Estado de Minas – sabado, 14 de junho de 2003
Clara Arreguy
Em edição rica em documentos e reflexões, foi relançado pela Record o romance Um cão uivando para a Lua, de Antonio Torres. Escrito em 1971 e lançado no ano seguinte, o livro demonstra, 30 anos depois, que continua a ser não apenas o retrato de um tempo e de uma geração, mas um documento visionário, que antecipou em décadas a decadência da sociedade brasileira, braços dados o indivíduo e seu entorno social.
Nesta reedição, Antonio Torres prefacia a história explicando em que contexto foi escrita, como foi recebida, por gente que ele nem conhecia na época, como Jorge Amado, Marques Rebelo, escritores, críticos e editores, que saudaram como, apesar de trabalho de estréia, obra de um autor maduro. Um cão uivando para a Lua tem como base a loucura. Depois que o escritor, então um jovem jornalista e publicitário baiano à procura de emprego no Rio de Janeiro, visitou um amigo num manicômio, surgiu-lhe a idéia de escrever sobre o processo de enlouquecimento.
Ao longo do romance, no entanto, o que era para ser o registro de uma viagem ao inferno particular de uma mente em sofrimento profundo assume outras proporções. A deterioração da política nos momentos mais negros da história do Brasil, o recrudescimento da ditadura militar, está na origem dos problemas gigantescos que se seguiram, como concentração de renda, violência, corrupção e tantos outros, que Antonio Torres aponta, sem proselitismo nem didatismo, na trajetória do herói.
Este, por sinal, não é exatamente um personagem principal, mas dois. O jornalista em crise internado no hospício tem no amigo que o visita um duplo em todos os sentidos. Ambos enfrentam conflitos profissionais: o primeiro, desempregado e surtado; o segundo, agora trabalhando na maior rede de televisão do Pais, mercado que, naquela época, significava vilipêndio a quem sucumbisse ao seu canto de sereia. Os dois transitam entre o jornalismo e a publicidade, entre a seriedade profissional e a vida boêmia, entre a fidelidade a princípios e as concessões ao mercado. Um pira, se interna, sai do ar, toma eletrochoques, mergulha no inferno, refaz, internamente, o road movie que vem sendo sua vida. O outro se espelha no amigo para buscar saídas, deficientes saídas para seus impasses.
Com uma escrita que namora referencias cultas – mas sem pedantismo – e uma visão jornalística do País que se desenhava naquele início de anos 70, Antonio Torres viaja pela Transamazônica, Belém-Brasília, sertão cearense, interior da Bahia, centro do Rio ou periferia de São Paulo com críticas e simpatia. O povo que encontrava ainda não havia se adaptado, de todo, à falta de valores e referências que tomaria lugar de tudo. Os choques muitas vezes são inevitáveis. O que surgirá do futuro ainda não podia ser visto em sua totalidade. O que Um cão uivando para Lua deixava entrever, no entanto, e embora o final do romance fosse otimista, era que se gestava um mostro. Profético.
Além do prefácio do autor, o volume contém também cartas enviadas a ele por gente como Audálio Dantas, a orelha da primeira edição, as primeiras resenhas e críticas publicadas na imprensa nacional e internacional.