Entrevista a Zora Seljan

Jornal de Letras – Número 91,  março de 2006
Entrevista a Zora Seljan

O Romancista Antônio Torres e a conquista de uma linguagem

Romancista posterior à onda maior do romance nordestino dos anos 30 do século passado, retratou Antônio Torres um Nordeste diferente, embora ainda firme na ação de sua gente. Seus personagens representam um Brasil que mudou, de modo que seu domínio da narrativa se insere com perfeição da linha ficcional de um tempo também novo. Sua entrevista revela a consciência desse domínio.

ZS: Entre Um cão uivando para a Lua, seu primeiro romance, e O Nobre Seqüestrador, como desenvolveu seu conceito de romance como obra de arte?

AT: Permita-me, querida Zora, começar indo mais longe no tempo. Se o Dom Quixote, de Cervantes, que teve sua primeira parte publicada há quatrocentos anos, foi “o primeiro verdadeiro romance da literatura universal”, digamos que o gênero surgiu para desestabilizar as certezas humanas, no entrechoque da fantasia com a realidade, fazendo-nos duvidar das verdades absolutas. Chegou à sua era de ouro no século XIX. Basta lembrar alguns casos exemplares dessa era: Dostoiévsky, Tolstói, Flaubert, Eça de Queiroz, Machado de Assis. Foi então que outro destes gigantes, Honoré de Balzac, conceituou o romance à perfeição. “É preciso desfolhar toda a vida social para ser um verdadeiro romancista” – escreveu ele, acrescentando: “Porque o romance é a história secreta das noções.”

No século XX, caberia a James Joyce quebrar a sua estrutura linear, ao enveredar por labirínticas experimentações, com mergulhos nos fluxos de consciência, estes explorados à exaustão também por William Faulkner, o fundador de um território mítico que abarcaria as águas do Mississipi, no qual confluiu o São Francisco do nosso Guimarães Rosa. Eles eram parentes. E bem próximos. O meu conceito? Para mim, o romance é uma espécie de baralho, com todos os naipes, que você pode embaralhar do jeito que quiser, mas no fim todas as cartas têm de estar lá. Ou seja, no fim, tem de ter começo, meio e fim. E literatura, em qualquer dos seus gêneros, se resume à conquista da linguagem e ao domínio do estilo. È o seu destino inescapável.

ZS: O Nordeste de seu Essa Terra mudou muito depois desse romance. E tendo sido de 1997 a retomada da cidade como chão da narrativa, em O Cachorro e o Lobo, terá havido novas mudanças, depois disto?

AT: Preciso voltar à terra do Essa Terra – um livro de 1976 –, para ver se existem novas mudanças. O que, aliás, é meu projeto para este ano. Mesmo à distância, soube de uma que pôs o lugar na linha de fogo da contemporaneidade. Em O cachorro e o lobo – que é o Essa terra revisitado, vinte anos depois –, descrevo o primeiro assalto acontecido lá. Era pura ficção. Logo após a sua publicação, recebi a notícia de que o assalto ficcional se tornara realidade. Foi à agência local do Banco do Brasil. E com muita violência. Algumas coisas mudaram para melhor, sem dúvida – nas comunicações à distância, transportes, saúde e educação. Outras, para pior, com certeza. Como a perda da velha e boa sociabilidade, do tempo em que não havia televisão

ZS: Como vê a ficção nordestina (de José Lins do Rego, Graciliano ramos, Jorge de Lima e Antônio Torres) no contexto geral do romance brasileiro?

AT: Fico muito honrado por você me pôr no rastro desta linhagem. Mas não nos esqueçamos do pai de todos: José Américo de Almeida. Foi o próprio Jorge, o Amado, quem um dia me disse isso sobre o Zé Américo. Os escritores do ciclo nordestino formaram uma tropa de choque que deu ao romance brasileiro expressão nacional. Alguns deles o levaram ao mundo, com Jorge Amado, o capitão de longo curso das nossas letras, comandando a navegação. Todos eles me deram régua e compasso, para lembrar o verso memorável de Gilberto Gil em “Aquele Abraço”. Talvez para as atuais exigências da crítica literária – sobretudo a crítica universitária –, eles, aqueles poderosos romancistas do Nordeste, tenham mais significação pelo seu ideário ético do que pelo estético, com exceção de Graciliano e Jorge de Lima, que parecem cada vez mais firmes nas duas pontas do processo.

ZS: Como vê a literatura brasileira, e a ficção em particular, neste sexto ano de um novo milênio?

AT: Vejo muita gente talentosa entrando em cena, se destacando pela agilidade técnica. Tendência: foco nos transes urbanos, tendo ao fundo as pegadas de Rubem Fonseca, principalmente no Rio de Janeiro, mas também entre novos autores de São Paulo, onde são bem notórias as influências de escritores norte-americanos que estiveram na moda em tempos relativamente recentes. Refiro-me a Charles Bukowski e John Fante. Ressalva-se que algumas moças já conseguiram se desgarrar das mãos de Clarice Lispector. E prestemos atenção a dois ficcionistas fora desse eixo: Miguel Sanches Neto, do Paraná, e Raimundo  Carrero, de Pernambuco. E se não cito mais nomes é para não transformar esta resposta numa espécie de lista telefônica.

ZS: Que ficcionista estrangeiro considera representativo do nosso tempo?

AT: Pergunta difícil de responder, não é, não? Meu coração balança entre três. Um europeu, o Zé Saramago, um sul-americano, Gabriel García Márquez, e o norte-americano Norman Mailer. Eles representam o que ainda existe de escritor como figura pública. Quem sabe serão os últimos?

ZS: Os sonhos mudam. Em entrevista de quase dez anos, foi um. Qual vem a ser o seu sonho no momento?

         AT: O mesmo de um personagem de William Sorayan, em Um dia no crepúsculo do mundo, que tudo que esperava da vida era poder pagar as suas contas.

ZS: Que livro está escrevendo neste 2006?

AT: Outro romance. Mas se eu lhe contar de que se trata, minha mente dará por escrito e ele ficará empacado. Sábios são os mineiros, que trabalham em silêncio.

ZS: O que representou para você ganhar o Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto da sua obra, a mais alta láurea da Academia Brasileira de Letras, no ano de 2000?

AT: O Prêmio Machado de Assis representou um inesperado reconhecimento, pois se trata, sem dúvidas, da conquista da mais alta láurea que um escritor brasileiro pode almejar, no seu país. O meu sentimento foi o de que toda a minha luta com as palavras não havia sido em vão. A emoção se tornaria ainda maior durante a cerimônia de entrega do prêmio, na ABL, pela forma extremamente afetuosa com que os acadêmicos me receberam.

ZS: Em 2001, com seu romance Meu querido canibal, que retrata a vida do líder tupinambá Cunhambebe, o mais temido e adorado guerreiro indígena, você ganhou, também, o Prêmio Zaffari & Bourbon, promovido pela 9ª Jornada Nacional de literatura, de Passo Fundo. O que sentiu?

AT: Eu tinha sido convidado para participar do evento, com palestrante. Poucos dias antes de partir, li no Globo que o Canibal estava entre os dez finalistas. A matéria era ilustrada por duas fotos: a minha e a do acadêmico e senador José Sarney. Cá com o meu senso sertanejo de realidade, achei que ele ia levar o prêmio, por tudo que representa nas letras e na vida pública. Chegando lá, me puxaram para uma das primeiras filas. Quase 5 mil pessoas a postos no auditório. No palco, discursos. Do governador do estado, do prefeito de Passo Fundo, do reitor da Universidade, da professora Tânia Rösing, a organizadora das Jornadas Literárias. E eu com um frio na espinha. Finalmente, chega o grande momento. “O Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de 2001 vai para… (Tchan-tchan-tchan!): Nür na escuridão, de Salim Miguel e… Meu querido canibal…” Câmeras e microfones nas nossas caras. A primeira pergunta veio na minha direção: “O que você achou da divisão do prêmio?” Respondi, na bucha: “Não houve divisão. Foi uma soma para a literatura brasileira.” E isso pipocou nos noticiários televisivos daquela noite e virou manchete na imprensa gaúcha, no dia seguinte. Pronto, eis que senti e ainda sinto. Não é bom poder somar?