Agora ele era o herói

(Conferência proferida no seminário “Da Chegada da Família Real à República no Brasil”, realizado no Sesc-Iracema, de Fortaleza, Ceará, em 12/05/08).

Não corram tanto! Assim vão pensar que estamos fugindo…

A voz que fazia esse apelo era a de quem menos se poderia esperar prudência em circunstâncias tão dramáticas. Tratava-se de uma pobre demente, que voltava a respirar o ar das ruas, depois de 16 anos de reclusão. Mas, se ainda lhe restava lucidez para temer a repercussão daquela correria, faltava-lhe a percepção da sua imperiosa necessidade. A cidade estava na iminência de ser invadida por um exército inimigo tão poderoso, que podia reduzi-la a cacos.

Impossível reconstituir imaginariamente tal cena sem um bocadinho de ternura. Dentro de um coche a toda velocidade, D. Maria I emerge das profundezas de sua alienação preocupada com a imagem pública que a família real ia deixar. “Não corram tanto! Assim vão pensar que estamos fugindo…” Coitada! Mal sabia o que a aguardava, e à sua numerosa corte, no cais do porto. Loucura mesmo era aquilo. Gritaria. Apupos. Empurrões. Cenas dilacerantes. Muita gente querendo embarcar à força. Senhoras distintas se atiravam na água, tentando alcançar botes que as transportassem para bordo dos navios de guerra – já abarrotados de fidalgos – e se afogavam. O filho de dona Maria, Dom João Carlos de Bragança, o Príncipe Regente – que mais tarde seria coroado rei como D. João VI – disfarçou-se de fugitivo anônimo, ao chegar num carro fechado e sem o libré da corte, para escapar das hostilidades de uma população indignada. Não teve ninguém a recebê-lo, protocolarmente. Como chovia muito, só não patinhou na lama, ao atravessar o charco sobre pranchas mal postas, porque foi sustentado por dois cabos da polícia.

Coube à duquesa de Abrantes descrever os acontecimentos como um “estado de frenesi popular”. Com a palavra, a duquesa: “O muito nobre e sempre leal povo de Lisboa, não podia familiarizar-se com a idéia da saída d’El-Rei para os Domínios Ultramarinos… Vagando tumultuariamente pelas praças, e ruas, sem acreditar o mesmo, que via, desafogava em lágrimas, e imprecações a opressão dolorosa, que lhe abafava na arca do peito o coração inchado de suspirar: tudo para ele era horror; tudo mágoa; tudo saudade; e aquele nobre caráter de sofrimento, em que tanto tem alçado acima dos outros povos, quase degenerava em desesperação”.

Esse breve relato é de uma testemunha ocular da história. E por ele pode-se deduzir que aos excluídos das embarcações pouco importava se o que estava em causa era uma estratégia para a salvação de um reino, muito bem sucedida, o que, finalmente, já se reconhece, ao reavaliar-se de forma menos emocionalizada o que antes era tido como uma fuga, e havido como uma decisão covarde de um príncipe regente frouxo, pusilânime, bufão.

Nessa reavaliação, gastam-se muito papel e tinta em cadernos especiais dos jornais, revistas e livros que vão para as listas de best-sellers; lotam-se os auditórios das universidades, da Academia Brasileira de Letras, dos espaços culturais os mais variados; dobram os sinos, rufam os tambores e o plim-plim da Rede Globo. Em meio a isso tudo, um historiador chamado Jurandir Malerba, autor de A corte no exílio, em longo artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo de 6 de abril último, fez as seguintes reflexões:

“Numa época como a nossa, em que tudo, até mesmo a história e a identidade coletiva de um povo, virou mercadoria, não é de estranhar o estardalhaço mercadológico em torno da efeméride. Da noite para o dia, ilustres desconhecidos tornam-se celebridades e posam de sábios e eruditos; leitores de meia dúzia de livros se acotovelam para ‘entrar no debate’; publicações de qualidade suspeitíssima ganham espaço na mídia. Uns se apropriam do fato como guardiões da história; outros vaticinam contra ela, acusando os abusos e as manipulações da memória” etc, etc, etc, até ele próprio admitir que a transferência da corte e do império ultramarino portugueses sempre foi alvo de interpelações apaixonadas. E propõe que nós, os leitores de meia dúzia de livros sobre o assunto, façamos um dever de casa, respondendo às seguintes perguntas:

Essa transferência terá sido uma fuga ou uma sábia decisão do regente? Foi atropelada ou “um alvitre amadurecido”? Qual o tamanho da comitiva? D. João foi um hábil estadista ou um tolo manipulado por seus homens de Estado? A vinda da corte acelerou ou protelou a independência do Brasil na era das revoluções? Foi benéfica para o Brasil ao garantir a sua integridade territorial – a América hispânica se esfacelou em pequenas repúblicas – ou foi prejudicial ao induzir a uma transição conservadora e centralizadora? Quais suas eventuais marcas na sociedade e no Estado que se construíram no Brasil ao longo do século 19 e mesmo depois?

Por mais conhecidos que sejam os antecedentes dessa história, permitam-me recorrer a eles em busca de elementos que possam ajudar nas respostas pelo menos de parte das perguntas aqui propostas.

Tudo começou quando os ingleses e os franceses ambicionaram repartir o mundo entre si, nos primórdios do século 19. Como cada lado pretendia mais capital e mais mercado, as disputas os empurraram para a guerra. A Inglaterra impôs um bloqueio marítimo à França, e esta revidou com o bloqueio continental que deixava o Reino Unido isolado e proibido de comerciar com a Europa dominada pelo imperador francês, Napoleão Bonaparte. Ilhado, o comércio inglês só podia se expandir através de Portugal, dono de um caminho marítimo para o continente americano.

Naquele grave momento europeu, o príncipe regente D. João (que governava Portugal desde 1792, em virtude da enfermidade mental da sua mãe, D. Maria I), tentava uma neutralidade impossível no conflito das duas potências. Unida à Espanha, a França tinha as mesmas ambições da Inglaterra. E invadiu Portugal em novembro de 1807. Sem condições de enfrentar as tropas napoleônicas, D. João não teve outra saída senão se valer do plano inglês de transferir a sede da monarquia portuguesa para o Brasil, numa esquadra escoltada pela marinha britânica. Não nos esqueçamos que por trás de tudo estava uma guerra mercadológica. Logo, a escolta não seria nenhum gesto magnânimo de uma velha aliada. Portugal se comprometia a dar plena liberdade comercial aos ingleses, mas regateando para não ceder a todas as exigências deles, como as de tarifas alfandegárias irrisórias. Exige-se de cá, barganha-se de lá, o certo é que o acordo foi fechado ao soar do gongo, no dia 29 do mesmo mês de novembro daquele mesmíssimo ano de 1807. E então, ao amanhecer do dia seguinte, quando o exército de Napoleão Bonaparte, comandado pelo general Andoche Junot, entrou em Lisboa, só avistou as últimas velas dos barcos portugueses sumindo na linha do horizonte, levando uma nobreza que em poucas horas saqueara os cofres, e embarcara com milhões de cruzados em ouro e diamantes e mais da metade do dinheiro em circulação no país. Imaginem a cara dos que ficaram lá, a ver navios.

Depois de suportar todas as pressões da França e da Inglaterra, as traições dentro de seu próprio governo, e as tensões no cais do porto, D. João partiu debaixo de um temporal. O seu navio, o Príncipe Real, carregava cerca de mil passageiros, ou mais, que se amontoavam em total desconforto, com muita gente tendo de dormir no tombadilho. E o pior de tudo: poucos víveres a bordo. D. João, porém, se manteve calmo durante toda a viagem, como se dissesse a si mesmo, o tempo todo, que o pior já havia passado.

Alguns dias depois da partida, um temporal dispersou o comboio formado por cerca de 40 navios, que conduziam milhares de refugiados. No dia 22 de janeiro de 1808 – portanto, depois de quase dois meses de viagem -, D. João aportou em Salvador, com parte da esquadra, sendo recebido festivamente pelo povo baiano, tendo à frente o conde da Ponte, governador e capitão-geral da Bahia.

Os primeiros dias do príncipe em Salvador foram de júbilo e reivindicações. Motivos de queixas não faltavam contra a administração portuguesa em nosso país. O Brasil-Colônia sofria com a opressão dos monopólios, as proibições e os impostos, que tinham estagnado o comércio, impedido o desenvolvimento da agricultura e destruído o espírito de iniciativa. A insatisfação com o vulto dos encargos e restrições já havia levado à Inconfidência Mineira, quando se discutia a possibilidade da independência do Brasil, mirando-se no exemplo dos Estados Unidos. E isso não fazia muito tempo. Como sabemos todos, a Conjuração em Minas Gerais resultou no enforcamento de Tiradentes, em 21 de abril de 1792. Em 28 de janeiro de 1808, por sugestão do futuro visconde de Cairu, José da Silva Lisboa, o governador da Bahia conseguiu que D. João decretasse a abertura dos portos brasileiros às nações amigas, “a benefício do Comércio e Agricultura, que tanto desejo promover”.

A Carta Régia firmada por D. João em Salvador, além de inaugurar sua regência itinerante, tinha um duplo alcance: ao mesmo tempo em que atendia a uma solicitação local, honrava o seu compromisso de permitir total liberdade comercial aos ingleses em todo o território brasileiro. Em pleno bloqueio continental na Europa, a abertura dos portos às nações amigas era uma figura de retórica, pois beneficiava unicamente a singularíssima Inglaterra.

A comitiva real ainda se encontrava na Bahia quando os comerciantes locais enviaram ao príncipe uma representação, pedindo-lhe que não permitisse que os ingleses se estabelecessem com casas de negócios nos domínios do Brasil, para não os prejudicar. Os termos do documento:

“O Comércio para ser igual deve ser gênero por gênero, mas ele é vantajoso para aquela Nação que tira algum numerário. Os ingleses não querem comércio igual; querem tirar dele toda a vantagem, recebendo ainda menos de um milhão em gêneros quando introduzem dez em fazenda, querendo tudo o mais em ouro. A Nação que contribui depaupera-se e quando passa um século a riqueza fruto da Indústria Nacional foge toda para a Inglaterra e a vantagem está de sua parte”.

E assim, entre festividades e reivindicações, D. João não teve pressa em deixar a Bahia, para o desgosto de sua mulher, dona Carlota Joaquina, que detestou a cidade, por achar que ela tinha negros demais. Em relação à demora do príncipe na Bahia, bem mais aceitável foi a apreensão do grupo que se desgarrou do restante da esquadra que aportou em Salvador, e, durante mais de um mês, ficou a bordo no porto do Rio, à espera de notícias tranqüilizadoras. Maior ainda foi o tempo de ansiedade da capital do país, que no dia 14 de janeiro de 1808 entrou em grande alvoroço, com a chegada de um brigue de guerra chamado Voador, trazendo a boa nova de que toda a corte portuguesa podia a qualquer momento singrar nas águas da Guanabara.

Então a pacata cidade do Rio de Janeiro, com apenas 50 mil habitantes, agitou-se. Não era para menos. Afinal, ela ia receber os mais augustos hóspedes de toda a sua história. Mas como acomodar, confortavelmente, tão ilustres figuras, e que, de acordo com as informações recebidas, vinham acompanhadas de numerosíssima corte?

Foi aí que o último vice-rei do Rio de Janeiro, Dom Marcos de Noronha e Brito, o conde dos Arcos, pôs toda a sua capacidade administrativa à prova. Para começar, decidiu que a família real ficaria hospedada no palácio que era a sede do governo e sua residência (e hoje é o Paço Imperial, na Praça XV, de frente para a rua Primeiro de Março). Ele, o conde dos Arcos, removeu dali o Tribunal da Relação e a Casa da Moeda, mandando fazer reparos em todo o edifício, com enriquecimento da ornamentação interna e a substituição do mobiliário.

Na seqüência de suas iniciativas, enviou mensageiros a São Paulo e Minas Gerais, não só para levarem a novidade, mas também para conseguirem mantimentos e outras utilidades. A demora de D. João na Bahia acabou sendo benéfica para o Rio, que teve mais tempo para preparar-lhe uma recepção retumbante, com pomposas luminárias, coretos engalanados, e uma alegoria com um monumental retrato do príncipe sendo homenageado por um índio. O desembarque festivo da família real e sua corte aconteceu no dia 8 de março. Mas já na véspera, a população da cidade se apinhou nos altos dos morros para aguardar o instante em que a esquadra lusa atravessasse a barra. No dia seguinte, todos acorreram em delírio ao cais e se deslumbraram logo ao primeiro olhar para aquelas personagens metidas em roupagens tão luxuosas que pareciam divinas. Suas Altezas pisaram em terra aos pés de um altar levantado para as bênçãos do Chantre (o cantor litúrgico) da cidade, solenemente rodeado pelo cabido da catedral. Depois do desembarque triunfal, D. João e seu séquito adentraram a cidade em magnífico cortejo, ao som de sinos e salvas entre alas de militares e sobre um chão juncado de folhas e de flores. O desfile seguiu pela rua Direita (hoje Primeiro de Março) até a igreja da Sé, na rua do Rosário, onde se celebraram grandes cerimônias religiosas e o príncipe e a princesa concederam o primeiro beija-mão real no Rio de Janeiro.

O que surpreendeu a todos, porém, foi o tamanho da corte, calculada em mais de 15 mil pessoas. Gente demais para uma cidadezinha ainda modesta, cujo perímetro urbano continha apenas 75 logradouros públicos, sendo eles de 46 ruas, 4 travessas, 6 becos e 19 campos ou largos. Espantado com as proporções da imigração da nobreza e seus acólitos que ele teria de alojar, D. Marcos de Noronha, o conde dos Arcos, providenciou rapidamente a anexação ao palácio dos vice-reis dos dois edifícios maiores que ficavam mais próximos: a Cadeia e o Convento do Carmo, onde, no pavimento mais nobre, foram instalados os aposentos de D. Maria I, a Rainha Louca, que ali passou os últimos anos de sua triste vida, que expirou no dia 20 de março de 1816.

Continuemos na questão crucial para o Rio de Janeiro, à chegada da corte, assim definida por Gastão Cruls: “Se a família real trazia nas suas arcas muitos milhões de cruzados em valores públicos e privados, se muitos fidalgos não se tinham separado de mobiliário e de alfaias, se as repartições se transferiam acompanhadas do respectivo papelório, se íamos ter biblioteca e tipografia, maior ainda o embaraço para dar alojamento a tudo isso”.

A desocupação compulsória de muitas residências em benefício dos fidalgos portugueses trouxe sobressalto aos proprietários e inquilinos, que logo viam pregado a uma de suas portas um sumário edital do governo, com as iniciais P. R. (de Príncipe Regente), que a maledicência popular dizia ser a abreviatura de “ponha-se na rua”. Pois era para a rua mesmo que os antigos moradores tinham de ir, de mala e cuia, à procura de um lugar para encostar a carcaça, longe da fidalguia. Tanto transtorno acabou por provocar a necessidade de se intensificar a construção civil, para moradias e repartições públicas.

Enquanto isso, o reino se instalava, provocando no país uma revolução administrativa sem precedentes em toda a sua história, que já chegava aos 308 anos. Mais que depressa, foram criadas repartições civis, militares, judiciais e eclesiásticas destinadas aos órgãos governamentais de profundas e seculares raízes na cidade de Lisboa. E assim se invertia a estrutura orgânica na relação entre a metrópole e a sua principal colônia. O Império português passava a ter o seu comando no Brasil. Os primeiros decretos de impacto assinados por D. João, aqui, foram, sem dúvida, o da abertura dos portos – que apesar do favorecimento à Inglaterra, viria a incrementar a navegação com os Estados Unidos da América e com as principais nações da Europa -, e a revogação, em 1º. de abril de 1808, do alvará de 5 de janeiro de 1785, que proibira a instalação de indústrias e manufaturas em nosso país, exceção feita à construção naval, que sempre fora estimulada pelos reis de Portugal desde o século XVI. Bem a propósito, escreveu o padre Luís Gonçalves dos Santos (Padre “Perereca”), em suas Memórias para Servir ao Reino do Brasil: “Se na cidade da Bahia, o Príncipe Regente Nosso Senhor, pela sua memorável carta régia de 28 de janeiro lançou a primeira pedra fundamental no alicerce do grande Império que veio criar no Brasil, pela concessão da franqueza do comércio, nesta Corte do Rio de Janeiro pôs a segunda pedra fundamental pelo alvará de 1º. de abril, permitindo aos brasileiros toda e qualquer qualidade de indústria”.

Até a chegada de D. João, a Colônia vivia na maior carência. Sem indústria própria, dependia do que Portugal podia e queria lhe abastecer. Faltava tudo por aqui. Não havia sequer copos, tesouras e talhares para todos. Com a abertura dos portos, a Inglaterra, desconhecendo totalmente o nosso clima, enviou para cá um carregamento de patins para a neve, fogões para calefação interna, bacias de cobre para aquecimento de camas, e grossos cobertores. O mais incrível é que nada foi devolvido. Compraram tudo. As bacias foram aproveitadas como escumadeiras nos engenhos de açúcar; as lâminas de patins transformaram-se em trincos de porta, facas e até ferraduras; os cobertores de lã seguiram para as zonas de mineração, onde seriam usados para reter as partículas de ouro nas águas dos rios. Ao serem informados das necessidades brasileiras, os ingleses passaram a enviar tecidos de Manchester, porcelanas, ferro, chumbo, cobre, zinco, pólvora, queijos, manteiga, cerveja. E quando o comércio com os franceses passou a ser permitido, estes nos enviaram jóias, móveis, velas de cera, medicamentos, relógios, licores, e, principalmente, artigos de toalete, coisas da moda, quinquilharias finas, todos os perfumes de Paris.

Conquanto sejam por demais conhecidos os benefícios que D. João trouxe ao país, não custa nada rememorar suas principais contribuições para o nosso processo civilizatório, como a Biblioteca Nacional, com mais de 14 mil livros, além dos documentos salvos do terremoto de Lisboa, em 1755; a nossa primeira instituição de ensino superior, a Escola Naval, criada por D. Maria I, à semelhança da Escola Naval Britânica; a Impressão Régia, de cujos prelos sairia, em 10 de setembro de 1808, o primeiro número da Gazeta do Rio de Janeiro, um pequeno jornal que publicava na última página o movimento de chegada e partida de navios no porto do Rio; o Jardim Botânico; o Banco do Brasil; A Escola de Astronomia; a elevação do Brasil a Reino Unido a Portugal e Algarves, em 1815; a promoção da vinda da Missão Artística Francesa, em 1816; a inauguração da Praça do Comércio, em 1820, que deu origem à Associação Comercial do Rio de Janeiro.

Com a morte de D. Maria I, em 1816, ele viria a ser aclamado rei, o que, no entanto, só aconteceria em 1818, pelos seguintes motivos: 1º. – seu desejo de observar o luto de 10 meses; 2º. – a campanha militar luso-brasileira no Sul, contra os uruguaios; 3º. – a revolução de Pernambuco, em 1817; 4º. – conspiração em Portugal. Na aclamação, os comerciantes do Rio de Janeiro o saudaram como o Libertador do Comércio. Ele se sentia satisfeito pela decisão tomada naquele tumultuoso mês de novembro de 1807. No Brasil, era olhado com uma ternura que não tinha em casa, nem no seu país. Dona Carlota Joaquina, porém, não escondia o seu ódio aos brasileiros. E traía o marido cada vez mais. Ela não parava quieta em lugar algum. Nem acompanhava D. João, que vivia entre o Paço de São Cristóvão, onde passou a morar, e o Paço da Cidade, que deixara de ser a sua residência, por ele não suportar o barulho do comércio e dos cascos dos cavalos na rua Direita, durante o dia, e das bebedeiras e batuques noturnos na quitanda dos escravos. Se, em Portugal, D. João era um comodista, capaz de ficar quase um ano sem sair do palácio de Mafra, o que ia lhe valendo a fama de doido, no Rio ele se tornou um andarilho. No seu roteiro de passeios, estavam a Chácara de Botafogo, o Jardim Botânico – onde lhe construíram até uma casinhola -, a Ilha do Governador – ali se hospedando com os monges beneditinos -, a Ilha de Bom Jesus – a convite dos frades franciscanos -, a Ilha de Paquetá – na qual dispunha de uma casa particular -, a Fazenda de Santa Cruz.

Em A Pequena-Grande História de D. João, texto de apoio a uma peça teatral que escreveu para o Teatro A Barraca no ano de 1979, o dramaturgo português Helder Costa lhe reputa “uma vida trágica, de uma teatralidade Shakespeariana”. E traça-lhe um perfil irretocável: “A loucura da mãe empurra-o para o trono, o casamento com Carlota Joaquina para a infelicidade, a diplomacia internacional para o compromisso, a hesitação, a indefinição. O Brasil será o Paraíso onde o Rei irá descansar. Longe do campo de batalha em que se transformou a Europa, sente-se tranqüilo e seguro, próspero e compensado. Mas em Portugal, o povo agita-se e derrota o ditador inglês. Em pânico, as velhas famílias recordam-se do seu país de origem, das terras e dos palácios abandonados, e obrigam o Rei a voltar. Para que tudo regresse à ordem, para que o país não caia em excessos”.

Ele regressou a Lisboa em 1821, deixando em seu lugar o filho Pedro, que no ano seguinte iria reger a independência do Brasil. Junto com a comitiva real, seguiu, em suntuoso sarcófago, o corpo de D. Maria I (“Não corram tanto! Vão pensar que estamos fugindo…”), que esperou 5 anos para ser levado à sua última morada, uma sepultura no Convento do Coração de Jesus, o reino do silêncio que a soberana havia fundado, e de cujo trono loucura alguma a destituiria mais.

D. João VI morreu em 1826… envenenado! Final da história, nas exatas palavras de Helder Costa: “Morreram também o médico, o cirurgião e o cozinheiro. Para não ficar testemunha”.

Se, por um lado, D. João VI é reconhecido como um vulto excepcional da História do Brasil, à qual deu um grande impulso, por outro nunca se livrou inteiramente do estigma de fujão, covarde, feio, apalermado, sovina, ridículo, mal-amanhado em suas vestes remendadas, curto de inteligência, precário de caráter, filho de mãe demente, um porco que devorava 9 frangos por dia, estraçalhados à mão, jogando os ossos ao chão; e que não tomou um único banho nos 13 anos que reinou no Brasil. E chifrudo, ainda por cima. Ave Maria, Majestade! Mas consolai-vos. Enquanto o mundo girou e a lusitana rodou, vossa alteza agora era o herói. Alvíssaras, pois, pois.