Entrevista a Zora Seljan

Jornal de Letras – Número 91,  março de 2006
Entrevista a Zora Seljan

O Romancista Antônio Torres e a conquista de uma linguagem

Romancista posterior à onda maior do romance nordestino dos anos 30 do século passado, retratou Antônio Torres um Nordeste diferente, embora ainda firme na ação de sua gente. Seus personagens representam um Brasil que mudou, de modo que seu domínio da narrativa se insere com perfeição da linha ficcional de um tempo também novo. Sua entrevista revela a consciência desse domínio.

ZS: Entre Um cão uivando para a Lua, seu primeiro romance, e O Nobre Seqüestrador, como desenvolveu seu conceito de romance como obra de arte?

AT: Permita-me, querida Zora, começar indo mais longe no tempo. Se o Dom Quixote, de Cervantes, que teve sua primeira parte publicada há quatrocentos anos, foi “o primeiro verdadeiro romance da literatura universal”, digamos que o gênero surgiu para desestabilizar as certezas humanas, no entrechoque da fantasia com a realidade, fazendo-nos duvidar das verdades absolutas. Chegou à sua era de ouro no século XIX. Basta lembrar alguns casos exemplares dessa era: Dostoiévsky, Tolstói, Flaubert, Eça de Queiroz, Machado de Assis. Foi então que outro destes gigantes, Honoré de Balzac, conceituou o romance à perfeição. “É preciso desfolhar toda a vida social para ser um verdadeiro romancista” – escreveu ele, acrescentando: “Porque o romance é a história secreta das noções.”

No século XX, caberia a James Joyce quebrar a sua estrutura linear, ao enveredar por labirínticas experimentações, com mergulhos nos fluxos de consciência, estes explorados à exaustão também por William Faulkner, o fundador de um território mítico que abarcaria as águas do Mississipi, no qual confluiu o São Francisco do nosso Guimarães Rosa. Eles eram parentes. E bem próximos. O meu conceito? Para mim, o romance é uma espécie de baralho, com todos os naipes, que você pode embaralhar do jeito que quiser, mas no fim todas as cartas têm de estar lá. Ou seja, no fim, tem de ter começo, meio e fim. E literatura, em qualquer dos seus gêneros, se resume à conquista da linguagem e ao domínio do estilo. È o seu destino inescapável.

ZS: O Nordeste de seu Essa Terra mudou muito depois desse romance. E tendo sido de 1997 a retomada da cidade como chão da narrativa, em O Cachorro e o Lobo, terá havido novas mudanças, depois disto?

AT: Preciso voltar à terra do Essa Terra – um livro de 1976 –, para ver se existem novas mudanças. O que, aliás, é meu projeto para este ano. Mesmo à distância, soube de uma que pôs o lugar na linha de fogo da contemporaneidade. Em O cachorro e o lobo – que é o Essa terra revisitado, vinte anos depois –, descrevo o primeiro assalto acontecido lá. Era pura ficção. Logo após a sua publicação, recebi a notícia de que o assalto ficcional se tornara realidade. Foi à agência local do Banco do Brasil. E com muita violência. Algumas coisas mudaram para melhor, sem dúvida – nas comunicações à distância, transportes, saúde e educação. Outras, para pior, com certeza. Como a perda da velha e boa sociabilidade, do tempo em que não havia televisão

ZS: Como vê a ficção nordestina (de José Lins do Rego, Graciliano ramos, Jorge de Lima e Antônio Torres) no contexto geral do romance brasileiro?

AT: Fico muito honrado por você me pôr no rastro desta linhagem. Mas não nos esqueçamos do pai de todos: José Américo de Almeida. Foi o próprio Jorge, o Amado, quem um dia me disse isso sobre o Zé Américo. Os escritores do ciclo nordestino formaram uma tropa de choque que deu ao romance brasileiro expressão nacional. Alguns deles o levaram ao mundo, com Jorge Amado, o capitão de longo curso das nossas letras, comandando a navegação. Todos eles me deram régua e compasso, para lembrar o verso memorável de Gilberto Gil em “Aquele Abraço”. Talvez para as atuais exigências da crítica literária – sobretudo a crítica universitária –, eles, aqueles poderosos romancistas do Nordeste, tenham mais significação pelo seu ideário ético do que pelo estético, com exceção de Graciliano e Jorge de Lima, que parecem cada vez mais firmes nas duas pontas do processo.

ZS: Como vê a literatura brasileira, e a ficção em particular, neste sexto ano de um novo milênio?

AT: Vejo muita gente talentosa entrando em cena, se destacando pela agilidade técnica. Tendência: foco nos transes urbanos, tendo ao fundo as pegadas de Rubem Fonseca, principalmente no Rio de Janeiro, mas também entre novos autores de São Paulo, onde são bem notórias as influências de escritores norte-americanos que estiveram na moda em tempos relativamente recentes. Refiro-me a Charles Bukowski e John Fante. Ressalva-se que algumas moças já conseguiram se desgarrar das mãos de Clarice Lispector. E prestemos atenção a dois ficcionistas fora desse eixo: Miguel Sanches Neto, do Paraná, e Raimundo  Carrero, de Pernambuco. E se não cito mais nomes é para não transformar esta resposta numa espécie de lista telefônica.

ZS: Que ficcionista estrangeiro considera representativo do nosso tempo?

AT: Pergunta difícil de responder, não é, não? Meu coração balança entre três. Um europeu, o Zé Saramago, um sul-americano, Gabriel García Márquez, e o norte-americano Norman Mailer. Eles representam o que ainda existe de escritor como figura pública. Quem sabe serão os últimos?

ZS: Os sonhos mudam. Em entrevista de quase dez anos, foi um. Qual vem a ser o seu sonho no momento?

         AT: O mesmo de um personagem de William Sorayan, em Um dia no crepúsculo do mundo, que tudo que esperava da vida era poder pagar as suas contas.

ZS: Que livro está escrevendo neste 2006?

AT: Outro romance. Mas se eu lhe contar de que se trata, minha mente dará por escrito e ele ficará empacado. Sábios são os mineiros, que trabalham em silêncio.

ZS: O que representou para você ganhar o Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto da sua obra, a mais alta láurea da Academia Brasileira de Letras, no ano de 2000?

AT: O Prêmio Machado de Assis representou um inesperado reconhecimento, pois se trata, sem dúvidas, da conquista da mais alta láurea que um escritor brasileiro pode almejar, no seu país. O meu sentimento foi o de que toda a minha luta com as palavras não havia sido em vão. A emoção se tornaria ainda maior durante a cerimônia de entrega do prêmio, na ABL, pela forma extremamente afetuosa com que os acadêmicos me receberam.

ZS: Em 2001, com seu romance Meu querido canibal, que retrata a vida do líder tupinambá Cunhambebe, o mais temido e adorado guerreiro indígena, você ganhou, também, o Prêmio Zaffari & Bourbon, promovido pela 9ª Jornada Nacional de literatura, de Passo Fundo. O que sentiu?

AT: Eu tinha sido convidado para participar do evento, com palestrante. Poucos dias antes de partir, li no Globo que o Canibal estava entre os dez finalistas. A matéria era ilustrada por duas fotos: a minha e a do acadêmico e senador José Sarney. Cá com o meu senso sertanejo de realidade, achei que ele ia levar o prêmio, por tudo que representa nas letras e na vida pública. Chegando lá, me puxaram para uma das primeiras filas. Quase 5 mil pessoas a postos no auditório. No palco, discursos. Do governador do estado, do prefeito de Passo Fundo, do reitor da Universidade, da professora Tânia Rösing, a organizadora das Jornadas Literárias. E eu com um frio na espinha. Finalmente, chega o grande momento. “O Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de 2001 vai para… (Tchan-tchan-tchan!): Nür na escuridão, de Salim Miguel e… Meu querido canibal…” Câmeras e microfones nas nossas caras. A primeira pergunta veio na minha direção: “O que você achou da divisão do prêmio?” Respondi, na bucha: “Não houve divisão. Foi uma soma para a literatura brasileira.” E isso pipocou nos noticiários televisivos daquela noite e virou manchete na imprensa gaúcha, no dia seguinte. Pronto, eis que senti e ainda sinto. Não é bom poder somar?

Entrevista a João Carlos Teixeira Gomes

Jornal A Tarde – Salvador, Bahia – sábado, 26/08/2000.
Entrevista a João Carlos Teixeira Gomes

Desde o Junco, veredas do brasileiro Antônio Torres

Esse jovem senhor que está à minha frente – quase 60 anos bem vividos e espalhados por Oropa, França e Bahia, que se completarão em 13 de setembro – é hoje um romancista consagrado, que acaba de receber, pelo conjunto da sua obra, o Prêmio Machado de Assis, conferido anualmente pela Academia Brasileira de Letras. Toda a sua trajetória intelectual iniciou-se nos idos de 1960 no recém-fundado Jornal da Bahia, para começar pelo jornalismo uma vocação que os anos só fizeram confirmar e amadurecer.

Devo personalizar o meu depoimento porque fui seu chefe de reportagem no então novo matutino, que reunia uma equipe brilhante, constituída de profissionais já tarimbados e jovens valores que surgiam com a missão de renovar o jornalismo baiano. Entre estes, Antônio Torres, de início retraído e mesmo tímido, o moço interiorano nascido no longínquo Junco (hoje Sátiro Dias) que vinha tentar a sorte na cidade grande e logo se destacou pela qualidade do seu texto e pela sua curiosidade de repórter, compondo com Humberto Vieira a melhor dupla da sua geração. Dedicados, profissionais competentes.

Irrequieto, o menino Torres, entre todos o mais afável e disciplinado (depois ele confessaria ter-me achado um chefe de reportagem estourado e intransigente, mas disciplinador), não esquentou cadeira no JBa. Sem demora, arrumou as malas e seguiu para São Paulo, onde, ao lado do jornalista, surgiriam o romancista e o publicitário. Pensou de início em fixar-se no Rio, que não pôde sequer ver direito em trânsito pelo aeroporto Santos Dumont, mas sua condição de interiorano impeliu-o primeiro para a megalópole paulista, na qual começou a trabalhar na Última Hora, nos tempos tumultuados que se seguiram à renúncia de Jânio Quadros, estimulada por algumas doses extras de uísque, como o confirma Foster Dulles na sua alentada biografia de Carlos Lacerda.

Na verdade, o sonho do jovem Torres – que os amigos chamavam de “o menino do Junco” ou “Tote” – não era Rio ou São Paulo, mas sim Paris, embalado pelos exemplos de escritores famosos que ali viveram a melhor parte de suas vidas, como Hemingway e F. Scott Fitzgerald. Não chegaria a morar em Paris, mas na capital francesa recebeu conferido pelo ministro da Cultura em 1998, o título de Chevalier des Arts et des Lettres. Na Europa, seu centro de operações foi Portugal, onde morou em Lisboa e no frio Porto, temido pelas nortadas de que fala Miguel Torga num dos seus poemas, ou seja, as rajadas do vento montanhês que invadem a cidade durante o inverno. Como não se acostumava com elas, nordestino dos trópicos escaldantes, preferiu morar em Lisboa, onde foi hóspede querido do poeta Alexandre O’Neill, para o qual lia regularmente trechos de “Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.”

O’Neill se encantava não apenas com a prosa rosiana, quanto, da mesmo forma, com o sotaque sertanejo de Antônio Torres, que lhe parecia o mais adequado revestimento sonoro para as histórias de Riobaldo, que o poeta gostava de ouvir “em voz alta”. Três anos viveu Torres em Portugal de 1965 a 1968, quando resolveu voltar ao Brasil, apesar dos tempos politicamente tempestuosos instaurados pelo Ato Institucional número 5 e pela crescente radicalização da ditadura militar. Fixou-se novamente em São Paulo e começou aos poucos a descobrir o Rio, para onde se transferiu definitivamente em 1978, dividindo suas atividades entre a ficção e a publicidade. Em 1972, casou-se com a professora universitária Sonia Carvalhal, com a qual tem dois filhos; Gabriel, um craque da área da informática, com livro publicado, e Tiago, um jovem músico, baterista com músicas gravadas.

Em seu amplo apartamento da Sá Ferreira, em Copacabana, num dia europeu de um incaracterístico e muito frio inverno carioca, Antônio Torres recebeu-me para uma entrevista exclusiva a A Tarde Cultural, quem em seguida vai transcrita em forma de perguntas e respostas.

J. C. Teixeira Gomes – Você começou no jornalismo como repórter, no Jornal da Bahia recém fundado, que tinha uma equipe brilhante. O jornalismo ajuda a fazer o romancista?

Antônio Torres – No meu caso ajudou. E muito. Ser escritor foi meu sonho de criança, desde quando bati os olhos no livro de leituras da professora Teresa, na Escola Rural Prof. Anísio Teixeira, lá no Junco, digo, Sátiro Dias. Entrei para o Jornal da Bahia como quem entra num campo de treinamento. E lá havia escritores já tarimbados, como Ariovaldo Matos e você mesmo. Aprendi muito com vocês e com toda aquela redação maravilhosa. Tinha realmente um time brilhante, formado por nomes como João Batista de Lima e Silva, Flávio Costa, Muniz Sodré, Jeovah de Carvalho, Juracy Costa e muitos outros.

JCTG – O que foi mais marcante para você, no seu tempo de “foca” na Bahia?

AT – A minha estréia no jornal. Você, que era o chefe de reportagem, me mandou cobrir o movimento do porto. Cheguei lá, anotei as chegadas e partidas de navios, e dei o assunto por encerrado. No dia seguinte, você me mostrou o que os outros jornais noticiavam, e que eu não tinha visto no porto: contrabando, tiroteio, o diabo. Pela bronca, achei que minha carreira de repórter havia terminado ali mesmo, no primeiro dia. Ainda assim, fui merecedor de uma segunda chance – por piedade sua, talvez, diante da minha vergonha por tamanho fracasso. E aí você me mandou para o Necrotério Nina Rodrigues, onde dei de cara com o cadáver de um negão muito jovem que havia se suicidado. A visão do corpo do morto, estirado num estrado, começava pelos pés. E era apavorante. Mas pensei: “Hoje o Joca não me pega”. Isso porque me lembrei de um poema de Godofredo Filho sobre o absurdo de se morrer aos 18 anos. E assim comecei a matéria, que você passou para Jeovah de Carvalho, o chefe da reportagem policial. Para meu azar, Ariovaldo Matos, o chefe supremo da Redação, ia chegando à mesa de Jeovah naquele momento. Ari a leu e, de dedo em riste, disse: “Você pensa que está aqui para fazer literatura? Isto aqui é jornal, rapaz!” De nada adiantou Jeovah defender a minha matéria, dizendo que era bonita, que tinha “poesia”. Ari não quis conversa. Foi à sala dele, pegou um livro norte-americano intitulado Introdução ao Jornalismo e me passou o livro dizendo: “Só volte aqui depois de ter lido isto”. Bom, não foi um castigo dos piores. Li o tal livro. Grande Ari! Foi ele, sim, quem me deu a chave do tesouro.

JCTG – Quando sentiu que o seu caminho literário era a ficção? A experiência do publicitário absorveu o romancista mais do que devia ou lhe estimulou a criatividade?

AT – Quando eu era menino, se me perguntassem o que queria ser quando crescesse, a resposta seria: “Castro Alves!” Comecei rabiscando versos, que escondia debaixo do colchão, para que os adultos não os descobrissem. Isso lá no Junco. Mas foi no Ginásio de Alagoinhas que um professor me disse: “Seu negocio não é a poesia. É a prosa.” Pelo visto, ele estava certo. Agora, quanto à minha experiência na publicidade, foi extremamente enriquecedora para o meu texto. No jornalismo, aprendi a ver o mundo. Na publicidade, a contar o que vi com poucas palavras. Quer um exemplo? Eu tinha material bastante para fazer do Meu Querido Canibal um livro de mil páginas. E o fiz com menos de duzentas! A publicidade me ensinou a arte da síntese.

JCTG – Antônio Torres é um continuador ou herdeiro da tradição regionalista da ficção brasileira, consagrada com o romance nordestino de 30?

AT – Creio que tenho um pé na tradição e outro fora dela. Nos meus anos mais vulneráveis e juvenis, li muito os romancistas de 30. Mas também li Guimarães Rosa e Clarice Lispector, tanto quanto os meus contemporâneos.

JCTG – Vários de seus romances, sobretudo os iniciais, fundem regionalismo com memorialismo, na linha de 30, traduzindo suas vivências familiares e rurais no Junco. O memorialismo é fundamental na sua obra?

AT – O meu primeiro romance, Um Cão Uivando para a Lua, é urbaníssimo (ultra-sofisticado, no dizer do escritor baiano Marcos Santarrita). O segundo, Os Homens dos Pés Redondos reflete uma experiência minha em Portugal, nos estertores do salazarismo. É no terceiro, Essa Terra, que começo a viagem de volta às origens, São Paulo-Bahia, abrindo um ciclo que prossegue com Carta ao Bispo e Adeus, Velho, e ao qual retorno em O Cachorro e o Lobo. Nestes, sim, há uma fusão do rural com o urbano, o regional com o cosmopolita. Já sobre o memorialismo, comecemos pela receita que o doutor James Joyce passou aos romancistas, para os quais recomendava “memória, silêncio e astúcia”. E nunca me esqueci de uma frase a respeito, de William Faulkner, em Luz em Agosto (na tradução de Hélio Pólvora, se não me falha o bestunto): “É a memória, e não a dor, que faz você se lembrar de ruas selvagens e ermas.” E há ainda o título de Carl Gustav Jung, que não me sai da cabeça: Memórias, Sonhos, reflexões. Sonho que meus romances contenham um pouco disso.

JCTG – Quando você ingressou no jornalismo, no final da década de 50, estavam em voga as teorias da literatura engajada, estimulada pelas idéias de Sartre, o triunfo da Revolução Cubana e a convicção da vitória inevitável do socialismo. Isto o influenciou ou suas origens interioranas o tornaram naturalmente engajado?

AT – Não. Não me considero um escritor engajado, nesse sentido que você está dando. Li Sartre, num tempo em que todo mundo estava lendo Sartre. Mas também era leitor de Camus. E, para falar a verdade, os escritores que mais me marcaram foram os norte-americanos: Scott Fitzgerald, Faulkner, Hemingway, Truman Capote, o Norman Mailer dos primeiros tempos etc. Hélio Pólvora e Léo Gilson Ribeiro perceberam isso, já na estréia.

JCTG – Seu último romance, Meu Querido Canibal, desvia o seu percurso regionalista-memorialista ruma à ficção de fundamentos históricos, tocando inclusive a linha hoje rara do indianismo. Trata-se de nova tendência ou manifestação isolada?

AT – Não gostaria de ver o meu trabalho preso a um rótulo, como o de regionalista-memorialista, por exemplo. Sou da roça e sou da cidade. Sou do Junco e do Rio e Paris. Gosto de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, e de Miles Davis, todos os trompetes havidos e a haver. Escrevi Meu Querido Canibal porque me encantei com um personagem chamado Cunhambebe, o primeiro herói deste país, e com a história da Confederação dos Tamoios, a grande epopéia da nossa colonização. Agora escrevo uma minisérie para a TV Globo, como escritor convidado do Doc Comparato. Mas já tenho planos de mais um personagem da nossa História. Gosto de variar, só isso.

JCTG – Você hoje é um autor plenamente integrado no Rio, cujos meios editoriais e culturais não raro constituem guetos fechados, preconceituosos em relação sobretudo ao que se produz no Norte e Nordeste, paraísos exóticos, tratados à francesa como se fossem “lá bas”. Glauber Rocha sentiu isto e chegou a qualificar o Rio de “balneário escroto”. É bem difundida – inclusive nos programas humorísticos de TV – a ironia carioca com a alegada “preguiça baiana”. Antônio Torres é hoje baiano, carioca ou baiano-carioca? Tal simbiose é possível? Se suas raízes estão intactas, qual o papel do Rio na sua ficção?

AT – Ufa! Haja fôlego! Mas vamos lá. Não consigo ver o Rio desta maneira. Acho que há até uma certa curtição do carioca pela Bahia, e não só pelo lado exótico. As piadas sobre a Bahia são simpáticas, nada ofensivas. Diria até afetuosas. Escritores baianos (para não se falar dos músicos, cineastas etc) sempre tiveram muito espaço aqui. Foi no Rio que Glauber Rocha encontrou patrocinadores para alguns de seus filmes mais importantes. Aqui ele aconteceu mesmo. Oh, Joca, e onde os seus livros estão publicados? E os do Ruy Espinheira Filho e Ildásio Tavares? Pouquíssimos autores daqui têm espaço que João Ubaldo e eu temos. E de onde viemos? Não pense que basta ser do Rio ou estar nele para se ter as portas da edição e divulgação abertas. Há muita gente boa no eixo Rio-São Paulo que não consegue acontecer. Claro que há uma absurda concentração nesse eixo. Mas por que o Nordeste não reage, criando seus próprios meios de produção e difusão, em âmbito nacional, como faz o Rio Grande do Sul? E pergunto mais: não será que é o próprio Nordeste, numa política “for export”, que procura se vender pelo lado exótico, “Sun, sex and sea?” Quanto a mim: sou baiano e brasileiro, carioca, paulista e estrangeiro. E isto, de alguma maneira, sempre vai embasar o que escrevo.

JCTG – O Brasil continua o “arquipélago cultural”, constituído por ilhas isoladas, denunciado por Viana Moog em ensaio famoso?

AT – Sim, porém hoje é um arquipélago internetado e ligado na Rede Globo. Acabo de fazer uma longa viagem por 17 cidades, de Pirapora, em Minas Gerais, a Fortaleza. E o que vi foi um país em rascunho. Rascunhos de Miami ou sei lá o quê. Fora das capitais, não vi livraria nenhuma, em cidades até grandes ou inchadas. Mas todas elas têm casas de vídeo pornô, atulhadas de fregueses. E em todos os restaurantes se come de olho na televisão, a todo volume, catatonicamente. Em Paulo Afonso, na nossa Bahia, não consegui dormir com a barulheira das buzinas e dos sons dos rádios dos carros, a noite toda, repetindo sem parar a gravação dos gols do Flamengo, que havia ganhado um jogo… no Rio! O arquipélago está agora batendo um sorvete na testa, oligofrenicamente!

JCTG – Como um romancista regionalista vê o romance de fundamentos psicológicos? Por que nunca tentou a poesia?

AT – Meu Deus! Lá vem você de novo com essa história de regionalismo. Por que ninguém chama o Faulkner de regionalista? E ele era do Sul dos Estados Unidos… Quanto ao romance psicológico: há personagem sem fundamentos psicológicos, na era pós-Freud, pós-Dostoiévski, pós-James Joyce? Já em relação a poesia, é nela que bebo o que se chama de literariedade. Mas não me arrisco a escrever poesia, por total incapacidade. Contento-me em ser leitor dos poetas.

JCTG – Obras de ficção podem ajudar o Brasil e o mundo? No ano 2000, como um romancista deve conceber o seu real papel na sociedade?

AT – Primeiro, lemos obras de ficção pelo prazer da leitura, digamos, o prazer estético. Depois, sem que percebamos, essas obras vão nos transformando. Sim, a ficção pode levar o Brasil a se conhecer mais profundamente, já que o romance é a história secreta das nações, como dizia Balzac. O real papel de um romancista? A do intelectual de modo geral: lutar pela sobrevivência da espécie. A esta altura da peleja, chega a parecer que somos uma fauna de extinção.

JCTG – Há um grande desencanto popular hoje no Brasil com o governo FHC e com a classe política geral. Como o escritor Antônio Torres vê o drama histórico do nosso povo? Qual a atitude do escritor e jornalista diante das elites egoístas e corruptas, que gastaram milhões de dólares para eleger e manobrar candidatos? Há verdade eleitoral no Brasil?

AT – Nas minhas pesquisas para escrever Meu Querido Canibal, dei com os olhos numa carta de um vice-rei do Brasil (acho que foi Luís de Vasconcelos), que relatava para a Corte de Lisboa a sua estupefação em relação ao que Portugal havia enviado para cá: aventureiros que não vieram para construir um país, mas para se enriquecerem rapidamente, ainda que para isso tivessem que arrasar a terra. Nessa carta ele falava também da corrupção que campeava por aqui. Judiciário corrupto. Clero corrupto. Comerciantes corruptos etc. Qualquer semelhança com a atualidade… não será mera coincidência! Ou seja: a mentalidade preparatória continua. Eleição após eleição é sempre a mesma história: nosso povo acredita nos candidatos, se ilude com eles, vota neles. E o resultado é o que se sabe. Nossa atitude diante disso? Já nem sei. Denunciar faz efeito?

JCTG – Você é muito estimado pelos seus velhos amigos da Bahia, mas me disse recentemente que a imprensa baiana não lhe tem dado o relevo conferido pela de outros Estados. Responda sem deixar que o diplomata se sobreponha ao escritor.

AT – Acho, sinceramente, que a Bahia hoje está mais para o Carnaval – e o Carnaval baiano é imbatível, diga-se –, e outras manifestações da cultura popular, do que para as atividades literárias. Alguns escritores baianos, meus amigos, partilham também deste meu sentimento. Lançar livro em Salvador é decepcionante: vão aqueles velhos camaradas e só. A imprensa não dá destaque. Fica uma coisa meio perdida, no tempo e no espaço. Senti muito mais vibração, por exemplo, num salão de livro em Caiena, na Guiana Francesa, do que na Feira do Livro da Bahia.

JCTG – A literatura baiana não repercute no Rio e em São Paulo, apesar de os lançamentos se sucederem em Salvador, onde moram e trabalham grandes poetas, contistas, historiadores, pesquisadores etc. Qual a causa desse novo enigma baiano?

AT – Volto a bater na mesma tecla: você pensa que tudo o que se produz no Rio e São Paulo tem repercussão? Ledo Ivo engano. Eu mesmo sou hoje publicado, e muito bem, pela Record, uma editora que lança no mercado 30 livros por mês, um por dia! Você acha que todos vão repercutir? É uma briga de foice por espaço, na imprensa e nas livrarias. Não se esqueça que este País tem menos livrarias do que a cidade de Buenos Aires. E que o Nordeste inteiro, da Bahia ao Maranhão, representa apenas 14% das vendas de livros. Isso não enfraquece muito a posição dos autores da região? Causa-me preocupação esse atual sentimento baiano de exclusão. E me pergunto: por que uma cidade como Salvador, com todo o peso da sua tradição, toda a sua importância, e tantos criadores literários, não tem uma editora competitiva, em nível nacional?

JCTG – Defina a literatura que se escreve hoje no Brasil.

AT – Tenho andado assoberbado de trabalho, sem tempo de acompanhar o que se escreve hoje, como gostaria. Do pouco que tenho lido, gosto muito do poeta cearense Adriano Espínola, do ficcionista pernambucano Raimundo Carrero, dos baianos Ruy Espinheira Filho e Ildásio Tavares, do paulistano Bernardo Ajzenberg, do carioca de São Paulo Bernardo Carvalho. Os baianos têm o sabor do lirismo bem temperado, de fatura clássica. Os outros buscam caminhos mais cosmopolitas, de inserção na pós-modernidade. E mais não posso dizer, por falta de tempo para acompanhar.

JCTG – Ter ganhado o Prêmio Machado de Assis é sinal de que o romancista Antônio Torres já está com um pé (ou os dois) dentro da Academia Brasileira de Letras, reforçando a bancada baiana?

AT – Ganhar o Prêmio Machado de Assis deste ano 2000 foi para mim uma grande surpresa. Qual o escritor deste País que não ficará contente com um prêmio com este nome? Mas pensa em entrar para a Academia já é uma questão delicada. Prefiro não pensar nisso, por toda a delicadeza que o assunto envolve. Delicadamente, permita-me ficar por aqui.

Entrevista a Brigitte Thiérion

Rio de Janeiro, 8 de setembro de 2004

Por Brigitte THIERION
(Estudante de Letras na Universidade de Rennes, França)

Para a complementação de um estudo comparativo dos romances Meu Querido Canibal, de Antônio Torres, e Rouge Brésil, de Jean-Christophe Rufin, sob orientação da professora Rita Godet.

1) – A minha primeira pergunta diz respeito ao seu empenho em contradizer todos os sinais visíveis da História oficial. Será em nome de uma “contra-cultura”? Estaria nisso algo representativo de sua geração?

Antônio TORRES – Vamos por partes. Primeiro: os sinais visíveis da História sempre foram dados de acordo com a ótica dos vencedores, sabemos todos. Também no caso das guerras entre os portugueses e os indígenas brasileiros isso fica bastante claro. Segundo: os índios não dominavam a escrita. Logo, não escreveram, eles mesmos, a sua própria História. Tudo o que sabemos deles é através dos relatos dos brancos, ou seja, dos vencedores. Terceiro: o grande chefe Cunhambebe, o meu querido canibal, teve toda a sua história resumida em verbetes de poucas linhas e notas de pé de página.  Os historiadores em geral o trataram “como a expressão mais repelente do selvagem,” ou como o canibal “que se orgulhava de ter nas veias o sangue de mais de 5 mil inimigos, a maioria portugueses.” Ler coisas assim, e perceber, ao longo das minhas pesquisas, que ele na verdade foi o guerreiro que levou o seu povo a preferir morrer de pé, lutando, a se deixar escravizar pelos conquistadores,  me instigou bastante a transformá-lo num personagem emblemático. E nisso, radicalizei. Quer dizer: como a História oficial se encarregou de louvar os feitos dos vencedores nestas águas e florestas de sonho, som e fúria, avancei na contra-mão, numa viagem de volta ao passado, para tentar entendê-lo pelo ponto de vista dos vencidos. Essa minha tentativa de desoficialização ou revisão da História certamente traz no seu bojo os ecos da “contra-cultura,” que embasou os movimentos de contestação ao pensamento dominante, aí pelos anos de 1960, e que, sem dúvida, foi significativa para a minha geração. Em princípio, porém, o que me moveu na escritura do Meu Querido Canibal foi a convicção de ter nas mãos um grande personagem  ignorado pela História oficial. Além disso, esse personagem, o morubixaba Cunhambebe, foi o protagonista, ao lado de Aimberê (o fundador da Confederação dos Tamoios, cujo comando entregou a Cunhambebe), e outros grandes caciques, das epopéicas lutas de resistência dos “mais velhos do lugar” ao colonizador escravagista recém-chegado. Mergulhei nas pesquisas dessa história mítica e trágica cheio de afeição por esse velho povo e de indignação pela forma como ele foi exterminado, inapelavelmente. E o fiz com vontade de dar o meu grito de guerra para os historiadores: “PERÓS!”

2) – Você retoma o canibal como elemento constitutivo da identidade brasileira. Maria Cândida Ferreira de Almeida, num estudo chamado Tornar-se Outro: o Topos Canibal na Literatura Brasileira, salienta o paradoxo do imaginário brasileiro que retoma uma “auto-identificação que traz a marca da barbárie que toda nação ocidental deseja desvincular de seu povo.” Que pensa dessa afirmação? Como se define em relação ao movimento modernista?

A.T.: – Bela afirmação, essa de Maria Cândida Ferreira de Almeida. Tanto que vou procurar o seu estudo, cuja leitura em muito me enriquecerá, tenho certeza disso. Mas pergunto: quem foi mais bárbaro? O selvagem, com os seus rituais antropofágicos, ou o civilizado europeu que o exterminou, em nome de Deus e de seus interesses?  E não vejo como desvincular o canibalismo do nosso imaginário. O Modernismo dos anos de 1920 o pôs em movimento, com um sentido simbólico, a partir da famosa boutade de Oswald de Andrade – “Tupi or not tupi -,” que soou como um grito de independência dos modelos literários importados da Europa. Nos anos de 1930 surge no Brasil – e na esteira do Modernismo – um poderoso ciclo das letras que inclui no seu ideário ético e estético a libertação da escrita da norma lusitana. É então que uma linguagem brasileira, com toda a sua expressividade, de extração popular, se impõe. Estou me referindo aqui à geração de Rachel  de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rego que, aliás, teve como abridor de caminhos o José Américo de Almeida de A Bagaceira, de 1928. Em tempos relativamente recentes, Glauber Rocha iria canibalizar o cinema de Akira Kurosawa, Roberto Rossellini, o faroeste de John Ford, possivelmente também o Jean-Luc Godard; José Celso Martinez Correia faria o mesmo com o teatro europeu; Tom Jobim canibalizou o jazz e por aí vai. E como fui um garoto que amava William Faulkner e Scott Fitzgerald, vez por outra percebo que os devoro, em algumas páginas da minha modesta lavra.

3) – O peso da História parece insuperável no seu romance. O caos do presente, com a sua força opressiva, impede qualquer projeção do futuro. Em que medida o seu trabalho pode ajudar nesta construção?

A.T: – Se houve um ganho nas comemorações dos 500 anos do descobrimento, ou achamento, do Brasil, em 2000, foi esse: o despertar de um interesse maior pela nossa História. Como se de repente nós, brasileiros, parássemos para nos indagar sobre quem somos e de onde viemos. Uma outra questão fica parada no ar: para aonde iremos? E esta ainda parece irrespondível. Nosso sentimento é o de que vivemos uma realidade de violência ameaçada pelo caos. A terra continua boa e, nela, em se plantando dará tudo, tal qual preconizou Pero Vaz de Caminha, o escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral, o descobridor deste imenso país. O problema é que, mais de 500 anos depois do achamento dos portugueses, o Brasil ainda não se libertou da cobiça dos aventureiros que marcaram a sua História e nos legaram uma mentalidade predatória. Some-se a isso a voracidade antropofágica do capitalismo global, do qual o mundo se tornou refém, e temos aí um quadro inquietante, a impedir, como você diz, qualquer projeção para o futuro. No entanto, ainda acreditamos nisso: “Brasileiro, profissão: esperança.” Acreditamos no nosso potencial econômico, cultural e humano. Estou sendo utópico? “Um mapa mundi que não inclua a utopia não merece ser consultado,” é o que se lê na tumba de Oscar Wilde, num cemitério de Paris. Agora, em que medida o meu modesto trabalho pode ajudar na construção do futuro, é algo que escapa à minha avaliação. O que penso haver proposto em Meu Querido Canibal(tanto quanto em O Nobre Seqüestrador) é uma reflexão do passado para um entendimento do presente e lição para o futuro. Bem, pretensão e água benta nunca fizeram mal a ninguém, diz o povo, sábio por natureza.

4) – O Brasil e a França tiveram sempre relações privilegiadas. Sendo francesa, apreciei muito o “chauvinisme,” ou seja, a sua simpatia marcada, em contraste nítido com a sua aversão pelos colonizadores portugueses. Acha que haveria nisso um “jeito” francês (além do sexo, da farra etc)?

A.T.: – Vi com simpatia o jeito francês de lidar com os indígenas brasileiros nas primeiras décadas do século 16. De acordo com os relatos dos primeiros viajantes, era um jeito diplomático e foi marcado pelo encantamento em relação à terra e ao homem. Mas é preciso levar em conta que os interesses dos franceses, numa primeira fase, eram diferentes dos dos portugueses. Estes, vieram para ocupar o país e dominar os seus habitantes. Os franceses vieram para tratar de negócios, através dos escambos. E caíram na farra. Alguns até nem quiseram regressar à França, preferindo o sistema de vida tribal. Já no século 18, na era do ouro das Minas Gerais, a coisa muda, quando corsários como Jean-François Duclerc e René Duguay-Trouin, a serviço do rei (Luís XIV), enchem o Rio de Janeiro de medo e terror. Passado esse período aterrorizante, o Rio iria ter de novo uma presença simpática de franceses, aqueles que integraram a Missão Artística de 1816, patrocinada por D. João VI, que trouxe o Debret e o Montgny. Este chegou a formar dezenas de engenheiros e legou uma enorme contribuição à arquitetura da cidade. Ainda hoje há franceses que lembram aqueles dos primeiros tempos, sobretudo os dos serviços diplomáticos. Eles acabam criando uma relação tão sincera e intensa com a cidade, que abominam a hora de deixá-la, quando o seu tempo de permanência chega ao fim. De minha parte, convivo muito bem com os franceses, desde quando, aos 24 anos, pisei em Paris pela primeira vez. Era janeiro e eu tremia de frio numa esquina do Quartier Latin. De repente um táxi parou ao meu lado e o motorista abriu a porta. Ao entrar, ele me perguntou de que país eu era. Ao saber que se tratava de um brasileiro, ele começou a dar murros no volante do seu táxi, exclamando: “Brésil! Brésil! Pelé! O sol!” Depois, abaixou o tom da sua voz, dizendo, um tanto lamuriante, que só lamentava que eu tivesse ido do Brasil sem levar o sol. Considerei aquilo uma recepção extraordinária, que me marcaria por todo o sempre. De alguma maneira, o jeito simpático com que os franceses lidam comigo até hoje influenciou no tipo de tratamento que lhes dei, na revisão da história dos índios tupinambás. E quando falo de simpatia estou, naturalmente, incluindo a forma como você, Brigitte Thiérion, estudou este canibal das letras e a ele se dirigiu, através de um simpaticíssimo e-mail. Merci mille fois!

5) – Villegagnon foi uma personagem controvertida. Jean-Christophe Rufin empenha-se em retificar a visão histórica. Qual é o seu sentimento?

A.T.: – Minha boa amiga Solange Parvaux teve a bondade de me pôr à mesa com o Jean-Christophe Rufin, no encerramento da Expolangues de 2002. Então eu disse que nossos livros são complementares. O Rouge Brésil trata dos franceses que vieram para cá, na malfadada aventura da França Antártica. E o Meu Querido Canibal trata dos que estavam aqui – e do encontro entre esses dois povos. O que veio, dominava a escrita e deixou muita história; daí porque o livro do Rufin é gordo. O que estava aqui, não escrevia, portanto, não deixou história; da í porque o meu livro é magro. Agora, posso falar de outra diferença: o dele ganhou o Prêmio Goncourt e vendeu cerca de 1 milhão de exemplares na França, o que com toda certeza deixou o Rufin sorrindo de orelha a orelha, ao conferir os gordos extratos de sua conta bancária. E eu me contentei com o entusiasmo da crítica brasileira, um prêmio nacional, o interesse acadêmico – crescente, diga-se – e uma bela edição na Espanha, neste ano de 2004, e outra já programada em Portugal. Mas, na hora do acerto de contas, até agora só contabilizei magras tiragens, que totalizam  uns 12 mil exemplares, em 5 edições brasileiras. E isso ainda não é o pior. O trágico mesmo é que nenhuma editora francesa se interessou em publicá-lo. No entanto, o desempenho do livro, em termos mercadológicos, não chega a ser um fracasso tão grande quanto o de Villegaignon, o vice-almirante bretão que pôs o marco da cidade do Rio de Janeiro, em 1555, ao construir a fortaleza na ilha que hoje tem o seu nome, e onde ele se auto-proclamou vice-rei do Brasil. Ele fracassou em seu intento de fundar aqui uma França americana. Militar austero, empedernido, e homem perturbado, Villegagnon, nos 4 anos em que esteve no Rio, passou a maior parte do seu tempo a desgastar-se insensatamente em querelas religiosas, algumas delas levando-o a desfechos dramáticos, como o assassinato de alguns calvinistas. Deixando-se dominar por suas próprias contradições – ora agia como católico, ora como calvinista -, Villegagnon não só perdeu o controle da sua colônia de cerca de 800 homens, como levou a sua perturbação ao extremo de tratar os seus comandados barbaramente. Ele não produziu nada de útil para a França nestes trópicos. Para o Rio, fez apenas a sua primeira fortaleza, pois dela necessitava, para instalar os seus homens. A única coisa digna de nota a seu favor foi o fato de haver recebido Cunhambebe com honras de chefe de Estado, de rei do Brasil – e por 30 dias. Em resumo, o meu sentimento é este: o Cavaleiro de Malta acabou se tornando, em sua expedição ao Rio, um cavaleiro de triste figura.

6) – A intolerância e o extremismo, em parte responsáveis pelo fracasso da França Antártica, impediram o verdadeiro contato dos franceses com o Novo Mundo. Os conflitos religiosos hoje, como ontem, repetem-se a nível mundial. Como se situa o Brasil em relação a isso?

A.T. – O Brasil se situa nesse contexto de forma tolerante. Civilizada, até. Sendo a maior nação católica do mundo, aceita os que rezam por outros credos sem conflitos. Venho de um Estado, o da Bahia – duas vezes maior do que a França, e os baianos dizem isso de boca cheia -, onde o sincretismo religioso se tornou um dado exponencial da sua cultura, sobretudo no litoral. Naquela vasta região, os ritos afros fazem parte das suas manifestações culturais. Hoje, pelo país a dentro e a fora, assiste-se ao crescimento espantoso das igrejas evangélicas que, pela simplicidade de seus templos, seu assistencialismo e linguagem pragmática – que exime o capitalismo de qualquer sentimento de culpa, no sentido em que incute nos seus fiéis que ganhar dinheiro não é pecado -, tornam-se muito atraentes para as classes menos favorecidas da população. Enquanto isso, a Igreja católica tenta reagir, procurando se adaptar aos novos tempos, através de formas mais populares, digamos assim, para os seus rituais, tradicionalmente solenes, quando não suntuosos. A competição não deixa de ter o seu aspecto mercadológico, para entrarmos nas instâncias contemporâneas. Mas posso afirmar, com total convicção, que as atuais disputas pelo mercado da fé não têm conseqüências drásticas, resultando em mortos e feridos, como acontece pelo mundo, hoje, ou já aconteceu por aqui, no tempo dos índios – os sem fé, sem rei e sem lei -, de Villegagnon e das Inquisições, que no Brasil também fizeram as suas vítimas. Enfim, o que temos aqui é uma competividade religiosa pacífica. Deo gracias ! Amém!

Entrevista a Rita-Olivieri Godet – da Universidade de Rennes, França

Entrevista com Antônio Torres
Rita Olivieri-Godet (Maître de Conférences de literatura brasileira, Université Paris 8)
Paris, fevereiro de 2002

Entre janeiro e fevereiro 2002, Antônio Torres realizou uma “tournée” na França para a qual contou com o apoio financeiro do Consulado Geral da França no Rio de Janeiro. O premiado escritor brasileiro desenvolveu uma intensa atividade, proferindo palestras, debatendo sua obra com estudantes e especialistas de literatura brasileira em várias universidades francesas (Paris 8, Lille 3, Bordeaux 3, Nantes) e participando de eventos promovidos pela Association Bateau-Brésil de Lyon, com o apoio da Librairie Flammarion e do Espace Culturel Grands Voyageurs, e da mesa redonda na Expolangues organizada pela Association pour le Développement des Etudes Portugaises, brésiliennes, d’Afrique et d’Asie lusophones com a participação do escritor francês Jean-Christophe Rufin, ganhador do prêmio Goncourt 2001, além de conferências-debates na FNAC de Lille e na Librairie La Machine à Lire de Bordeaux.

Por ocasião da conferência-debate em Paris 8 sobre Essa terra e Meu querido canibal, tive oportunidade de lhe dirigir algumas perguntas que serviram de base para a realização dessa entrevista.

Rita Olivieri Godet – Em várias entrevistas você se refere à sua admiração pela obra do escritor americano William Faulkner (1897-1962). Perguntado sobre a existência de uma fórmula a seguir para se tornar um bom romancista Faulkner respondeu : « Noventa e nove por cento de talento…noventa e nove por cento de disciplina…noventa e nove por cento de trabalho. Não se deve estar nunca satisfeito com o que se faz. » Como você se situa em relação a essa fórmula ?

Antônio Torres – O velho Faulkner sabia das coisas e legou-nos uma fórmula indescartável. E foi mais longe ainda quando disse: “Você escreve um livro pensando que vai contar tudo. Depois descobre que não contou nada. Parte para o segundo achando que agora, sim, vai contar tudo. E chega ao final dele com a mesma sensação de antes. Resolve então escrever outro e assim vai, até o fim da vida, sempre achando que ainda não contou tudo.” E é exatamente nisso que está a graça do ofício de escrever. Bom, procuro seguir o exemplo dos escritores rigorosos em seus processos de trabalho. Aqueles que estão querendo sempre dar o máximo de si mesmos em cada página. Como foi o caso do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, que nunca parecia estar satisfeito com o que escrevia. A ponto de outro poeta, o português Alexandre O´Neill, dizer dele: “João Cabral me dá a impressão de estar o tempo todo afiando a ponta do lápis. A sua obsessão com a perfeição é tão grande, que vai acabar cortando as pontas dos dedos.” Mas, por favor, não pense que estou querendo aqui me comparar a estes gigantes das letras. Apenas tenho-os em boa conta e guardo muito bem guardadas as suas fórmulas, num canto escuro da alma.

R.O.G. – Até que ponto o estilo do escritor Antônio Torres é marcado por outros tipos de experiência com a escrita como o jornalismo e a publicidade ?

A.T. – O jornalismo me ensinou a ver o mundo. E a publicidade a contar isso rapidinho. A literatura é uma esponja que absorve todas as linguagens. Absorvi muito da cultura oral do sertão de onde vim, que era um mundo de contadores de histórias. E me impregnei de música, o baião, o bolero, a seresta, o samba, a bossa nova e… muito jazz! Como diria Gilberto Gil, a Bahia me deu régua e compasso. Mas o piano de Thelonious Monk me dá o ritmo das frases, enquanto o trompete de Miles Davis e o sax de John Coltrane levam o meu texto a uma certa introspecção. Em outros momentos, pego um táxi com Wolfgang Amadeus Mozart. E sonho com um concerto na catedral de Santo Estevão, em Viena d´Áustria, regido por ninguém menos que o próprio Deus, em pessoa. Mozart me leva ao delírio.

R.O.G. – Uma parte importante da sua produção romanesca baseia-se na representação literária de sua cidade natal. Quais os processos que marcam a transformação do espaço geográfico em espaço literário ? Em que medida a experiência vivida está incorporada em sua criação, num romance como Essa terra ?

A.T. – Os cenários, os rostos e as vozes da minha infância contribuíram imensamente para a formação do meu imaginário. Agora, quanto ao momento em que os espaços geográficos se transformaram em espaços literários, eu me lembro: foi numa noite, na cidade de São Paulo, quando minha mulher, a Sonia, me pediu para lhe contar uma história do meu tempo de menino. Contei-lhe. E percebi que ela ficou muito emocionada. No dia seguinte escrevi um conto, ao qual dei o título de Segundo Nego de Roseno, que hoje está num livrinho chamado Meninos, eu conto. É uma historinha singela, passada no Junco, que é hoje a cidade de Sátiro Dias, onde nasci. E foi exatamente esse conto que deu origem ao Essa Terra, que é o meu terceiro romance. Aí o Junco transformou-se definitivamente em matéria da minha memória, com todos os desdobramentos conhecidos, pelo menos para quem já me leu, como no recente O Cachorro e o Lobo. No meu caso, o vivido conta muito. Tanto que há quem pense que tudo o que escrevo é autobiográfico. Nem tanto. E o ficcionista, onde é que fica?

R.O.G. – As diferentes partes do livro « Essa terra me chama » ; « Essa terra me enxota » ; « Essa terra me enlouquece » ; « Essa terra me ama » evidenciam as relações contraditórias que se estabelecem entre a terra e os personagens. Que terra é essa ? Junco ? Alagoinhas? Feira de Santana? São Paulo ? Ou simplesmente as duas faces – a rural e a urbana – de um mesmo Brasil que exclui e condena seu povo à miséria e à morte?

A.T. – Quando estava escrevendo o Essa Terra, me lembrava o tempo todo de um hino que a professora Serafina, e a professora Teresa depois, nos faziam cantar, na escola: “Glória aos homens/ heróis dessa terra/ essa pátria querida/ que é o nosso Brasil…” E quanto mais o romance avançava, mais eu pensava em dar-lhe o título de Minha mãe não é gentil, referência irônica, ou cáustica, ao Hino Nacional. Eu me criei ouvindo hinos e recitando poemas patrióticos retumbantes. Na idade adulta, percebi que “as divinas promessas da esperança” não se cumpriram. E aí chegaram os militares com o ufanismo do “Brasil Grande.” Enquanto morriam quatro por minuto à razão de mil dólares, para citar um verso de Ferreira Gullar. Em Essa Terra tentei mostrar um país do qual não me ufano.

R.O.G. – No final do romance Essa terra, o narrador-personagem Totonhim decide refazer a trajetória do irmão Nelo, abandonar o sertão e partir para São Paulo. Poderíamos ler nessa decisão, o desenraizamento como destino trágico do sertanejo? Por outro lado, a migração nordestina não poderia também ser vista como uma forma específica dos movimentos migratórios do mundo atual ? Na pós-modernidade, o homem moderno estaria condenado a ser um errante?

A.T. – O corte epistemológico do sertão deu-se com a chegada do primeiro caminhão. Muitos endoideceram com o cheiro da gasolina. As mulheres se assanharam com o motorista e já não queriam mais saber dos homens do lugar, que viviam no cabo de uma enxada e exalavam o cheiro de suor por todos os poros. E aí aqueles homens passaram a querer ser como ele, o motorista. Foram caindo fora. Isso é para dizer que não é só a seca e as más condiçõs de vida que expulsam o sertanejo do seu sertão. Há também a sedução da civilização. Claro que existem os fatores econômicos no eixo do deslocamento. Mas a tal da civilização atrai – é preciso levar isso em conta, também. Sim, hoje vivemos num mundo de errantes. As migrações internas passaram a ultrapassar fronteiras. E, pelo visto, o fenômeno parece ser mundial. Já há quem sonhe com um mapa mundi sem fronteiras. Como se fosse uma nova utopia, no pós-tudo, inclusive das utopias.

R.O.G. – O texto híbrido de Meu querido canibal coloca de maneira radical a questão da fronteira dos gêneros ao incorporar uma diversidade de formas narrativas como o relato histórico, a crônica, o diário, a narrativa mítica, sem contudo renunciar à ficção. Inscreve-se, dessa forma, numa das tendências modernas da ficção contemporânea que questiona os seus limites pela heterogeneidade de formas e de vozes que absorve. Além de Cunhambebe um outro herói antropófago está presente no texto : o próprio narrador que se dedica a uma prática intertextual intensa. Em que medida a temática do livro determinou a escolha dessa forma de narrar ?

A.T. – O que determinou a forma de narrar do Meu Querido Canibal foi a falta de história. Ou seja: como os índios não tinham escrita, não deixaram relatos de sua existência nessa terra. E a História oficial os condenou ao esquecimento. Em anos de pesquisa, cheguei à uma conclusão óbvia: o índio é o excluído da História. Tive que me virar e encontrar o meu recorte, valendo-me de minhas estratégias de romancista. Saiu este texto híbrido, como você o define, com precisão.

R.O.G. – Meu querido canibal, já anuncia no próprio título o envolvimento afetivo do narrador com o seu personagem, o que se confirmará logo na leitura das primeiras páginas do livro. Assim, a sua versão da história, assume-se plenamente como um exercício de heroicização dos índios Tupinambás, e em particular de Cunhambebe. Ao longo da narração, o narrador indica os limites da reconstrução dos fatos históricos como sublinha o uso recorrente à palavra « presumivelmente ». O texto problematiza assim a narrativa histórica. Poderíamos inferir dessa leitura que toda narrativa histórica é uma narrativa construída ? Para o escritor Antônio Torres, a história é sempre uma ficção ?

A.T. – De uma certa maneira. Porque todo livro de História foi escrito por alguém que não deixou de dar a sua versão particular dos fatos. Quando bati os olhos num verbete que definia o Cunhambebe como “o selvagem na sua expressão mais repelente,” fiquei tentado a tratá-lo como um herói, porque era assim que o seu povo o via. Até Villegaignon, o vice-almirante bretão que fez o primeiro assentamento de europeus no Rio de Janeiro, entre os anos de 1555-1559, com seu malfadado projeto de criação de uma França Antártica nos trópicos, pois até o Cavaleiro de Malta recebeu Cunhambebe por trinta dias, com todas as pompas e honras de chefe de Estado, de rei do Brasil. Ao recuperar a legenda de grande guerreiro de Cunhambebe, eu iria problematizar as narrativas históricas que minimizaram o seu papel de líder da resistência aos colonizadores. Meu livro é uma revanche, com indignação e afeto, como já disse o poeta baiano Ruy Espinheira Filho.

R.O.G. – A organização do romance em três partes marca também, temporalidades diversas : na primeira parte – “O canibal e os cristãos” – a ação situa-se no tempo histórico do primeiro século da colonização brasileira, focalizando a disputa entre portugueses e franceses pela conquista do território que hoje corresponde à cidade do Rio de Janeiro ; a segunda parte – « No princípio Deus se chamava Monan » – transporta-nos para o tempo mítico das narrativas sobre a criação do mundo, confrontando o livro do Gênesis a uma narrativa dos índios tupinambás ; a terceira parte – « Viagem a Angra dos Reis » – situa a ação « no limiar do sexto século do descobrimento do Brasil », deslocando abruptamente o leitor para o tempo da sua contemporaneidade, estabelecendo um paralelo entre as formas atuais da violência, e aquelas que levaram ao massacre dos índios. A violência interliga as partes distintas : estaria a espécie humana condenada a auto-devorar-se ?

A.T. – Não há relato histórico que não fale de conflitos, desde a Bíblia. Caim matou Abel etc. A Europa vivia ensangüentada quando os brancos deram com os seus costados nessas bandas. E aqui também o pau comia: tupiniquim e tupinambá se entre-devoravam. Com a chegada dos europeus, o pau passou a comer mais fortemente ainda. Do quadro atual nem é preciso falar. Guerras tribais no Oriente Médio, guerras de religião, tudo como antigamente. E os Estados Unidos da América faturando a sua parte. Quando Deus disse a Noé, segundo a Escritura, “Da próxima vez, o fogo,” estaria fazendo um prenúncio da terceira guerra mundial? Estaremos condenados à auto-devoração atômica? Do tempo das cavernas aos nossos dias, o ser humano inventou coisas inimagináveis. Está na hora de inventar a paz.

R.O.G. – Na representação do embate que se trava entre duas civilizações – a ocidental e a dos índios brasileiros que, como assinala o narrador de Meu querido canibal, não sabiam que eram índios até a chegada dos brancos – o livro discute um problema crucial que é o da alteridade, denunciando as consequências dramáticas de um olhar etnocêntrico. Você acredita que a literatura possa contribuir para a construção de relações interculturais que escapem ao etnocentrismo ?

A.T. – Dizia o finado Eistein que é mais fácil destruir um átomo do que um preconceito. Penso nisso quando você toca na questão do etnocentrismo, que é preconceituoso. “Se não está no centro, é inferior.” Pelo fato de não serem brancos e viverem como viviam, os índios foram vistos pelos europeus como “bestas em forma de gente.” Quando ponho isso no papel, fico com a esperança de que o leitor reaja: “Mas que absurdo!” Essa é a utopia da arte: que poderá transformar corações e mentes. Sejemos utópicos e acreditemos nisso: que a literatura possa contribuir para a construção de relações interculturais que escapem ao etnocentrismo. Afinal, como já disse Oscar Wilde, “um mapa mundi que não inclua a utopia não merece ser consultado.”

R.O.G. – Entre franceses e portugueses que disputavam entre si a posse da terra dos índios, Meu querido canibal constrói um perfil simpático dos primeiros em oposição à imagem cruel que elabora dos colonizadores do Brasil. Que elementos fundamentam esse tipo de construção ?

A.T. – O que fundamenta a minha visão é a diferença de interesses entre uns e outros. Os franceses foram mais diplomáticos com os índios por uma razão muito simples: estavam interessados em fazer negócios e não em tomar posse da terra. Trouxeram seus espelhinhos, perfuminhos e algumas utilidades da civilização européia, para trocar pela madeira, o pau-brasil, o pau de tinta tão disputado pela indústria têxtil, especiarias, aves e suas frondosas plumagens etc. E se encantaram com a terra e o homem, principalmente com a fartura de mulheres nuas. Caíram na farra com os índios. Muitos não quiseram regressar, passando a viver no sistema de vida tribal. É preciso entender também que os portugueses demoraram 60 anos, a partir do Descobrimento do Brasil, para se interessarem pelo Rio de Janeiro, que é o cenário do meu relato. Logo, os franceses farrearam sozinhos pelo Rio e suas maravilhosas adjacências durante um bom meio século. Quando os portugueses chegaram para expulsar os franceses, tinham como objetivo maior liquidar as tribos aglutinadas na Confederação dos Tamoios. E foi uma carnificina. Mas quero deixar claro que os franceses foram mais simpáticos do que os portugueses, nas relações com os nativos, nos primeiros tempos da colonização. Quando mudaram de idéia, mais tarde, e quiseram dominar a terra, aí já foi outra história. E vomitaram fogo nas suas invasões ao Rio de Janeiro, no começo do século XVIII, em busca de ouro.

R.O.G. – Como você avalia o contato com o meio universitário, editorial e com o público em geral, durante sua estadia na França?

A.T. – Desde 1984, quando do lançamento da edição francesa do Essa Terra, que vivo pra lá e pra cá. Sempre fui muito bem recebido em Paris. Mas confesso a você que desta vez a coisa me surpreendeu. Desta vez não era só Paris: estendi meus laços também por Lille, Bordeaux, Lyon e Nantes, além de belas esticadas a Bruges, La Rochelle, Rochefort e Saint Malo. Fui tratado como um passageiro de primeira classe, tanto nas universidades, quanto nos eventos nas livrarias e outros espaços públicos. E tudo por quê? Porque uma certa baiana que é hoje Maitre de Conférences na Universidade de Paris 8, a mesma que me dirige estas perguntas, organizou tudo com uma competência que deixou os franceses de queixos caídos. Meus editores parisienses eram só sorrisos. Claro, meus livros traduzidos voltaram a vender. Obrigado, Rita Olivieri Godet. Merci mille fois!

Entrevista para Marzia Figueira

Entrevista para Marzia Figueira, para A Gazeta, Caderno Dois, Vitória (ES), domingo, 28/06/1992.

A bordo de um táxi Rio-Viena

Brasileiro “até os ossos”, ele carrega o sertão no coração aonde quer que vá. A Vitória veio para estréia do projeto Teatro do Texto, em que Paulo Betti e Luís Lima (autor da adaptação) representaram um compacto de seu Best seller, Um Táxi para Viena d’Áustria, editado em 91 pela Cia das Letras. Esta entrevista começou no saguão do hotel, continuou num táxi, mas não para Viena e sim até a Biblioteca Pública Estadual, onde terminou, minutos antes da apresentação… Antônio Torres, que vai virar biblioteca em agosto em sua terra, Sátiro Dias, na Bahia, falou desse Táxi que já foi traduzido na França e na Alemanha e espera apenas que ele suma na poeira que levantou para se dedicar a outro projeto: um romance urbano, político (e que “de certa forma” o leva de volta às origens), passado num quarto de hoje, em São Paulo. Já está praticamente pronto, dentro de sua cabeça. Mas não tem nada a ver com a viagem delirante do táxi tomado por um passageiro estranho e estressado numa das esquinas caóticas do Rio de Janeiro, onde tudo começa – e acaba.

“Um Táxi para Viena d’Áustria” é um delírio? Uma “viagem” entre aspas?

Um Táxi para Viena d’Áustria é a viagem imaginária de um homem que depois de cometer um crime entra num táxi e como está muito estressado adormece. E o rádio do táxi está tocando a Missa em Dó Maior do Mozart e é essa música que faz o passageiro delirar, ele delira ao som dessa música. E a Missa fica um contraponto para a barulheira em volta, do Rio de Janeiro, todo aquele caos urbano.

– Uma viagem no plano da fantasia…

– É, a viagem é a não-viagem, e com isso eu acredito que o livro passa é muito dos sonhos, das ilusões e desilusões de um homem do Terceiro Mundo em relação ao Primeiro Mundo.

– Essa leitura teatralizada, ou seja, no caso do projeto Teatro no Texto a transposição do romance para o palco, não muda totalmente o conceito de comunicação entre escritor e leitor? Não acha que muita gente vai preferir ver a peça a ler o livro?

– Não acredito, não. Devo dizer a você da minha emoção com esse trabalho do Luís de Lima, em que fez a adaptação do livro. Ele fez inicialmente um compacto de 30 minutos, que é o que nós vamos ver hoje na Biblioteca Estadual e é o que foi apresentado na Biblioteca Nacional. Lá foi uma coisa apoteótica, empolgante mesmo. As pessoas saíram dali correndo para comprar o livro, dentro da própria biblioteca. Então, acontece o contrário, a apresentação no palco aumenta o interesse pelo romance. Mas o maravilhoso é que o próprio Luís de Lima se interessou em fazer do Táxi uma peça de teatro. E depois dele o Stepan Nercessian me procurou, dizendo que era uma peça de teatro. E todos os diretores de cinema que conheço, e alguns que não conhecia, também me procuraram para dizer que é um filme pronto e acabado.

– Talvez porque quando se lê seu livro parece que de vez em quando você está com uma câmera na mão.

– É… A sensação que eu tive ao escrever é que tinha duas câmeras na mão. Uma estava na porta do prédio, esperando o homem descer pelas escadas para entrar no táxi. A outra câmera estava na esquina, no tumulto com a capotagem do caminhão da coca-cola. Quando o homem entrou no táxi a sensação foi de que eu jogava as duas câmeras nele, uma na cabeça e outra no coração, na alma.

– Num filme pronto, realmente. E vai sair esse filme?

– O problema é o que todos me dizem, como Geraldo Sarlo, que fez Delmiro Gouveia. Ele me disse que depois de ler o Táxi ficou muito chateado comigo por não ter dinheiro para sair correndo filmá-lo. Esse é o grande problema nacional, a falta de verba, que não precisa nem explicar. Mas só o fato de todo mundo me dizer isso já é uma coisa que me alegra muito. Cada um tem suas idéias, idéias diferentes.

– E cada leitor pode interpretar o “Táxi” à sua própria maneira, não acha?

– Acho. Eu acho que a vantagem de um livro, em principio, é essa. Como ele não é uma obra pronta, como um filme é, ou uma peça de televisão, por exemplo, ele abre muito a imaginação do leitor.

– É o livro, o leitor e sua imaginação.

– Exatamente! O leitor constrói sua própria história a partir daquela história.

– E o “Táxi” é aquele romance definitivo, enfim, que você vem buscando desde que estreou na literatura em 72 com “Um Cão Uivando para a Lua”?

– Certamente não, porque eu pretendo escrever ainda muitos livros. Mas dentro desse momento ele foi aquele que eu estava buscando.

– Quer dizer que você encontrou uma forma nova de escrever, é isso?

– Eu preciso lhe contar o seguinte: eu sonhei com a história desse livro. Uma noite eu sonhei que matava um amigo meu, um escritor, e passei a noite toda, no sonho, fugindo de táxi…

– Então o personagem, o Rosavelti, o Veltinho, é você? “Táxi” é autobiográfico?

– Deve ter muita coisa de mim, mas eu não diria que o romance seja necessariamente autobiográfico, mas eu acho que tudo que escrevo contém muito das minhas vivências, da minha experiência de vida, dos meus roteiros de viagens, do sertão da Bahia até a Europa, São Paulo, Rio, todo esse Brasil que eu já rodei muito, tudo isso aparece dentro dos meus livros. Mas, claro, eu espero ser um romancista e, portanto, alguém dotado de imaginação. E que esses referenciais todos, meu corpo-a-corpo com a vida, me sirva de material, mas um material que apenas dê o toque de partida para as minhas histórias.

– E o sonho com o “Táxi”?

– Pois, é, como eu estava contando, acordei apavorado, suado, me perguntando que violência é essa que carrego dentro de mim… Que crime é esse? Não adianta me perguntar que amigo era porque não posso contar… (Risos). Fiquei extenuado, contei para minha mulher, Sônia, comentando como fora um sonho apavorante. Só mais tarde, quando estava fazendo a barba é que me deu conta de que não era um sonho, era um romance pronto. Enquanto eu dormia, meu inconsciente trabalhava para mim.

– Foi só colocar, então, a história no papel?

– Não, ai daria só uma página. Comecei a escrever esse romance em 87, mas no meio do caminho achei que havia algo de falso nele. Eu trabalhava em propaganda e me desempreguei.

– Já virou peça, pode virar filme, foi exportado…

– Pois é, pode virar o que se quiser, é só o Brasil ter condições porque as pessoas querem fazer dele muitas coisas. Antes de sair aqui foi comprado lá fora. Já recebi as provas da tradução francesa, sai em novembro em Paris, estarei lá para o lançamento.

– Mas você acha que o “Táxi” vai ser bem recebido pelo leitor que não conhece nem vive a realidade do Brasil atual, tão amarga? Esse leitor vai entender? Tem muito leitor brasileiro que não decifra.

– Ah! A primeira carta que recebi da editora Gallimard, nada menos que a Gallimard, da Sra. Alice Raillard, conselheira editorial da Gallimard, crítica literária famosíssima, tradutora de Jorge Amado, João Ubaldo, me dizia o seguinte: “Brésilien, oui, mais contemporainement universal”… O que quer dizer que ela considera o livro muito brasileiro mas universalmente contemporâneo.

– Como traduzir o linguajar, as gírias, as frases feitas, tão tipicamente brasileiras?

– Meu amigo Henri Raillard estava no Rio quando eu estava escrevendo, acompanhou muita coisa, deu palpite, é jovem, ator, jornalista, escreve muito, tem uma vivência da linguagem moderna do Brasil, eu o escolhi para traduzir. Ele fez um trabalho perfeito, levou seis meses traduzindo, mas a reação da Gallimard diante do livro foi esta: não parece tradução, parece um livro escrito em francês! Fiquei muito feliz com isso, e se depender da tradução dele tenho certeza de que será um sucesso.

– Lá como cá… E na Alemanha?

– A tradutora alemã veio conferir algumas coisas comigo e eu lhe mostrei a cópia da tradução do Henri. Ela achou brilhante. Para a Alemanha, ela me deu uma idéia de mudar um pouco o título, que em francês ficou Un Taxi pour Vienne d’Austriche (porque na França também chamam Viena d’Áustria como em Portugal). Mas na Alemanha ela me deu uma sugestão que achei muito inteligente: mudar para Um Táxi Rio – Viena. Não ficou bonito? E dá o mesmo sentido da viagem. Essa semana eu tive duas grandes alegrias: uma foi ver as provas do Táxi em francês e a outra vou lhe mostrar. (Levanta-se e pega a edição do Essa Terra que está saindo em Israel). É uma emoção muito grande! Essa Terra saiu primeiro na França, depois na Alemanha, na Inglaterra, nos Estados Unidos e, agora sai em Israel. Um Cão Uivando para a Lua saiu na Argentina e Balada para um velha infância perdida teve uma bela edição também na Inglaterra e nos Estados Unidos.

– Como se sente como um escritor brasileiro mais conhecido no exterior do que em seu país? Ou não concorda com isso?

– Não, não concordo. Não sou mais conhecido lá fora, não. É que o Brasil é um país grande demais e isso complica muito. Mas no quadro dos escritores contemporâneos, eu me sinto muito bem no Brasil, já vendi muito livro. O Essa Terra já passou dos 100 mil exemplares.

– Você é considerado na Europa como um dos melhores escritores da América Latina, ao lado de Jorge Amado, Drummond, Graciliano Ramos, por exemplo. Mas no Brasil um crítico do Estadão disse que às vezes você “macaqueia” o estilo de Rubem Fonseca e que Táxi faz parte do “besteirol” que Kundera escancarou. O que pensa dessa opinião, e da crítica de modo geral?

– A única crítica negativa que o Táxi recebeu foi essa, do Estadão. Eu viajei o país inteiro de Passo Fundo a Manaus, a bordo desse Táxi, ganhando críticas esplendidas, no Rio, São Paulo, em todo lugar. É uma questão de opinião e com opiniões divergentes a gente aprende muito… Acho que o artista brasileiro tem uma posição um tanto infantil diante da crítica, se melindra, mas acredito que aprendo mais com críticas negativas que com críticas positivas. Entretanto, é preciso ver quando o crítico está exercendo realmente a crítica ou quando ele está tendo uma postura meramente pessoal. A crítica, para mim, está assim equacionada. Se o Táxi fosse ruim, puxa, todo mundo teria dito que era ruim, mas a maioria esmagadora aplaudiu. O livro foi capa de tudo quanto é Caderno, teve primeira página do Globo, Jornal do Brasil, de A Gazeta… Agora, para você ver como são as visões, o crítico da Folha, por exemplo, achou que meu livro era exatamente na contramão da literatura urbana que se faz hoje. Ficou até chato para mim. Imagine, na contramão de um Rubem Fonseca, de um Loyola, de um Roberto Drummond. Veja você, uma opinião completamente diversa, achando até que meu texto criticava os outros textos. Ele fez uma entrevista comigo por telefone e queria saber se eu concordava que meu trabalho era um trabalho de oposição a esses outros tipos de trabalho.

– E é?

– Claro que não. Eu respondi que não estou em briga nem em luta com meus colegas escritores contemporâneos. Eu quero mais é que eles tenham muito sucesso porque o sucesso deles me ajuda. O sucesso que não me ajuda em nada é o do Sidney Sheldon… Quando um leitor brasileiro está lendo um escritor brasileiro ele está assimilando uma dicção, uma linguagem, que é a minha, um comportamento, um texto, que é também o meu.

– A propósito de Sidney Sheldon, você disse (aqui em Vitória mesmo) uma vez que nunca leu um Best seller. Por quê? Preconceitos? Ou agora que Saramago, Rubens Fonseca, Chico Buarque e Antônio Torres entraram para a lista, você mudou e já lê Best seller? Mudou você ou mudou o público que compra livro?

– Não é isso… (Risos). É que quando a gente fala em best seller não está incluindo essa categoria de escritor. Uma coisa é um livro de qualidade que vira best seller. E aí eu acho que a Companhia das Letras mudou, num certo sentido, o gosto do público. Ela conseguiu introduzir no mercado o best seller de qualidade literária. E eu não estou contra as pessoas que entram para a lista de best seller, não é isso. É que existe uma indústria do best seller, aquela coisa que é feita quase que por computador. Bota-se uma pitada de sexo, uma pitada de espionagem…

– É uma fórmula, não?

– É uma fórmula! É uma fórmula infalível, claro. Esses caras ficaram donos do mercado. Mas no Brasil recentemente começou a surgir um outro tipo de leitor. Um leitor mais sofisticado, que começou a exigir mais.

– Como carioca que já se tornou, você esqueceu a “seca, miséria e fome”? O que ainda conserva das raízes do sertão baiano?

– Bom, eu carrego o sertão comigo onde vou e ele está sempre presente. Mesmo que eu não queira, ele me chama de volta. Agora mesmo eu virei biblioteca na terra em que nasci. Uma terra sem rádio, sem notícias das terras civilizadas, como cantava Luiz Gonzaga, o rei do baião… sei uma estantezinha, eu descobri Castro Alves, Gonçalves Dias e também Alan Kardec e Humberto de Campos… Aí chegou a professora Teresa lá e descobriu que eu gostava de ler e começou a fazer curso intensivo diário de leitura… E me botava para escrever todo dia, e em botava para ler em voz alta e até hoje adoro ler em voz alta!

– Então você devia estar no palco no lugar do Paulo Betti, dentro do “Táxi”, não acha?

– Acho que eu devo ter alguma coisa de ator, sim, por causa dessa professora… Voltando a sua pergunta, esse sertão me chama de volta, ao criar uma biblioteca pública com meu nome em Sátiro Dias. Quero aproveitar a oportunidade para fazer um apelo aos escritores do Espírito Santo para enviarem seus livros para lá. A terra é pobre, o lugar é pobre. Por isso, enviem seus livros aos cuidados do prefeito José Robério Batista, Biblioteca Pública Antônio Torres, Sátiro Dias, Bahia. O CEP é 48 485, não tem erro. Quando recebi a carta do prefeito dizendo que a escolha não tinha sido dele mas da terra, do povo, fiquei com aquele papel na mão, timbrado com o nome da biblioteca, emocionado, pensando que eu ainda não tinha idade para isso…

– Homenageado em vida, é a glória, não é não?

– E não é? Fui convidado para inauguração, vai ser dia 6 de agosto, e é claro que vou.

– Falar em idade, você ultrapassou a barreira dos 50. Em que acredita agora? Continua acreditando na Loto e na Sena, já ganhou? Na Santa Madre Igreja? E no Partido Comunista, que não existe mais?…

– Estou com 51, é uma boa idade… Não ganhei na Loto (risos) e tenho minhas religiosidades. Mas agora só acredito mesmo é no trabalho.

– E no Brasil, você acredita?

– Está difícil de acreditar. Está duro para encarar o Brasil de hoje, do jeito que está. Eu sempre me pergunto como é que um país como este, com tanta beleza, tanta terra, com tanto potencial humano e criativo, com tanto potencial econômico, pode ter chegado à situação em que está.

– A que conclusão você chegou?

– Que deram um nó no Brasil e agora não sabem desatar. Essa “yuppada” que tomou conta do poder, essa “yuppada” jeca, que só fez o caos, esses enriquecimentos rápidos que a gente está vendo aí, enquanto tudo empobrecia, num país que não é pobre, é rico. Então o que precisamos é de boa administração e honestidade.

Entrevista à Vandré Abreu e André de Lleones

Entrevista à Vandré Abreu e André de Lleones   http://www.canissapiens.blogspot.com/

Sem perder o ritmo e rumo das horas

Em entrevista exclusiva, o escritor Antônio Torres fala sobre Pelo Fundo da Agulha, seu romance recém-lançado, suas influências e a finalidade da literatura nos dias de hoje, dentre outras coisas.

Antônio Torres é um menino. Um menino nascido em 1940, no interior da Bahia. Autor de mais de uma dezena de livros, muitos dos quais traduzidos em países como Holanda, Estados Unidos, Israel, França, Itália, Bulgária e Alemanha, Torres recém-lançou Pelo Fundo da Agulha (Ed. Record, R$ 34,90). Com ele, fecha a trilogia iniciada há trinta anos com Essa Terra, já em sua vigésima edição, e que teve prosseguimento com O Cachorro e o Lobo. Nesses livros, escreve, para usar expressão de Affonso Romano de Sant’Anna, sobre o “seu Nordeste”, a sua Junco natal, da qual muitos fogem e para a qual outros tantos convergem. São romances habitados por homens partidos ao meio, divorciados de sua terra e de si mesmos. Para gente assim, muitas vezes só resta o suicídio.

Poucos escritores contemporâneos escrevem sobre temas tão complexos de forma marcante, e Antônio Torres é um deles. Com uma vantagem: mantém, “por malandragem”, um diálogo efetivo com as novas gerações de autores. Torres conversou conosco sobre este e outros assuntos de sua residência em Copacabana, no Rio de Janeiro.

“Pelo fundo da agulha” encerra uma trilogia iniciada com “Essa Terra” e “O Cachorro e o Lobo”. Quando escreveu “Essa Terra”, já tinha isso planejado? Se não, quando lhe ocorreu isso?

ANTÔNIO TORRES – Nunca tinha pensado antes em fazer desdobramentos da história do Essa Terra. A coisa começou num dia de chuva aqui em Copacabana, onde moro. Senti o cheiro da terra com as primeiras pancadas da água e me lembrei de uma canção do belga Jacques Brell, Ne me quittes pas, na qual ele canta: “Eu te oferecerei pérolas de chuvas vindas de um país onde nunca chove”. Aí me lembrei do lugar onde nasci, que antigamente se chamava Junco (hoje, cidade de Sátiro Dias), no sertão da Bahia. Lá era seco. Depois de longas estiagens, quando chovia, os homens vestiam terno branco e rolavam na lama de tanta alegria. Foi aí, com essa lembrança, que me veio a idéia de escrever O Cachorro e o Lobo, que é uma revisita ao Essa Terra 20 anos depois. Nesse livro, há uma imagem forte, de uma mãe passando a linha pelo fundo de uma agulha, sem óculos. Essa imagem viria a ser o ponto de partida para a escritura de Pelo Fundo da Agulha, que aí está, causando emoções e machucando corações.

Um dos temas desses livros é o suicídio. Em O Mito de Sísifo, Albert Camus argumenta que o suicídio é o único problema filosófico relevante. O que pensa acerca disso?

AT – Assino embaixo. Tanto que, em dado momento de Pelo Fundo da Agulha, eu reproduzo um longo trecho de O Mito de Sísifo.

Que escritores ajudaram a definir seu estilo?

AT – Meu estilo começa na infância no sertão, ou seja, na cultura popular que vem da literatura de cordel, das lendas de um povo, dos cânticos religiosos e profanos, das festas populares. Venho de um mundo de contadores de história e isso formatou meu imaginário. Quanto às influências eruditas, incluo Machado de Assis, os romancistas da chamada Geração de 30 (Jorge Amado, Graciliano Ramos etc.), e os norte-americanos, como William Faulkner, Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Truman Capote, e tudo mais, de Dostoievski ao francês Boris Vian, de James Joyce ao português José Cardoso Pires.

A esmagadora maioria das pessoas não lê ou procura apenas livros de auto-ajuda. Por que tantos ignoram ou desconhecem a grande Literatura?

AT – Outro dia fizeram uma pergunta parecida para o escritor norte-americano Gore Vidal. A questão era: “Por que os grandes autores dos Estados Unidos há muito tempo não figuram mais nas listas de best-sellers?”. Ele respondeu que literatura sempre foi mesmo para poucos, mas, no nosso tempo, os leitores de literatura estão se tornando menos ainda. No ano passado, durante uma conferência numa universidade francesa, um estudante me perguntou: “Como o senhor explica o seu país, que deu escritores como Machado de Assis, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, e até o senhor (risos), ter as listas de best-sellers que tem hoje?”. Respondi: “São as mesmas de Paris. Porque o mundo ficou igual naquilo que tem de pior. Não eram vocês que queriam derrubar o Muro de Berlim? Agora, agüentem a auto-ajuda”.

Ainda é preciso escrever? Ou a literatura, para citar Kant, é uma finalidade sem fim?

AT – Para mim, é uma razão de viver. Então, como pode ser uma atividade sem fim? Apesar de tudo, ou talvez por causa de tudo, nunca houve tantos escritores no mundo quanto hoje. E me refiro aos de literatura. Basta ver o exemplo do Brasil. A quantidade de jovens escritores que vêm surgindo, e alguns muito bons, é um espanto! Melhor assim.

O senhor é um dos poucos autores consagrados que mantém um diálogo efetivo com as novas gerações. Em que medida essa troca é importante?

AT – Para mim, é fundamental. Como dizia o poeta João Cabral de Melo Neto, “o novo infecciona o velho”. Procuro acompanhar a produção dos jovens e dialogar com eles por pura malandragem. Assim, espero, não perderei a dicção do nosso tempo. Mantenho-me atualizado com as técnicas de linguagem, maneiras de ver o mundo e de fazer literatura. Logo, não pense que é porque eu sou bonzinho que me relaciono bem com os escritores mais novos. É para não perder o ritmo e o rumo das horas.

Entrevista à Heloisa Buarque de Hollanda

Entrevista publicada no Portal Liberal www.portalliberal.com.br (dezembro de 2002)

Antônio Torres conta a Heloisa Buarque de Hollanda o caminho até seu primeiro livro, relançado trinta anos depois

Antônio Torres, um de nossos mais consagrados ficcionistas, acaba de relançar seu livro de estreia, “Um cão uivando para a lua”, de 1972. De lá para cá publicou nada menos do que 12 romances, com traduções em Cuba, Argentina, França, Alemanha, Itália, Inglaterra, Estados Unidos, Israel e Holanda, e recebeu varios prêmios, como o Chevalier des Arts et des Lettres, o Machado de Assis e o Zaffari & Bourbon. A conversa que se segue toma o rumo de juntar os fios do Brasil de hoje com a época de sua estréia literária, conhecida como os anos de chumbo, seus impasses geracionais e o boom da literatura que já se anunciava e veio à tona com insuspeito vigor por volta de 1975.

H: Por que essa reedição agora? Que ventos são esses que andam nos trazendo os Doces Bárbaros e tantos outros remakes dos tempos em que o sonho ainda não tinha acabado?

AT: Permita-me começar puxando um Freud de bolso: os sonhos só acabam quando a gente morre. Quanto aos remakes, eles estão tirando do baú do tempo produções que de alguma maneira marcaram uma época, assim os entendo. Tipo assim: “recordar é viver”. Ou um breve ato contra a ditadura do Novo! Chegou! Agora no Brasil!  No caso desta reedição, porém, trata-se da disposição da Record de reunir todos os meus cacos e com eles fazer um belo mosaico. A partir da publicação de “O cachorro e o lobo”, em 1997 – meu primeiro livro publicado lá -, essa editora vem trabalhando nesse sentido. Tanto que, de 1999 para cá, já relançou cinco dos meus títulos: “Os homens dos pés redondos”, “Balada da infância perdida”, “Essa terra”, “Um táxi para Viena d’Áustria”, e, agora, “Um cão uivando para a lua”. O fato de “Um cão…” ter feito 30 anos no finalzinho de 2002 acabou servindo de gancho para o seu relançamento, com prefácio do autor e posfácio com a fortuna crítica do livro. Com isso, a Record vem me dando um verdadeiro banho de loja, pois as edições são muito bacanas, capas bonitas etc. A empresa não está apenas publicando e republicando os meus livros. Tem um projeto para eles, obedecendo a uma programação muito bem planejada. A repaginação do acervo deste velho autor deixa-o se sentindo com pinta de quem acabou de sair da clínica do doutor Ivo Pitanguy. Agora, quero deixar claro que existe nos meios editoriais brasileiros um certo tabu de que reedição não funciona, porque o leitor brasileiro só gosta de novidade. Nos casos expostos acima, editora e autor não podem se queixar. Os resultados têm sido satisfatórios. Onde foi que erramos?

H: Esse livro reflete os anos de chumbo ou os tempos do “sufoco”, como diziam os poetas. Qual sua lembrança como artista e intelectual daquele momento? Como foi sua experiência pessoal e literária nesses anos negros?

AT: Tinha todo aquele clima (os da minha idade ainda devem se lembrar): ditadura, censura, prisões, desaparecimentos, mortes. O chumbo era de grosso calibre mesmo. Mas um ufanismo de inspiração fascista ou algo parecido tentava abafar os uivos, que eram interpretados pelos artistas – os que tinham voz e souberam usá-la -, tornando-se uma frase bíblica metáfora do protesto: “Pai, afasta de mim este cálice/ afasta de mim este cálice/ de vinho tinto de sangue”. Bom, minha experiência pessoal foi a de estar ligado nos acontecimentos como um parceiro desse tempo – era preciso estar atento e forte; não tínhamos tempo de temer a morte, cantava a Gal. À minha volta, havia os que caíam nas drogas até irem parar debaixo dos eletrochoques. Outros pegavam em armas. Por causa de um deles, que era meu amigo, acabei tendo que andar me escondendo da polícia, por um bom tempo. Foi um sufoco. Também tive amigos que se exilaram. Meu exílio foi aqui mesmo. Lendo muito. E tentando escrever.

H: A questão da loucura do personagem era também sinal dos tempos? O que seria a loucura nos anos 70 e a loucura hoje, no século XXI? Lembro que naquela época loucura era sinônimo de experiência interessante, sensibilidade, transgressão. Sentido que ficou ainda mais carregado e múltiplo com o clima sombrio da ditadura.

AT: Agora você me faz lembrar do meu primeiro analista (passei por três, dos anos 70 aos 90, pois voltava aos divãs, sempre que a barra pesava). A primeira vez foi análise em grupo, que estava na moda – e era mais barato. Quando o grupo começou a falar muito em loucura, o terapeuta disse: “Vocês não sabem o que é isso.” Naqueles anos, falava-se em loucura como quem dizia: “Me traz aí uma coca-cola.” Não deixava de haver uma certa tendência a romantizá-la, glamourizá-la. A loucura funcionava esteticamente como metáfora, creio, ou sinônimo de rebeldia. O que fosse loucão era maravilhoso: o filme, o romance, o poema, a pintura, o sujeito. Havia qualquer coisa de importado nisso (do conde de Lautréamont com seus fantásticos “Cantos de Maldoror”, escritos sob o efeito de ervas alucinógenas, aos hipsters que faziam o contraponto para os squares, antecessores dos caretas). Criativamente, a loucura sempre foi sedutora. Quanto ao personagem de “Um cão uivando para a lua”, ele surgiu a partir do impacto provocado ao me deparar com um amigo que havia sido internado como louco. Logo, o ponto de partida para a sua construção partiu de um alicerce real. Como o autor aqui estava “inserido no contexto”, como era também moda dizer-se, tentei buscar a loucura do outro (está no livro: “O universo são dois. Quero ir ao outro para ver vocês de lá.”) e introjetá-la em mim. Como se quisesse entender, afinal, onde estava a fronteira entre sanidade e loucura. Agora, o que existe de modo generalizado é a caretice, a platitude das imagens globalizadas.  Mas agora, dizemos “que loucura!” quando vemos o presidente dos Estados Unidos da América gritar “fogo, fogo!”. E quando os petardos no morro ao pé de nossas camas nos tiram o sono. Ou assustados com o fanatismo religioso e outros. Ah, quanta loucura.

H: Como foi fazer esse livro? Voce pensava em ser escritor naquela época?

AT: “Um cão uivando para a lua” começa assim: “Passei o dia todo subindo e descendo escada.” Relendo isso quando tive de fazer a revisão das provas do livro, pensei: essa frase diz muito sobre todas as minhas tentativas anteriores de escrever. Ah, quantas páginas tive que jogar na cesta do lixo antes daquele começo! Sim, claro, escrever era – e continua sendo – o meu sonho de criança. Se você, depois de brincar de esconde-esconde comigo, me perguntasse o que eu queria ser quando crescesse, a resposta viria na ponta da língua: “Castro Alves!” Tive uma professora chamada Tereza que percebeu isso e todo dia me escalava para ler um texto literário em voz alta. Depois, passava um exercício de redação, que ela chamava de composição. Era sofisticadíssima aquela professora da minha escola rural, lá no Junco – hoje Sátiro Dias -, no sertão da Bahia. Um dia aquela bendita professora pegou pesado, me pedindo para escrever sobre um dia de chuva. Como eu vivia num lugar chegado a uma seca, tive que apelar para a imaginação. Hoje, acho que ela estava mesmo querendo fazer de mim um romancista. E aí saí pelo mundo borrando papel – para o lixo. Até chegar a Lisboa. No meu primeiro dia lá (passou-se isto em 25 de junho de 1965), sentado à mesa de um café, passei a observar os homens que iam e vinham pela calçada, dando voltas no quarteirão. Achei que eles tinham os pés redondos de tanto andar em torno de si mesmos. Eureca! “Os homens dos pés redondos”. O título estava achado. Fiquei três anos em Portugal tentando achar o resto. Acabei vindo embora com apenas um título na bagagem. No regresso, em São Paulo, depois de muito batucar numa Lettera 22 – a mais fantástica máquina de escrever que o mundo foi capaz de inventar -, consegui chegar à primeira frase: “A julgar por ele, todos aqui são homens sem mulheres, porque as mães de seus filhos não contam.” Mas, e aí, como era que se fazia para continuar? Empaquei. Até o dia em que, no Rio de Janeiro, fui visitar um amigo que estava internado num hospital psiquiátrico, onde vinha sendo tratado a eletrochoques. Fiquei chocado. Desse choque nasceu o “Um cão uivando para a lua”, que foi escrito de um jato, com toda a urgência deste mundo. A minha urgência de parir um livro. Que resultou cheio de gafes literárias, pouca ou nenhuma elaboração, um texto sujo, como diz o meu filho Tiago, acrescentando: “Por isso mesmo é o seu livro de que mais gosto.”

H: Como esse livro sinalizou sua longa e definitiva trajetória, que o tornou um dos mais respeitados ficcionistas de nossa geração?

AT: Bom, tão logo cheguei ao ponto final de “Um cão…”, voltei ao outro, que empacara. E aí o teclado continuou andando, em velocidade de cruzeiro. E quando o telefone tocou e uma voz se anunciou como repórter do “Jornal do Brasil”, e disse que queria me entrevistar, pensei que era algum amigo querendo me sacanear, me passando um trote. Eu ainda não sabia que escritor dava entrevista. Depois vieram as críticas, as cartas, os livros. E aí percebi que o país estava cheio de escritores da minha idade, que adentravam a minha casa, dentro dos envelopes. Eram tantos que cheguei a pensar que, se eles comprassem os livros uns dos outros, todos viravam best-sellers. Até àquela altura, meus conhecimentos de literatura brasileira paravam em Clarice Lispector e Antônio Callado. Havia lido o “Quarup”, quando ainda morava em Portugal, onde também li Borges, Cortázar, todos os italianos do pós-guerra, os franceses e ingleses (os young angry men estavam na onda), enquanto o poeta português Alexandre O’Neill me pedia para ler o “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa, em voz alta, “por causa da oralidade do texto, da sua sonoridade”. Aliás: o O’Neill me apresentava aos seus amigos assim: “Este gajo chegou cá falando de Scott Fitzgerald, de quem cita de memória páginas e páginas. Temos que o levar a sério.” Um dia fiquei desempregado lá. Aí ele me disse: “Não precisas de emprego. Na minha casa tem um quarto para ti. Vou te trancar a pão e água, pois tudo o que tens a fazer é escrever.” Voltei a Lisboa em 1973, já com dois livros publicados. E casado com a Sonia. O O’Neill me saudou assim: “Oh pá, leste bem os norte-americanos!” Aí me lembrei do tempo em que ele lia J. D. Sallinger em voz alta. Aquilo que acabava de me dizer era um elogio, com certeza. Ah, não me fale dos norte-americanos. Malditos escritores! Eles contribuíram muito para que eu retardasse o meu começo. Porque vivia com a cabeça totalmente ocupada com as primeiras frases, as primeirs linhas, os começos deles. Eram de humilhar: “Todos estavam bêbados” (Hemingway). “Era precisamente meio-dia nesse domingo quando o xerife chegou à cadeia com o Lucas Beauchamp embora toda a cidade (e todo o conselho, para falar a verdade) já soubesse desde a véspera que o Lucas havia matado um branco” (Faulkner). “Havia um homem e um cão também desta vez. Duas feras, considerando-se Old Ben, o urso, e dois homens, contando-se Boon Hogganbeck, em cujas veias corria um pouco do sangue que corria em Sam Fathers, embora a linhagem de Boon fosse plebéia e apenas Old Ben e o mestiço Leão fossem puros e incorrupitíveis” (idem). “Imagine uma manhã no fim de novembro. A chegada de uma manhã de inverno há mais de vinte anos. Pense na cozinha de um velho casarão numa cidade do interior. A peça principal é um grande fogão preto; mas há também uma ampla mesa redonda e uma lareira com duas cadeiras de balanço em frente. Exatamente hoje a lareira começou seu rugido sazonal” (Truman Capote). “Começa-se com um personagem e, antes de se dar conta, descobre-se que se criou um tipo; começa-se com um tipo e descobre-se que não se criou coisa nenhuma” (Scott Fitzgerald). E mais os outros, daqui e d’alhures. Guimarães Rosa: “… era uma viagem inventada no feliz.” Juan Rulfo: “Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia o meu pai, um tal de Pedro Páramo.” Albert Camus: “Hoje, minha mãe morreu.” E chega. “Esqueça os outros”, dizia-me Alexandre O’Neill. “Escreva, pá, escreva. Depois os críticos vão descobrir com quem te pareces.” E não deu outra. É, doutora Heloisa: demorei a começar. Depois que o teclado pegou o embalo, escrevi o primeiro livro num jato, como já disse. Porque tinha pressa em chegar ao segundo. (Atenção! Esta frase aí está me soando a Borges, em “O fim”. Também pudera. Já li esse conto dele mais de 30 vezes. E em voz alta). O terceiro livro veio devagar. Houve quem o classificasse de maduro. Fiquei preocupado. Fruto maduro cai da árvore. Depois apodrece. Temeridades à parte, a (presumível) maturidade literária não veio só com o tempo e o fazer e refazer. A crítica teve sua (digamos, inestimável) parcela de contribuição. Porque prestei mais atenção nas restrições do que nos elogios. Se tive algum crescimento ao longo dessa trajetória, se deve também a isso. Ou principalmente foi isso. Mas já que o motivo desta entrevista é a minha estréia nas letras, há 30 anos, termino dizendo que tenho uma saudade danada do tempo em que vivia escrevendo sem saber que existia vida literária, com seus padrões, regras, jogos de poder, panelas, cascas de banana, uma tremenda mão-de-obra. Mas acho entrevista um barato. Me faz pensar, refletir. Conferência também: é uma maneira de fazer da fala uma extensão da escrita. Ou de escrever em voz alta.

H: Diz aqui em primeira mão: qual seu próximo projeto????

AT: Um romance que tem como personagem principal René Duguay-Trouin (o corsário de Luiz XIV, o Rei Sol), que em 1711 fez o primeiro seqüestro do Rio de Janeiro – o da própria cidade, que tomou como refém durante os 50 dias em que esperava o pagamento do resgate, para devolvê-la a seus habitantes. Foi uma loucura! Venho pesquisando isso desde 1998, quando estive pela primeira vez em Saint-Malo, na França, a terra natal de Duguay-Trouin e fortaleza dos corsários. Voltei lá em fevereiro de 2002, e fui também a La Rochelle, de onde ele partiu com 17 navios e quase 6 mil homens para arrasar o Rio e pegar todo o ouro que aqui era embarcado para Portugal. Em La Rochelle passei um dia inteiro com um historiador chamado Laurent Vidal, diretor do Espaço do Novo Mundo, que marcou encontro às nove da manhã no Aquário da Marinha. Cheguei pontualmente, levado por uma tropa da Universidade Michel de Montagne, de Bordeaux. Para começo de conversa ele me deu uma revista na qual acabava de publicar um ensaio sobre a invasão francesa ao Rio de Janeiro, com a seguinte dedicatória: “Na esperança de que você escreva um ótimo romance sobre esse assunto.” Como esse historiador havia lido o “Meu querido canibal”, isso facilitou o papo. Nem precisei lhe dar maiores explicações sobre o meu projeto. Durante aquele dia falamos de Duguay-Trouin o tempo todo. Ele me ajudou muito a ajustar a alça de mira. Já estou na metade do livro e com contrato assinado com a Record. Se o teclado continuar correndo bem, poderá ser publicado em 2003. Por fim, mas não por último: ao escrever um livrinho sobre o Centro do Rio, para a coleção Cantos do Rio (Rioarte-Relume-Dumará), me encantei com a história desta cidade, que tem personagens fascinantes, como o Cunhambebe, o meu querido canibal, e o Duguay-Trouin, o audaz corsário.