Visão — 14/05/1973
Carlos Nelson Coutinho
(…) Exatamente pela sua temática, pela sua recusa obstinada em aceitar as seduções “neutralistas” de um vanguardismo estéril, é que o pequeno romance Um cão uivando para a Lua, do estreante Antônio Torres, destaca-se como o mais importante lançamento literário dos últimos tempos no país. Não há dúvida de que Torres parte de sua experiência pessoal: da experiência de um jovem intelectual provinciano que vem tentar a realização humana na grande cidade, sobretudo através do jornalismo, mas que termina paulatinamente esmagado pelas engrenagens de um mundo alienado, corrupto e hipócrita. Torres consegue criar alguns importantes tipos humanos, capazes de expressar adequadamente alternativas essenciais da jovem intelectualidade brasileira: basta lembrar aqui a significativa e plástica contraposição entre a loucura como forma de conservar o núcleo humano (simbolizada no personagem indicado pela letra A) e a paulatina e melancólica corrupção desse núcleo na figura de T. Pela sua temática, mas também pela sua coragem realista e pelo seu profundo espírito crítico, Um cão uivando para a Lua lembra o Isaías Caminha: sem ser a melhor obra de Lima Barreto, esse romance inaugurou — apesar dos seus defeitos estéticos — uma nova etapa na literatura brasileira de crítica social realista. O romance de Torres talvez desempenhe, guardadas as proporções históricas, um papel similar na difícil época que estamos atravessando.
Contra a corrente
É certo que Um cão uivando para a Lua nem sempre escapa do documentarismo, nem sempre encontra as melhores soluções formais para os importantes problemas que aborda. É também certo que esse documentarismo, identificando-se tendencialmente com o naturalismo, leva o autor a uma posição marcadamente pessimista, que nem sempre faz justiça às possibilidades de renovação que, apesar de tudo, continuam a existir na realidade brasileira de hoje. Mas o decisivo é destacar que esse romance, marchando contra a corrente, propõe-se trilhar o difícil caminho de um reencontro da literatura brasileira com a realidade concreta.
Após tantos anos de predomínio do experimentalismo, de um “vanguardismo” neutralizador e estéril, não causa surpresas que esse caminho se apresente tão áspero: seria insensato exigir que, já num primeiro momento, se produzissem realistas da estatura de um Machado de Assis ou de um Graciliano Ramos. Isso implica não apenas no paulatino reaprendizado da arte (hoje em grande desfavor) de narrar uma experiência humana significativa, mas também — e talvez em primeiro lugar — na coragem de escolher e tratar até o fundo os problemas concretos da concreta realidade brasileira de hoje. Preenchendo o segundo requisito, é de supor que Torres não tarde em realizar também o primeiro. No quadro da jovem ficção brasileira, seu romance é um evento: uma confirmação de que o “vazio cultural”, suas causas e seus efeitos, não podem ser tomados como alibi para escapar ao cumprimento das reais tarefas sociais da literatura.