Audálio Dantas
Lisboa, 25 de janeiro de 1973
São Paulo, dezembro de 1972
Tonho Torres, meu querido A.:
Agarrei o cão pelo rabo, num pedaço de madrugada sem lua e sem muita esperança. O bicho latiu forte cá pra dentro, uivou todos os desencantos, desencontros, machucados de vida, entregas, refregas, lembranças, lembranças, saudades. Fiquei acuado, rabo entre as pernas como vive quase toda a gente, sem coragem de latir para os cachorrões fortes que estão no outro lado do muro, prontos para avançar.
Olha, cara, tu latiste por nós.
Te digo, minha surpresa não foi pela tua capacidade de gritar as coisas. Sempre acreditei na tua pureza juncal (junquense, junquesa?) — esse toque sagrado que têm os homens dos lugares humildes. Gostei de ver foi a maneira de gritar. Se tu não tivesse saído do Junco, que gritarias? Aboio de boiada? Canção de trabalho no eito? Serenata pras meninas? De uma coisa tenho certeza: seria sempre bem entoado, como nesse cão uivante, costurado com a perfeição de um velho e honesto artesão de couro, ponto por ponto, recorte por recorte, até a obra de arte.
O cão é o que é — uma obra de arte. Tu costura bem, Tonho. E o importante é que o resultado do trabalho não é simplesmente o do artista que o exibe orgulhoso pela perfeição atingida e depois se refugia na glória da arte pura. O resultado é uma peça da qual o artesão se orgulha por haver cumprido o dever de trabalhador. E a certeza de que vai servir.
O cão serve. Primeiro, como lição. Ele vem dizendo o que muitos silenciam. Fala, inclusive, pelo meu silêncio. Ousa, arreganha os dentes que outros têm e se esquecem que podem acertar pelo menos uma mordida.
Morde a vida que anda a passar sem muita glória, morde quem quer e está podendo controlar a vida dos outros. Tem importância não que um dia a gente se renda ao chamado dos Ts da vida (há muitos Ts por aí, nós somos um pouco ele, não é?). T. tá engrenado, mas ainda tem algo de puro. Talvez seja isto que nos socorre — a nós, os Ts.
Mas pô! Até quando vamos ser T. na vida?
Enquanto não nos for possível sair dessa condição, uivemos, irmão. Nem que seja para um luar inexistente.
Viva o cão!
José Cardoso Pires
Camarada Antônio Torres,
Muito obrigado pelo seu livro que só agora me foi possível ler. Tenho estado ausente de Portugal em longos períodos, foi por isso. Mas agora que li de uma só tirada Um cão uivando para a Lua acho meu dever inadiável felicitá-lo.
É que, para além do mais, ambiência, quadro social, etc., o que me surpreendeu foi a atitude interior de contestação literária que está subjacente ao texto e que lhe dá essa dinâmica de crise polêmica que, a meu ver, é bem mais valiosa do que a descrição do conflito. Só por isto as cento e tantas páginas do seu livro justificariam muito bater de máquina… muita apreensão com que nos debatemos, todos nós, diante duma estória a contar.
Você contou a sua e bem: por dentro; pela sua atitude em relação a própria frase da acção. Parabéns, por isso.