Antônio Torres: o estilingue da memória

Jornal da Tarde 11/09/1999
Aleilton Fonseca

A memória sempre foi e será uma fonte para a literatura. Cada escritor empreende, segundo seu engenho e arte, a sua busca do tempo vivido, ou perdido, como o fez Marcel Proust. Assim a narrativa traz à tona fatos e experiências que na maturidade passam a ter uma importância especial para o autor. Quando as situações retratam a realidade vivida ou presenciada, estamos no campo do memorialismo. Quando o passado oferece experiências a partir das quais a imaginação cria situações verossímeis, entramos no terreno específico da ficção.

Meninos, Eu Conto, livro que reúne três contos de Antônio Torres, comporta essa dupla possibilidade de leitura. Como num jogo de espelhos, os meninos personagens e o narrador adulto se refletem na escrita e demarcam o seu distanciamento no tempo e a sua proximidade afetiva. Na foto da contracapa Torres maneja um estilingue, que simboliza o seu desejo de rever as imagens da infância e adolescência vividas na sua pequena cidade natal. Segundo o autor, esses contos “têm como cenário um lugar esquecido nos confins do tempo” onde “os meninos dividiam o seu tempo entre o trabalho na roça, junto com os pais, e o caminho da escola, no povoado”. São histórias de meninos do interior, ambientadas numa época em que cada lugarejo ficava isolado do mundo, tendo como horizonte apenas uma estrada poeirenta, por onde muitos seguiam para São Paulo e nunca mais voltavam. O escritor afirma: “Estas histórias, portanto, são de outra era. Mas ainda compartilho os sonhos, os sentimentos e os conflitos desses meninos. Um dia eles e eu já fomos as mesmas pessoas. Ou por outra: até hoje me sinto como se fosse um deles” (p.10).

No primeiro conto – “Segundo nego de Roseno” –, o menino adquire uma camisa na venda do povoado. O pai desaprova a compra e lhe ordena a devolução. Mas como desfazer o trato? O menino se debate com o problema, no entanto mantém a palavra empenhada, tornando-se responsável pelos próprios atos. A comunidade reconhece: “Aquele menino é um homem.” E o pai fica orgulhoso porque percebe que o filho honra a palavra, de acordo com a ética sertaneja.

O segundo conto – “Por um pé de feijão” – mostra a realidade do menino camponês que divide seu tempo entre a escola e o trabalho na roça. Depois do trabalho duro de plantar, colher e ensacar o feijão, a boa safra acaba sendo destruída por um incêndio de origem obscura. O narrador destaca a atitude do homem do campo diante das vicissitudes, que são encaradas como desígnio divino. Contudo, o menino observa o pai e aprende a ter fé e a acreditar em dias melhores, pois “quando as chuvas voltassem, lá estaria ele, plantando um novo pé de feijão” (p.35).

O terceiro conto – “O dia de São Nunca” – já estabelece relações entre o espaço rural e o urbano, pois o menino protagonista mantém contato com três jovens da cidade que fazem uma espécie de turismo no povoado. O menino exercita a imaginação, ensina e aprende, como portador do saber local e aprendiz das novidades urbanas. Ele se esforça para compreender aqueles jovens forasteiros e sente o esforço deles para compreenderem o seu mundo. Para o menino, que sofre de paralisia nas pernas, esses dois mundos agora se tocam, como um novo horizonte em seus sonhos e esperanças.

Os três contos tanto agradam ao leitor maduro como podem ser lidos e comentados por jovens que se iniciam na leitura adulta. São histórias com início, meio e fim, aparentemente simples e despretensiosas, mas ricas de significados. As situações vividas pelos meninos protagonistas atraem a simpatia e a curiosidade de quem não conhece a vida do campo e certamente desperta as lembranças daqueles que, hoje metropolitanos, têm, como o próprio escritor, uma origem perdida em algum cantinho do Brasil rural. Trata-se de uma realidade que ainda existe, em plena era das parabólicas e da internet, como nichos de vida ainda não alcançados pelas transformações tecnológicas. Antônio Torres olha para essa realidade – num passado nem tão remoto assim – e, longe de esquecer suas origens e sua terra, a elas retorna por meio da ficção, inserindo-as na geografia literária.

Duas capas do livro Meninos eu conto