Nego de Roseno

Dr. Cláudio Cledson Novaes (UEFS)

Personagem do conto Segundo Nego de Roseno, do livro Meninos, eu conto, do escritor Antonio Torres. Neste livro, as histórias ocorrem em “lugares esquecidos nos confins do tempo em mundo interiorano e rural” (TORRES, 2001, p. 10). Nego de Roseno destaca-se no enredo em contraponto entre esta desolação e isolamento rural e a auspiciosa ascensão comercial do personagem negro. Ele é o único indivíduo do conto com relativo sucesso material no contexto de atraso econômico e social narrado. Nego de Roseno é o proprietário da pequena casa de comércio que atrai a atenção do menino narrador, porque somente Nego de Roseno possuía “uma fubica parada na porta do armarinho” (idem, p. 19), o “único orgulho motorizado do Junco” (idem, ibdem). O menino ficava:

fascinado com o progresso desse homem e chegava mesmo a invejar-lhe a liberdade de poder rodar para cima e para baixo na boléia daquele caminhãozinho que, mesmo quebrando e atolando nas estradas, acabava sempre chegando a algum destino” (idem, ibdem).

Antonio Torres nasceu em 1940, no povoado que inspira o enredo do conto, o Junco, hoje cidade de Sátiro Dias, situada no sertão da Bahia. Torres diz que descobriu sua vocação literária na escola rural e começou a vida de escritor com a experiência de jornalista e de publicitário. Apesar da sua fortuna crítica ainda se resumir basicamente a resenhas curtas em jornais de cultura sobre a sua obra, já há alguns estudos acadêmicos inéditos sobre seus romances. Antonio Torres é um dos principais ficcionistas da Literatura Brasileira contemporânea, trazendo em sua narrativa, inclusive nos contos do livro Meninos, eu conto, a influência peculiar da formação interiorana e da experiência jornalística do escritor. O conjunto da sua narrativa se estrutura em certos aspectos fundamentais do universo rural e do mundo jornalístico-publicitário, seja na diversidade dos seus romances, seja na safra pequena, porém densa, dos seus contos e crônicas, que absorvem a vitalidade da oralidade do mundo rural e a objetividade da linguagem do jornalista e publicitário.

No aspecto formal, a tendência para a concisão do foco narrativo seduz o leitor do texto Segundo Nego de Roseno para um enredo enxuto, como também é a estrutura narrativa das grandes digressões históricas ou das cisões psicológicas em todos os romances do escritor. Outro aspecto peculiar da sua obra é o conteúdo realista das narrativas, quase sempre focadas em fenômenos históricos ou da memória. No entanto, a história e a memória são apropriadas em linguagem literária experimental, o que faz a objetividade naturalista assumir uma condição subjetiva da realidade representada em narrativa fragmentária e ágil.

Nos contos de Meninos, eu conto, o pertencimento dos personagens ficcionais, como Nego de Roseno, ao universo do menino narrador, que se confunde com o universo do autor-menino, é explicitado desde a apresentação do livro pelo próprio Antonio Torres: “estas histórias, portanto, são de outra era. Mas ainda compartilho os sonhos, os sentimentos e os conflitos desses meninos. Um dia eles e eu já fomos as mesmas pessoas. Ou por outra: até hoje me sinto como se fosse um deles” (idem, p. 10). Neste sentido, a ficção e a realidade se fundem no universo da literatura e a maneira como o texto encena o personagem Nego de Roseno evidencia questões éticas na estética da representação do negro na literatura brasileira contemporânea.

No projeto literário nacional são fundados e reproduzidos muitos dos estereótipos tradicionais sobre o negro, Mas também se desvelam na literatura imagens étnicas silenciadas na história política e cultural do país até hoje. A difusão de mitos em textos escolares e na adaptação da literatura em grandes meios de comunicação de massa, como a televisão e o cinema, tem efeito multiplicador dos estereótipos, ampliando questões fundamentais da discussão sobre a cultura nacional em nosso imaginário, como, por exemplo, os tipos negros: adaptados versus não-adaptados; vilões versus heróis; feios versus voluptuosos e viris; bom e risível versus violento, entre outros estereótipos.

Nego de Roseno faz contraponto dos estereótipos relacionados ao papel do negro na economia política e cultural da sociedade brasileira. Ele é um capitalista de sucesso numa realidade rural pré-capitalista, o que induz o leitor a um ponto crucial do conto, quando o menino mira-se no status do negro alçado à posição de superioridade moral devido ao sucesso comercial. Isto se apresenta ao menino como imagem ideal da sua transição para o mundo adulto. O menino prova sua coragem ao negociar com o Nego de Roseno a compra de uma camisa nova no armazém do comerciante. Ele pechincha no preço – pois o dinheiro que tinha ganhado naquele dia não era suficiente para o negócio –, e Nego de Roseno aceita o acordo, vendendo a camisa por menos. O menino, ao chegar a casa, é repreendido pelo pai, que considera um erro a compra da camisa e manda devolve-la ao negociante e pegar o dinheiro de volta. O maior dilema para o menino é desfazer o negócio e macular a sua honra diante da autoridade de Nego de Roseno: “era uma humilhação ter de se desfazer de um negócio que fizera por sua livre vontade” (Idem, p. 23).  Não desfez o negócio e o caso só foi esquecido “quando a camisa já estava rasgada” (idem, p. 25).

A autoridade de Nego de Roseno vaticinou ao pai do menino a sentença fundamental da iniciação do jovem no mundo adulto: “dá gosto ouvir aquele menino falar. Aquele menino é um homem” (idem, ibidem). A construção moral do negro indica a sua personalidade incontestável.

Ao analisarmos outros aspectos discursivos no conto de Antonio Torres, flagramos a ambigüidade da literatura com relação ao personagem Nego de Roseno. Na emblemática imagem moral dele é possível fazer outra reflexão sobre a presença do negro na literatura brasileira, seguindo a discussão de Roger Bastide de que os estereótipos do bom e do mal negro continuam menos aparentes, mas latentes e “prontos a despertar, no entanto, cada vez que a ascensão gradual do homem de cor ameaça o branco nas posições de domínio que ele não cessou de ocupar na sociedade” (BASTIDE, 1973, p. 128). A ascensão do Nego de Roseno com sua fubica “que transportava uma pança negra com os bolsos cheios de níqueis dos roceiros” (TORRES, p. 19) traz o aspecto vitorioso positivo do negro para o menino, mas há também o aspecto negativo velado nas poucas palavras do pai, quando contrariado com a compra da camisa pelo menino: “Burro. Burro e besta”. A fala paterna insinua o abuso do comerciante sobre o menino inocente enganado pelas artimanhas do vendedor.

Portanto, o Nego de Roseno pode ser lido como o mito do vencedor que subverte a condição social e se supera economicamente, mas também pode ser lido como desconstrução da explicação social para a condição econômica da população excluída no país. Essa exclusão implica em negros e não-negros condicionados às mesmas possibilidades de ascensão ou não, conforme o diagnóstico sociológico de Roger Bastide através da análise do discurso da literatura no século XX. O conto de Antonio Torres arma a trama com categorias históricas veladas, para o leitor formular na leitura novas respostas para as questões sociais envolvidas. Por exemplo: qual a condição histórica do negro no cenário rural brasileiro? Como o imaginário rural do país reproduz as contradições envolvidas nos estereótipos positivistas das hierarquias raciais?

O conto de Antonio Torres torna ambíguo o sucesso do Nego de Roseno, sem reduzir a problemática a uma resposta única, nem prolongar prolixamente o tema do ponto-de-vista do narrador sobre o sucesso econômico do personagem. A concisão da linguagem do escritor dá significado direto ao observado pelo menino em relação ao sucesso do comerciante. O enunciado é unívoco mas faz emergir uma multiplicidade de sentidos subliminares na discussão sobre o tema étnico do negro nas diversas regiões geográficas e do imaginário literário brasileiro. O respeito do menino ao sucesso econômico do comerciante existe porque Nego de Roseno teve uma vida “carregando suas mercadorias no lombo de um burro”. (Idem, p. 19). Mas a revolta do pai do menino contra a compra da camisa coloca em cheque a honestidade do comerciante, pois ele afirma não perdoar o menino ter dado “o seu dinheiro numa camisa que não valia nada” (idem, ibidem).

Do ponto de vista da construção dos estereótipos do negro no imaginário brasileiro, podemos finalizar a reflexão sobre Nego de Roseno com inferências à complexidade étnica criada pelo conto em relação às categorias clássicas introduzidas desde a obra de André João Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, quando aponta os tipos do boçal e o ladino. O primeiro, para o autor colonial, é aquele “rude” e “fechado” que continua ensimesmado por toda a vida. Estereótipo generalizado no Brasil para caracterizar as pessoas prepotentes e pretensiosas. O segundo tipo, para Antonil, é formado por escravos que em pouco tempo se adaptam e tornam-se “espertos, assim para aprenderem a doutrina cristã como para buscarem modo de passar a vida” (ANTONIL, 2007, p. 98, grifo nosso).

Apesar dos estereótipos acima datarem do século XVI em relação aos grupos de negros que chegavam à colônia para o serviço escravo, estas categorias são correntes na linguagem popular brasileira, até hoje, tanto em seu caráter positivo, quanto negativo, e, para além da questão de raça, assumem um significado social. Da mesma forma que as duas categorias podem ser sugeridas na leitura do Nego de Roseno, outra, mais comum, é usada para designar o típico negro brasileiro: o mulato. Para Antonil, estes são os melhores “para qualquer ofício” (idem, p. 99), pois contam com “aquela parte de sangue de branco que têm nas veias” (idem, ibdem).

Enfim, Nego de Roseno pode ser lido como emblema das categorias históricas e psicológicas acima, tornando-se o típico modelo positivo/negativo da “civilização mestiça” nacional, confluindo nele as diferentes virtudes e vícios macunaímicos da geléia geral brasileira. Cabe ao leitor atento à literatura brasileira contemporânea revolver na memória os mitos e os estereótipos dos personagens negros.

Referências

ANTONIL, André João de. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Edição Crítica por Andrée Mansuy Diniz Silva. São Paulo: Edusp, 2007.

BASTIDE, Roger. Estudos Afro-Brasileiros. São Paulo: Perspectiva, Col. Estudos-Ciências Sociais, 1973.

TORRES, Antonio. Meninos, eu conto. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

Duas capas do livro Meninos eu conto