Meio, Fim e Começo

Correio Brasiliense, DF, 18/06/2000
HÉlio Meira de Sá – Especial para o correio


Com Meu Querido Canibal, Antônio Torres abre novas perspectivas para uma literatura desconcertante

No princípio eram as matas, as montanhas, os rios, o mar e os índios. A visão do paraíso estampada na capa do último livro de Antônio Torres, Meu Querido Canibal, antecipa um pouco daquilo com o que o leitor irá se deparar. Na ilustração do artista gráfico Elcio Noguchi, um índio retesado aparece no topo do Corcovado empunhando um arco e assestando sua flecha para uma paisagem onde descortina-se a Mata Atlântica, o Pão de Açúcar sem o seu indefectível bondinho e a, ainda imaculada, baia de Guanabara.

O contraste entre esse paraíso perdido, habitado desde priscas Épocas pelos índios tamoios, e o Rio de Janeiro atual É o eixo central da narrativa. O índio Cunhambebe, líder da tribo antropófaga dos tupinambás, surge como protagonista e símbolo de um Brasil hegemonicamente indígena.

O autor utiliza-se do artifício da linguagem ficcional como instrumento para narrar, em uma ponta, o período colonial do sÉculo XVI e, sobre tudo, a têmpera guerreira de Cunhambebe, “o querido canibal”, e de seu povo. Na outra ponta o narrador, provável alter-ego de Antônio Torres, debruça-se em um exercício de metalinguagem sobre livros ensebados, alfarrábios esquecidos, em busca de reconstituir “datas exatas, nomes corretos, história de batalhas perdidas, mitos e fábulas”, algo machadiano. O distanciamento temporal do narrador cria ótimas situações permitindo-lhe a interferência nos fatos narrados mediante comentários jocosos ou simulação de diálogos com os personagens retratados.

A palavra-chave empregada ao longo do livro É “presumido”, que alerta o leitor sobre a imprecisão e a subjetividade dos relatos escolhidos como suporte documental. São obras de viajantes-escritores que aqui estiveram, como o francês AndrÉ Thevet ou o expedicionário calvinista, tambÉm francês, Jean de LÉry, demonstrando, naturalmente uma opção do autor pela leitura francófona dos episódios. Há tambÉm o onipresente alemão Hans Staden, prisioneiro dos índios tupinambás durante nove meses, que afortunadamente escapou de ser canibalizado, nos legando os primeiros registros escritos e ilustrados de Cunhambebe. Com efeito, os relatos testemunhais tinham como objetivo despertar o imaginário europeu para uma realidade distante, exótica e selvagem, valendo-se, não raras vezes, de recursos hiperbólicos ou da inverossimilhança.

A narrativa estrutura-se em três partes entrelaçadas e complementares. A primeira – O canibal e os cristãos – gira em torno da instalação da colônia francesa de Villegagnon, a França Antártica (1555 / 1559), na baía de Guanabara, um refúgio calvinista em terras tupinambás. Talentoso contador de histórias, Antônio Torres mostra as boas relações que Cunhambebe mantinha com os franceses (calvinistas, corsários ou contrabandistas). Nosso canibal chegou a ser recebido com honras de chefe-de-Estado no enclave francês, passando em revista zsoldados regiamente perfilados. Ao contrário do “edênico bom selvagem”, vangloriava-se do sangue inimigo que corria em suas veias, após deglutir inúmeros desafetos, muitos deles portugueses, a quem tratava como mentirosos, traidores e covardes. Por outro lado, em mais um indício de suas preferências, o autor apresenta os hostilizados portugueses, como jesuítas JosÉ de Anchieta e Manoel da Nóbrega, que tinham como missão avangelizar e pacificar os índios, mas insidiosamente portavam a “cruz em uma mão e a espada na outra”. Refratárias aos portugueses, as diversas tribos da região fundaram a Confederação dos Tamoios para combatê-los, alçando Cunhambebe a condição de chefe supremo.

Já a segunda parte – No princípio Deus se chamava Monan – enfeixa a religião, os mitos e as crenças dos tupinambás. A mitologia pagã dos índios canibais foi supostamente transmitida por Cunhambebe ao frei Andre Thevet. De acordo com a versão de Thevet, os tupinambás acreditavam na existência de um Deus chamado Monan que criou o cÉu, a Terra e tudo quanto existia. Nessa cosmogonia, há referências a um dilúvio ou a dois irmãos que representam o bem e o mal. É incrível sob esse aspecto a semelhança de passagens bíblicas com os mitos indígenas, levando-se em conta o fato de viverem isolados ou de ainda não terem travado contato com os brancos.

Na ultima parte, uma espÉcie de making off do livro, o narrador, morador de nosso contemporâneo bairro de Copacabana, dirige-se à cidade de Angra dos Reis em busca de documentos e de antigas trilhas indígenas. É aí, porÉm, que a prosa fluente do autor de Essa Terra atinge sua amplitude. Em meio a lembranças suscitadas por suas pesquisas, observa um Rio de Janeiro caótico, desordenado, assentado sobre o outrora território dos tamoios, cidade cuja história de construção e desenvolvimento foi realizada às custas da exploração e submissão de negros e índios. Em sua viagem constata, in loco, que os descendentes do guerreiro Cunhambebe estão aninhados numa reserva nas cercanias de Angra dos Reis, calçando chinelas de dedo, formando uma confederação dos vencidos.

Ao estrear no gênero histórico-ficcional com Meu Querido Canibal, Antônio Torres surpreende seus leitores e aponta novos rumos para sua obra. MantÉm-se fiel, no entanto, ao seu estilo de construir enredos sempre com começo, meio e fim, não necessariamente nessa ordem, mas numa desconcertante narrativa sinuosa. Sua linguagem flui com frases curtas e palavras precisas, recorrendo freqüentemente, nesse livro, a expressões populares que, em vez de empobrecer o texto, contribuem para agilizar a narrativa. Para tal, lança mão de reiteradas citações de outros autores ou atÉ mesmo de canções populares. A idÉia recorrente da canibalização – a antropofagia explícita – imprime uma leveza lúdica de estilo. No momento em que se comemoram os 500 anos de descobrimento do Brasil, quando os índios remanescentes são alijados dos festejos oficiais, Antônio Torres proporciona ao leitor o deleite da boa leitura e uma sincera homenagem aos nossos ancestrais.

O Escritor das Almas Retirantes

O baiano Antônio Torres É, sem medo de cometer impropriedades, um dos grandes talentos da literatura brasileira contemporânea. Sua obra tem o timbre de um distante e mítico sertão baiano. É bom não lhe creditar um viÉs de literatura regionalista.

Pelo contrário, ao mergulhar no cenário e em situações que lhe são familiares, o escritor o faz não apenas com o objetivo de representar a misÉria da região, as condições subumanas do Brasil rural, mas para expor como um sina inarredável as mazelas da alma humana. Assim, ao migrar para a cidade grande em busca de melhores condições de vida, o nordestino defronta-se com as acachapantes frustrações urbanas.

Justamente nesse sentido a obra de Antônio Torres diferencia-se de escritores regionalistas como Graciliano Ramos, JosÉ AmÉrico de Almeida, JosÉ Lins do Rego e tantos outros. Para eles, o retirante sertanejo embalava sua caminhada na esperança de uma vida melhor. Havia um desespero que se nutria de esperança. Não por acaso, Antônio Torres afirmou em entrevista que “a seca não expulsa, É a civilização que atrai”. Atrai e depois o trai. Esse parece ser o drama de Nelo, personagem de Essa Terra, publicado em 1976, que, ao deixar a cidade de Junco no interior da Bahia ruma a São Paulo, retorna para enforcar-se nas cordas de uma rede.

Escritor engenhoso, seu estilo É marcado por uma narrativa entrecortada, formada por fragmentos desconexos, cacos de um mosaico. Ao leitor, cabe a tarefa de reordená-los, de modo a compor um todo harmonioso e lógico. O importante na sua visão do fazer literário não É uma história linear, certinha, com começo, meio e fim, “mas que, no fim, tem que acabar com começo, meio e fim”.

Jornalista e redator publicitário, seus contos e novelas foram traduzidos em diversos países. Essa Terra, a obra mais conhecida, já foi traduzida para o alemão, francês, inglês e hebraico.

Estreou em 1972 com Um Cão Uivando para a Lua, que granjeou elogios e critica e um prêmio de autor revelação. Ousado, sempre buscando novas formas de narrar, o lançamento de Meu Querido Canibal acena para novas perspectivas temáticas, talvez já antecipadas em Um táxi para Viena d’áustria, lançado em 1991.