Somos Índios

Gerana Damulakis

Antônio Torres retorna à sua terra por dois motivos: para lançar seu mais recente livro, Meu Querido Canibal, e para participar do V Congresso de Estudos Lingüísticos e Literários, com realização de 21 a 25 de maio, no Campus da UEFS, Feira de Santana. Na oportunidade, deu-se a entrevista cedida à Gerana Damulakis por Antonio Torres.

1 – O livro Meu Querido Canibal não transmite uma visão edênica do Brasil de então, ou melhor, de Pindorama. Isto veio naturalmente ou foi esquematizado para fugir da tal visão piegas?

-Não vou dizer que tudo neste livro É natural, mesmo em se tratando de uma história que tematiza o Brasil dos 500, quando a natureza era soberana. Parti de um personagem que me encantou, o grande guerreiro tupinambá Cunhambebe, o primeiro chefe supremo da Confederação dos Tamoios que, aí entre os anos de 1554 e 1567, uniu todas as tribos inimigas de São Vicente a Cabo Frio, e fez a terra tremer. Foi a maior organização de resistência aos colonizadores que este País teve. A partir do meu interesse por Cunhambebe, um gigante com quase dois metros de altura, exageradão em tudo, a ponto de ter 14 mulheres quando outros caciques só tinham direito a 4, cheguei à  epopÉia dos tamoios, que significavam “os mais velhos do lugar”. Procurei, então, trazer para a atualidade um pouco da dimensão de Cunhambebe como herói e da Confederação dos Tamoios como organização emblemática, me valendo, naturalmente, das minhas estratÉgias de romancista, ou seja, de contador de histórias.

O que busquei em Meu Querido Canibal foi um resgate da história do povo que estava aqui quando os europeus chegaram, e que havia sido relegada, esquecida. Na enxurrada de livros que estão na praça, tendo o aniversário do Descobrimento como pretexto, há obras admiráveis, sem dúvida, mas É tudo, ou quase tudo, coisa de branco. Se há alguma novidade em “Meu Querido Canibal” É esta: trata-se de um recorte diferenciado na onda comemorativa. Por fim, Cunhambebe liderava um povo de guerreiros. Não houve pieguismo algum na relação do europeu com o nativo – e vice-versa. Eu não poderia, de maneira alguma, me permitir uma visão piegas daquele tempo de guerra. De cobiça e fúria.

2- Dizem que todo escritor tem seus temas constantes, que definem sua obra. Como entra a biografia de Cunhambebe entre seus livros?

– Embora tenha cá minhas obsessões (o choque entre o rural e o urbano, o do Brasil arcaico com a modernidade, a solidão de um país grande etc), tenho procurado diversificar os meus temas e a minha escrita, para não me tornar uma espÉcie de sambista de uma nota só. Espero que o “Meu Querido Canibal” represente um exemplo deste meu esforço.

3 – Que relação você estabelece entre êxito de público, qualidade literária e consagração crítica?

– Eis aí uma pergunta cuja resposta valeria um punhado de dólares. Quem acertar nas três questões aí ganha a sorte grande. Quantas obras consagradas pela crítica se tornam encalhes monumentais! Quanto sucesso de público É esnobado pelos críticos e atÉ por mim! No que diz respeito à qualidade, pode ser que ela se imponha, pode ser que não. Para o tal do mercado, cada vez mais arrogante e ditatorial, livro bom É aquele que vende. Parece que em nosso tempo a qualidade É uma questão secundária. Daí haver tanto escritor, hoje, uivando para a lua, sem saber o que fazer de suas qualidades. Às vezes acontece uma zebra e a qualidade emplaca.

4 – A escrita faz leitores e assim a literatura evolui e modifica, com os grandes textos, a maneira como se lê. Qual o leitor ideal para “Meu Querido Canibal”, seria forçosamente aquele que tem empatia com o índio?

– Se houve uma coisa boa nestas comemorações dos 500 anos foi que o Brasil passou a refletir mais sobre a sua própria História. E de repente percebemos que os índios fazem parte dela. E mais: que somos índios. No fundo, no fundo, por trás de todo o oba-oba, percebemos que há algo da derrota dos nativos que serve de espelho para as nossas derrotas cotidianas. Nestes 500 anos, construímos um país, sim, multifacetado, multicultural, multitudo. E com um potencial humano e econômico fantástico. Mas cujo povo ainda não está no centro da História. Fica à margem, cada vez mais perifÉrico. Mesmo sabendo que vivemos numa nação extremamente conservadora, corri o risco de me postar, de peito aberto, às flechadas da História oficial. Hoje, me pergunto: há mulheres e homens livres neste País? Há consciências não manipuladas? A estes dedico o “Meu Querido Canibal.”