Jornal do Brasil — 03/01/1973
Hélio Pólvora
Com uma frase de William Faulkner — “entre a dor e o nada eu escolho a dor” — Antônio Torres ilustra e também define seu romance de estréia, Um cão uivando para a Lua. “Between nothing and grief I take grief.” Esta frase, que sempre me impressionou desde a primeira leitura de Wild Palms, é o fecho do monólogo final de Wilbourne, que continua a sofrer na memória uma bela e trágica história de amor. Wilbourne é um dos vários personagens faulknerianos que não teme o abismo. Arrastado até as bordas, deixa-se cair, enquanto decide, com uma selvagem alegria, perscrutar o fundo. São heróis da resistência pessoal. Heróis por dentro.
Esta opção pela dor me leva a ler o romance de Antônio Torres e vejo que ele, mesmo querendo chocar, produzir impacto, escreve com muita convicção. É desses escritores que têm o que dizer, porque, antes de tudo, viveram, tiraram conclusões de uma experiência própria. No caso de Antônio Torres, essa experiência, que gerou o depoimento, parece ligada ao jornalismo. A história se repete: o moço chega à cidade grande do Sul, atraído por luzes que julgava humanistas, e não tarda a descobrir que ali apenas o espaço é maior. Nele cabem, além de angústias pessoais, o desespero que vem de fora, dos acontecimentos e situações de um mundo só.
A contaminação é fatal. E como as personagens de Antônio Torres, que ele designa com iniciais, são pessoas sensíveis, lidas e instruídas, a fuga se torna mais difícil. Como evitar os golpes diários desfechados na sensibilidade? É possível cultivar a sensibilidade em meio a tantas agonias? Os jornais refletem o mundo caótico de hoje varrido pelo vento da violência. O cadáver de uma mulher atropelada em Botafogo é reduzido a uma posta de carne pelos automóveis que passam e não podem parar: o trânsito tem de fluir. Em São Paulo, um homem que dedicou sua vida inteira à firma é despedido e apresenta seu advogado: Mr. Smith, o revólver. Por toda parte, assassinatos, suicídios, assaltos, mendicância, prostituição. Sobreviver é a coisa mais importante. O menino que engraxa sapatos no calçadão da avenida Atlântica e mora em Parada de Lucas sabe disso. O operário que trabalha no Aterro sonha com o momento de tomar seu gole de aguardente.
A sobrevivência exige nervos fortes, uma estrutura de aço. O progresso tem um custo social altíssimo que, em alguns casos, é reembolsado sob forma de contestação, e, em outros, leva forçados contribuintes à loucura. “O progresso é o desencanto contínuo”, lembra uma das personagens insones de Antônio Torres, citando Scott Fitzgerald. Um cão uivando para a Lua é, portanto, o romance da fossa generalizada. Parte da angústia individual, “aquele negócio horrível por dentro”, e atinge um sentimento coletivo de paranóia frenética. Sob este aspecto, Antônio Torres situa seu livro na órbita da agonia e da procura que tem servido de tema à ficção e poesia de todos os tempos, mas parece envolver cada vez mais o homem contemporâneo.
“Meus heróis estão mortos”, raciocina uma das personagens, em meio àquele “monte de caixotes empilhados, os engradados onde 8 milhões (seriam mesmo 8?) se engarrafavam”, isto é, a cidade de São Paulo. “Meus heróis estão armazenados nas prateleiras da minha estante ou amarelecidos pelo tempo num recorte de jornal, enquanto o herói moderno se angustia nos divãs e eu não entendo mais nada.” No derradeiro monólogo do romance, sentindo-se velho aos 31 anos, o homem-multidão faz um exame de consciência — e o que vê é a paisagem sombria da desesperança acomodada: “Vejo uma porção de homens de pés redondos — e eu no meio deles — rodando, rodando, rodando pelo mesmo quarteirão, comendo pipoca e engolindo em seco com a vista baixa, um passo aqui, outro não sei quando, como se não existisse mais nenhum horizonte, como se o mundo começasse aqui e terminasse aqui mesmo, neste banheiro, neste bairro — e sempre ligado a um aparelho de televisão.”
O romance de Antônio Torres, a mais significativa dentre as poucas estréias de 1972, é vitorioso na medida em que consegue transmitir um poderoso sentimento de solitude, desespero, frustração e ânsia. Literariamente deixa, no entanto, a desejar. Há trechos — principalmente o de uma personagem diante do espelho, a interrogar-se — muito bem realizados, e que por isso mesmo desautorizam outros, escritos, ao que parece, com arrebatamento e pressa.
O romancista faz lembrar, de certo modo, Henry Miller, quando mistura depoimento, reportagem e crônica, numa espécie de diário intemporal, e abusa dos coloquialismos, não se detendo diante de um palavrão. Mas possui em relação a Miller o sentimento de unidade, de condensação. Embora não sendo um escritor surrealista, a prosa nervosa, aos arrancos, e a visão pessimista, profética, aproximam-no também das melhores denúncias de Norman Mailer, especialmente o Mailer de An American Dream e Barbary Shore.
De Antônio Torres é possível esperar uma ficção maior, mais amadurecida — romances construídos com preocupação de estrutura e maior empenho artesanal. Um cão uivando para a Lua fica como amostra, e boa, de suas possibilidades. Ele leva sobre outros jovens escritores brasileiros do momento a vantagem de não negar o seu depoimento, que é, sem dúvida, o de um homem sofrido. Seu romance terá vários defeitos, mas não o de anemia orgânica que leva o ficcionismo a exercícios em torno do nada.