeitos e suas representações davam-se
de forma desconexa. Com a necessidade de reconhecimento formal ou
oficial, criaram novos modelos de coesão grupal, novos hábitos de
interação com o meio social e ecológico, e teceram novas formas de
inter-relações com seus “parentes” e com o mundo que os rodeia.
Nesses dois aspectos, os índios em questão se inserem no confronto
por uma necessidade intrínseca a sua resistência (tanto física como
cultural) agindo como povos que aqui existiam muito antes da chegada dos
portugueses, sobrepassando os limites de sua sobrevivência no tempo e
no espaço.
Em Meu querido canibal o cruzamento entre passado e presente nos
possibilita notar o resultante da nação, que antes se determinava
primitiva, portuguesa, francesa e que por fim geraram cultura rica,
nascida pelos processos de heterogeneidade e de hibridização, algo além
da aculturação, a simples aceitação dessas diferentes formas de cultura.
Notas
1 QUINTILIANO, Aylton. A guerra dos Tamoios. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
2 TORRES, Antonio. Meu querido canibal. 4. ed. São Paulo: Record, 2003, p. 9.
3 TORRES, Antonio. op.cit., 4. ed. São Paulo: Record, 2003, p. 104.
4 TORRES, Antonio. op.cit., 4. ed. São Paulo: Record, 2003, p. 56.
5 TORRES, Antonio. op.cit., 4. ed. São Paulo: Record, 2003, p. 65.
6 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Rio de Janeiro, 1998, p. 72.
Referências
ANTONIO TORRES fala a Antonio Brasileiro, Cid Seixas, Aleilton
Fonseca e Rubens Pereira. [Entrevista]. Iararana. Revista de Arte,
Crítica e Literatura, Salvador, n. 6.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do estado e
civilização. Tradução por Ruy Hungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997.
OLIVEIRA, Humberto L. L. de. Celebração da heterogeneidade: imagens
do outro nas ficções literárias do Brasil, Quebec e Turquia. In:
OLIVEIRA, Humberto L. L. de. (Org.). Anais do Seminário de Estudos
Comparados Brasil-Canadá. Feira de Santana: NEC/UEFS, 2000.
QUINTILIANO, Aylton. A guerra dos Tamoios. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
SEIDEL, R. H. A questão da alteridade na cultura brasileira: uma
leitura de Meu querido canibal, de Antônio Torres. Studium, Recife, v.
17, p. 90-102, 2006.
TORRES, Antônio. Meu querido canibal. Rio de Janeiro, Record, 2000.
JAQUELINE CARDOSO DA SILVEIRA – Graduanda em Letras Vernáculas na
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), bolsista de iniciação
cientifica pela PROBIC/UEFS no âmbito do projeto de pesquisa
“Descaminhos do Viandante: Espaço Nacional, Fronteiras e Deslocamentos
na Obra de Antonio Torres”, sob a orientação do professor Dr. Roberto
Henrique Seidel.