Ecos da voz dos donos da terra

Tribuna da Imprensa – Caderno Tribuna Bis (Rio de Janeiro, 10 de maio de 2000)
Marcelo Moutinho


Antônio Torres diverte-se, reproduzindo a pergunta de sua editora, ao ver nas manchetes o embroglio entre índios e autoridades que marcou a comemoração dos 500 anos: “Você combinou com eles?”. Autor de romances consagrados, como “Essa terra” e “Um táxi para Viena d’áustria”, o escritor está certo de que, após remexer em quilos e quilos de papÉis amarelados pelos sebos da cidade, conseguiu  achar em “Meu querido canibal” o tom que buscara quando se dispôs a contar a história dos povos donos da terra, aqueles que habitavam o Rio de Janeiro na Época da chegada dos invasores. Nele, Antônio centra-se na trajetória de Cunhambebe, guerreiro silvícola cujo maior prazer era devorar a farta carne lusitana. Para falar deste valente que enfrentou os portugueses como chefe da Confederação dos Tamoios, ele traça um panorama político da Europa na Época e segue atÉ os dias de hoje, propondo uma reflexão sobre o legado que os índios puderam nos deixar. “Meu querido canibal” É um romance singular dentro da obra do escritor, mas a narrativa agradável que distingue seus livros anteriores continua presente. Recolhido à Toca do Tote, escritório repleto de livros cujo nome remete a um apelido de infância, e cantarolando “Blue monk” e “Round midnight”, temas de Thelonious Monk que fornecem o ritmo e a melodia de sua prosa, o escritor concedeu a seguinte entrevista ao Tribuna BIS.

TRIBUNA BIS: “Meu querido canibal” É um romance histórico, muito diferente de seus trabalhos anteriores. Como nasceu o livro?

ANTôNIO TORRES: Nasceu de outro, “O Centro de nossas desatenções”, que escrevi sobre o Centro do Rio. Durante a pesquisa, tropecei em grandes personagens de nossa história e, como romancista, o que mais me interessa É ter um grande personagem nas mãos. Já dizia Scott Fitzgerald que “ação É personagem”, e o primeiro interessante na história do Rio foi justamente Cunhambebe, grande guerreiro e chefe supremo da Confederação dos Tamoios, que presumivelmente entre os anos de 1554 e 1567 uniu as tribos inimigas de São Vicente a Cabo Frio e fez a terra tremer. Seu ódio aos portugueses era tão terrível que ele era capaz de ficar uma semana sem comer se não tivesse um pedacinho de português para o seu repasto.

Mas o livro não É radicalmente fiel à história. A tentação em colocar elementos ficcionais É grande, não?

Sou fiel à história na medida do possível, porque os relatos são muitos. Tanto que a palavra que mais emprego nesse livro É ‘presumivelmente’. O que há É o molho de um romancista, uso minhas estratÉgias para dar sabor. Mas Cunhambebe e os outros são tão fantásticos que não precisei inventar personagens.

Ao dar voz a Cunhambebe, obviamente você quer falar de nossa história sob o ponto de vista dos índios. Por quê?

Queria contar a história do povo que estava aqui quando os outros chegaram, porque o que vem sendo contado É a visão do branco. Se há algo bom nessa comemoração de 500 anos É a possibilidade de a gente inverter uma expectativa, porque tudo está montado para ser um grande oba-oba português, mostrar “olha que povo de heróis nós somos”, “que grande nação Portugal criou”. Mas na hora de acenderem as velas, de espoucar a champanha, quem veio para o palco foi o índio, exatamente o esquecido, o infame da raça, o perdedor. Quando terminei de escrever fiquei bastante machucado: tirei o olho do computador, botei na realidade e vi que em termos de mentalidades nada mudou. Olhando para esse Congresso, as classes política e empresarial, as elites que estão aí, parece que estou relendo Luiz Edmundo contando que os vice-reis escreviam para o rei, horrorizados com a gente que estava aqui, que tinha vindo para enriquecer rapidamente, nem que para isso precisasse arrasar a terra. Não queriam construir um país, mas fazer extrativismo.

Em “Meu querido canibal” há referências a diversos outros escritores e se repete uma referência recorrente em sua obra, que É William Faulkner. Já em “Um cão uivando para a lua”, seu primeiro romance, a epígrafe era uma frase dele. Em “Essa terra” isto se deu novamente. E agora você cita “O som e a fúria”. Faulkner É uma obsessão?

Tenho uma paixão grande pela leitura do Faulkner, e em “Meu querido canibal” coube como uma luva por causa do embasamento bíblico que torna o texto dele muito poderoso. Na última parte, o narrador está num quartinho de hotel, às vÉsperas de uma longa jornada pelas trilhas dos índios, daí entra um trecho do Faulkner em “O som e a fúria” que É uma grande reflexão sobre o fracasso. Reflito sobre eu mesmo e o meu medo de fracassar nessa história. Tinha receio de que o trabalho não se realizasse nem como relato da História, nem como obra literária. Mas pela resposta vejo que foi plenamente realizado.

Nessa situação o personagem É você mesmo. Assim como em livros anteriores, a marca da sua experiência torna-se patente. As pessoas não chegam a confundir suas histórias com a sua vida?

Saí de casa com 14 anos e sair era tudo o que mais queria. Quando meu pai foi me levar à rua, notei que ele, aquele homem forte, sentiu o momento. Percebi o que significa o rompimento para quem tanto preza as raízes. Essa minha vivência está presente nos romances, mas não ao pÉ da letra. Às vezes as pessoas falam: “Eu não sabia que você tinha uma tragÉdia na sua vida, que sua mãe enlouqueceu, que seu irmão se matou” (fatos narrados em “O cachorro e o lobo”). Nunca teve nada disso, são coisas simbólicas, e as pessoas crêem, o que É fantástico. Tive uma infância muito legal e agora sei o porquê de minha ligação forte com essa história dos índios – na Serra da Bocaina vi aquelas criancinhas brincando com graveto, sujas de terra, e levei um choque: fui índio e não sabia.

A partida do personagem de Junco para São Paulo, tema de “Essa terra”, e o retorno à cidade, muitos anos depois, retratado em “O cachorro e o lobo”, parecem espelhar, alÉm do conflito entre urbano e rural, um processo de amadurecimento. Foi preciso viver toda uma vida para escrever “O cachorro e o lobo”, não?

O conflito entre urbano e rural ocorre atÉ de uma cidade pequena para outra maiorzinha de uma mesma região. Quem está na primeira sonha em ir para a outra. Quando o personagem volta de São Paulo, o tempo e o sentimento já são outros.  São Paulo É a cidade mais nordestina do país. As pessoas estão lá, mas não são de lá; sonham com a sua terra, relacionam-se sempre com pessoas da sua terra, estão sempre recebendo gente, coisas, planejando viajar para a festa de 2 de fevereiro, com seu melhor terno. Então São Paulo representa para eles o não lugar, o entre lugar, que se aplica perfeitamente aos meus personagens. É uma vivência que eu tenho e precisei enfrentar toda uma vida para escrever a contrapartida. Se tivesse ficado no interior não teria conseguido escrever as coisas que escrevi. É claro que esse parto não É sem dor, esses cortes não são sem sofrimento; sair de um lugar pequeno, no meio de uma família grande e ficar desprotegido no mundo, solto, só, não É simples. Tem um lado pirante, mas tambÉm um aprendizado excepcional. Sempre tive a sensação de ter uma vida sem proteção, de nada, nem do establishment literário. Só tenho meu trabalho, que para minha sorte encontrou seu lugar, no Brasil e fora dele.

Você É uma celebridade na cidade onde nasceu?

Fui homenageado há dois anos. Três padres celebravam a missa e pararam para anunciar minha chegada. Quando vi aquele povo, todo mundo se sentindo meu personagem, resolvi ler um trecho de “O cachorro e o lobo”: “E assim se passaram 20 anos, sem eu ver esses rostos…” Todos permaneciam contritos. Então prossegui: “Eu já falei de vocês no mundo todo, e agora que estou diante de vocês como pessoas, não personagens, não sei o que dizer”. Lembrei-me da minha relação com aquela Igreja, onde, ainda garoto, me convocaram para ajudar o padre. Eu ia ler em latim e, na hora, com o povo todo lá na expectativa, simplesmente esqueci. Durante a homenagem, a lembrança veio, falei em latim e toda a Igreja respondeu. Aí vi o rosto de uma negra lindíssima, com o cabelo todo branco, parecia uma pintura, e me recordei dela: era Maria de Venância, a puxadora do coro. Chorando, ela arrastou a missa atÉ o fim. Me arrepiei todo e me vi na fronteira das realidades com as ficções. Pensava às vezes que me baseei naquilo lá e hoje entendo que não, que eu me baseei na verdade numa gente que mitifiquei, que está no meu imaginário.