Veja — 07/12/72
Leo Gilson Ribeiro
Diante deste livro de estréia não há uma terceira opção: ou se aceita ou se interrompe a leitura. O romancista, desde as primeiras linhas, desde o primeiro capítulo, não esconde nada do leitor. Envereda por um tipo de literatura emotiva, visceral, profunda e autenticamente sincera. Mais articulado do que The Crack Up, de Scott Fitzgerald, é como ele um sismógrafo interior, o gráfico diário de uma neurose urbana. O escritor, o homem sensível que raciocina, é devorado pela máquina da televisão e da publicidade, esta Hollywood da década de 70 no Brasil. Assim como Fitzgerald foi consumido pelo comercialismo das fitas da Metro (cujo lema ainda é: “Ars gratia artis”, a arte pela arte, mas gravado em ouro de 18 quilates) e trocou seu fascínio pela riqueza com uma obsessão pela miséria, esta história parte do colapso que leva a uma “clínica nervosa”. Quem preferir uma literatura inventiva, sem testemunhos pessoais, sem aquele desvendamento brutal que um Dostoievski faz em Recordações da casa dos mortos, ou Jean Genet em O diário de um ladrão, nem deve ler o desigual estreante brasileiro.
Imaturo em vários pontos, com desigualdades de estilo e hesitações de quem tateia o seu próprio caminho de auto-preservação, Antônio Torres é um talento explosivo. Suas armas são a angústia, a busca do raciocínio lúcido, a revolta às vezes ingênua, às vezes adolescente, mas sempre moral de quem constata que é a mera peça de uma engrenagem desumana.
A loucura é tratada por Antônio Torres como o retrovisor da realidade, como um espelho interno que revelasse as entranhas de uma estrutura social em que o absurdo é a norma e na qual quem divergir é trancafiado em manicômios como os cientistas, poetas e romancistas russos de hoje que contestaram a invasão da Checoslováquia de Dubcek pelos tanques de Brezhnev. “Toda a minha vida foi uma luta idiota pela percepção, apreensão e aceitação da realidade. Ao lutador, seu justo prêmio: uma camisa-de-força.” Não é um personagem de Machado de Assis que exclama “ao vencedor, as batatas!” É o eu perscrutador de Antônio Torres na era do Ibope, da televisão líder, do “palmas para ela, que ela merece” e de “nossos comerciais, por favor” ao lado de inacessíveis baús da felicidade. O personagem de Antônio Torres ingênua mas comovedoramente constata que o direito à felicidade, que integra a Constituição dos Estados Unidos, não faz parte da estatística do produto nacional bruto de nenhum país do mundo. Oral, a sua literatura capta a gíria, as incorreções gramaticais, a linguagem sincopada e abreviada de quem fala. Usa monólogos interiores, pesadelos, flash backs de diálogos recordados como numa montagem cinematográfica. Mas, coincidindo com o teatro do absurdo de um Ionesco ou um Beckett, não há conversas entre duas pessoas — o médico e o cliente, o amigo que visita o doente na clínica, o doente e a mulher, Lila, que é o amor lembrado. Há desníveis de conversação como dois estrangeiros que não soubessem decifrar uma língua que o outro fala.
Antônio Torres frequentemente incorre em certa presunção ao atribuir ao seu quase monólogo a dilaceração estética de um intelectual solitário, incapaz de achar tempo para escrever sua obra-prima. Os pensamentos, as frases do narrador brasileiro não têm a profundidade da especulação filosófica e ética dos personagens do escritor Saul Bellow que cita:
“Saul Bellow é um bom escritor. A moça que estudou nos Estados Unidos e que me emprestou Herzog me disse: ‘Este livro fala da solidão do intelectual americano.’ E eu respondi: ‘Ah, é? Então está falando de mim.’ Essa mera formulação deixa concluir que se tratam de solidões diferentes. A do escritor amarrado pela televisão brasileira nada tem a ver com a solidão do homem de negócios americano que em Henderson, the Rain King vai à África para renascer espiritualmente. Em certo trecho de seu livro vozes de homem e de mulher discutem se a carne de boi é melhor que a de homem. Para Saul Bellow e Scott Fitzgerald há graduações infinitamente mais sutis e no Brasil atual também.
A não ser por essas incongruências, Antônio Torres, que luta menos com palavras e idéias do que com percepções e um corpo maciçamente físico (o coração, o fígado, o estômago etc.), é um talento muito importante e ainda vacilante que surge com o valor e o impacto de um flash tirado do interior de um cérebro humano no exato momento em que é sacudido por um violento eletrochoque.