Leitura e história em Hans Staden: diálogos entre culturas no Sítio

Trabalho apresentado no II Enllij/ UESB – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, na cidade de Jequié, em 2 de maio de 2008.

A leitura

Um livro de Monteiro Lobato, no qual, em seus serões no Sítio do Picapau Amarelo, Dona Benta conta aos netos Narizinho e Pedrinho as aventuras de Hans Staden, o alemão que um dia, no ano de 1547, saiu de casa, na pequena cidade de Homberg, no estado de Hessen, “para ver o mundo, viajar, cortar os mares”. No seu caminho estavam as cidades de Bremen, ainda na Alemanha, Campon, na Holanda, Setúbal e Lisboa, em Portugal, onde esperava embarcar rumo às Índias. Não encontrando navio em tal direção, engajou-se como artilheiro em outro, que estava de partida para o Brasil, com quarenta marinheiros. Depois de oitenta e oito dias de mar, eles chegaram a Pernambuco, colônia governada por Duarte Coelho, que pediu ao capitão do navio recém-chegado que o ajudasse, com os seus homens, a deter uma revolta dos nativos.

(Vejamos como Dona Benta explica aos seus netinhos os motivos dessa revolta:

-… Os colonos haviam capturado e escravizado alguns selvagens. A raça vermelha, ou índia, nunca suportou a escravidão. Preferia a morte, e se não fosse a ganância dos brancos, quer portugueses, quer espanhóis, ganância que os levou a insistir na escravidão dos índios, não teria havido nas Américas os horrores que houve).

Como viajava a serviço de Portugal, logo ao chegar à terra brasileira, o alemão teve que virar caçador de índios, e ajudar os colonos portugueses de Pernambuco a derrotá-los, depois de mais de um mês de batalhas. Aliás, nessa viagem não faltou campo de treinamento de guerra a Hans Staden. Pra cá e pra lá, houve muito tiroteio, nas caças a navios corsários, entre eles um de contrabandistas franceses de pau-brasil. Mas, batalha dura mesmo foi a do regresso a Lisboa, com 108 dias de calmaria. Os mantimentos escassearam e todos os marinheiros passaram fome. Para evitar a morte, tiveram de comer um carregamento de couro de cabrito que traziam a bordo. Só puderam tirar a barriga da miséria quando piratearam um barco inimigo, carregado de farinha, vinho e outras iguarias.

(Ao ser contado por Dona Benta, esse episódio suscitou o seguinte comentário do seu neto Pedrinho:

– Que boa vida! – exclamou o menino. – Bem diz vovó que a história da humanidade é uma pirataria sem fim…

Ao que Dona Benta respondeu:

– Infelizmente é verdade, meu filho. Com este ou aquele disfarce de pretexto, o mais forte tem sempre razão e vai pilhando o mais fraco.

Narizinho entrou na conversa:

– É a fábula do lobo e do cordeiro… lembrou a menina).

Bem, Hans Staden voltou a Lisboa são e salvo, depois de 16 meses de viagem. Descansou por uns tempos, já pensando em ir mais longe. Em 1549, ele partiu de Sevilha com uns espanhóis que queriam chegar ao Rio da Prata, e de lá seguir até o Peru, de onde esperavam voltar cobertos de ouro. O navio espanhol naufragou nas proximidades de uma praia chamada Itanhaém, no litoral de São Paulo, quando tentavam alcançar São Vicente. Todos se salvaram, a nado. Hans Staden resolveu ficar por ali, vindo a ser contratado pelos portugueses para combater os indígenas que lhes eram hostis. Em 1554, foi capturado e feito prisioneiro dos tupinambás por nove meses, sob o terror de ser devorado pelos temíveis canibais.

Para Monteiro Lobato, as memórias de Hans Staden representavam o melhor documento daquela época (século XVI), quanto aos costumes e mentalidade dos índios. Em vista disso, dizia ele, dona Benta não poderia deixar de contá-las aos seus queridos netos – como não poderiam as outras avós e mães deixar de repeti-las aos netos e filhos. E acrescentou: “Para facilitar-lhes a tarefa damos a público este apanhado, em linguagem bem simples, no qual seguimos fielmente a obra original”.

Lobato achava também que as aventuras de Hans Staden se equivaliam às de Robinson Crusoé, do livro de Defoe, que chegou a se tornar talvez o mais popular do mundo, graças exatamente às suas muitas adaptações para crianças, “remoçadas no estilo, de acordo com os tempos”. Foi o que ele fez em As aventuras de Hans Staden: uma adaptação com linguagem atualizada, emparelhando-as às de Robinson Crusoé em pitoresco, interesse humano e lição de moral. Sem se falar na capacidade de fabulação que ele emprestou à sua narradora de sempre, que bastava se sentar numa velha cadeirinha de pernas surradas para pôr as crianças à roda, cada uma mais interessada do que a outra em ouvi-la. E tome perguntas. Com paciência de avô, dona Benta dá verdadeiras aulas de português, história, geografia etc. Explica as divergências entre tupinambás e tupiniquins, e as dos portugueses com os franceses, trazendo para o Sítio do Picapau Amarelo os choques entre povos de culturas diferentes. E tudo com o poder de sedução da velha e boa contadora de histórias.

Numa nota biográfica sobre Monteiro Lobato lê-se que ele fez de dona Benta o personagem adulto que aceita a imaginação criadora das crianças, admitindo as novidades que vão modificando o mundo. E que seus personagens infantis são crianças abertas a tudo, querendo ser felizes, confrontando suas experiências com o que os mais velhos dizem, mas sempre acreditando no futuro. E nisso, acrescentemos agora, ele estabelecia um diálogo entre gerações. E também com o remoto passado, como em As aventuras de Hans Staden.

A história por trás do livro que Lobato reescreveu

No ano de 1557 era publicado na Alemanha um relato que instantaneamente causou um grande estardalhaço. Título: Descrição verdadeira de um país de selvagens nus, ferozes e canibais, situado no novo mundo América, desconhecido na terra de Hessen antes e depois do nascimento de Cristo, até que, há dois anos, Hans Staden de Homberg, em Hessen, por sua própria experiência, os conheceu e agora publica, aumentada e melhorada diligentemente pela segunda vez. Ou seja: a capa do livro era um resumo da obra, assombrosa, para os padrões da época. Foi um arraso, comparável ao que Hans Staden presenciou, ao ver o grande guerreiro Cunhambebe comandar uma batalha dos tupinambás contra os tupiniquins, concluindo que caíra nas mãos de um gênio militar. E o chamou de “chefe supremo”. Foi sua salvação. Naquele ano de 1554, o mais temido, respeitado e odiado dos morubixabas andava com a vaidade à flor da pele, por ter sido o cacique escolhido unanimemente para chefiar a Confederação dos Tamoios, que uniu várias tribos amigas e inimigas num só exército, de São Vicente a Cabo Frio. Por que Confederação dos Tamoios? Porque significava a união dos mais velhos do lugar (tamoio quer dizer isso), que viria a dar combates sem trégua aos invasores dos territórios indígenas, que amarelavam quando o grito de guerra de Cunhambebe fazia a terra tremer. PERÓS! Maneira de ele dizer: Ferozes. Era o que dizia dos portugueses, que também chamava de traiçoeiros e covardes. Vingava-se esfregando as mãos, lambendo os beiços e arregalando os olhos diante de um pedaço de português pronto para ser degustado, de preferência um braço e os dedos das mãos.

Quando foi apanhado, Hans Staden lutava com os tupiniquins, aliados dos portugueses, portanto inimigos dos tupinambás e de todos os confederados. Cunhambebe pensou que ele fosse português, o que o condenava à execução. O alemão insistia em dizer que era francês, pois sabia da aliança dos franceses com os nativos, contra os portugueses. Tenha sido pelo exercício da dúvida, ou pela lisonja, o certo é que Cunhambebe desistiu de devorá-lo, dando-o de presente a um cacique de uma aldeia amiga. O que não significou o fim do apavoramento de Hans Staden, que rezava o tempo todo. Conforme narrou em seu livro, Deus ouvia suas preces e o socorria, detendo tempestades, que tanto apavoravam os índios. Por suas graças recebidas dos céus, ia tendo o seu sacrifício protelado. Acabou escapando de ser o personagem principal de um ritual antropofágico, para contar a história. O episódio do seu embarque num navio francês é simplesmente eletrizante, envolvendo artimanha, diplomacia, sangue-frio.

Mesmo sendo considerada fantasiosa demais – logo, não tão verdadeira assim -, essa história provocou pesadelos nos seus leitores, que se viam digeridos por seres demoníacos, a lhes chuparem os ossos até o tutano. Nas peripécias de Hans Staden, não faltavam ação, suspense, perigo, exotismo, azares, golpes de sorte e… milagres! Foi, portanto, com essa infalível receita de best-seller, que surgiu numa pequena cidade chamada Marpurgo, a primeira edição do primeiro livro sobre o Brasil, cuja existência, conforme se lia no próprio título, os alemães desconheciam, ainda que a cobiça por novos mundos já tivesse tomado conta da Europa, sob a capa da sedução da aventura nos mares (“nunca dantes navegados”), que levavam às riquezas desconhecidas em terras e ilhas distantes. Tal avidez havia se intensificado já nos inícios das grandes navegações, a partir de uma carta do navegante florentino Américo Vespúcio, publicada em Paris como um folheto, em fins de 1503 ou inícios de 1504. Nessa carta, endereçada ao financista de Florença Lorenzo di Pierfrancesco dei Médici, seu patrão e amigo, a quem chamava de “magnífico”, Vespúcio relatava a viagem que fizera em 1501-1502 às “novas regiões que – por mando desse sereníssimo rei de Portugal, às suas custas e com sua frota – procuramos e encontramos, às quais é lícito chamar de Novo Mundo, porque nenhuma delas era conhecida dos maiores; porque é coisa novíssima para todos que ouvira [falar] delas…” Fechemos as aspas para lembrar que ele estava a reportar-se à expedição lusitana às costas brasileiras, no ano seguinte à de Pedro Álvares Cabral, numa longa jornada comandada por Gonçalo Coelho, que resultou nos batismos do Cabo de São Roque, no Rio Grande do Norte, Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, Baía de Todos os Santos, Rio de Janeiro, Angra dos Reis, Santos e São Vicente, dali seguindo até a Patagônia. O Novo Mundo descrito por Américo Vespúcio dava asas à imaginação do velho continente: era sem rei nem lei, com uma população imensa, impressionável pela sua total liberdade de costumes – social e moral -, pois desconhecia o pecado; todos viviam como saíam do ventre materno, em despudorada libidinagem, entregando-se perdidamente aos excessos amorosos; doença era raridade – e facilmente curável, com ervas; vivia-se 150 anos, caso não se morresse antes, nas guerras tribais; os homens eram fisicamente perfeitos e as mulheres formosíssimas, inclusive “nas partes que não podem honestamente ser nomeadas”; além disso, os homens podiam possuir quantas mulheres desejassem; e elas, em sua luxúria que excedia a imaginação humana, inventavam artifícios que tornavam o ato do amor mais excitante. Acrescentemos a isso as referências aos rituais canibalísticos e imaginemos o impacto causado aos corações e mentes do Velho Mundo.

Lida avidamente, a carta de Vespúcio contabilizou em pouco tempo vinte e cinco edições em latim, italiano, alemão, holandês e tcheco. Esse sucesso retumbante foi esquentado por uma edição em Veneza, quando apareceu na capa, pela primeira vez, o título Novus Mundus. A sua repercussão se tornou mais espetacular ainda quando um editor de Augsburgo, em uma cartada genial, inseriu ilustrações que amplificaram o interesse pelo documento. E depois vieram outras cartas, algumas tidas como falsas, o que pouco importava. Àquela altura, o navegante florentino já tinha se tornado a personagem mais lendária dos descobrimentos.

Para além do seu alcance popular, os escritos de Américo Vespúcio viriam a ter influência na construção teórica do estado natural do homem, iniciada pelo humanismo filosófico do século XVI. Foram lidos por Michel de Montaigne, Erasmo de Roterddam, Thomas Morus, Rabelais, Nicolau Maquiavel – e também por Leonardo da Vinci e Boticelli. E empanaram a aura heróica de Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral. Tanto quanto o brilho do escrivão da frota de Cabral, Pero Vaz de Caminha, autor da carta a el-rei Dom Manuel, datada de primeiro de maio de 1500, que o tempo consagraria como a certidão de nascimento do Brasil, e também como uma crônica admirável, pela riqueza de informações sobre a terra, que lhe pareceu bela e rica, e seus habitantes, que descreveu como se os pintasse: “A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar as vergonhas; e nisto têm tanta inocência quanto em mostrar o rosto”, Caminha escreveu, daqui da Bahia, dali, de Porto Seguro. Com tanta agudeza de percepções, por que sua carta, e a de Colombo, não repercutiram tanto quanto a de Américo Vespúcio?

No caso do genovês, provavelmente por ele não haver localizado corretamente as Antilhas caribenhas aonde os ventos o levaram. Situou-as no Oriente, ou seja, na cobiçada Índia, chamando os seus habitantes de índios, designação que se tornaria comum a todos os povos do continente. Mesmo tendo garantido haver entre eles homens que nasciam providos de rabo, como os macacos, a carta de Colombo não produziu uma fascinação comparável às aventuras de Marco Pólo, no século XIII, nem às do seu contemporâneo Américo Vespúcio.

Quanto à carta de Caminha, passou em branco. Nem sequer foi aberta por Dom Manuel I, que a largou sobre um móvel, onde não despertou a curiosidade de ninguém, durante muito tempo. Deveu-se isto à política do sigilo de Portugal, em decorrência de sua rivalidade com a Espanha, que vigiava todos os seus projetos marítimos, através de um bem montado serviço de espionagem. Mas, pelo visto, Américo Vespúcio não se via obrigado a silenciar sobre suas idas e vindas nos caminhos marítimos dos portugueses, os quais seguira menos a mando de D. Manuel I e mais a convite de um banqueiro seu compatriota chamado Bartolomeu Marchionni, que vivia em Lisboa. Personalista, sedento de fama, nada o deteria em sua busca de notoriedade. Tanto que passou por cima de Colombo, Cabral, Caminha e Gonçalo Coelho – de quem era comandado e ao qual jamais fez a menor referência – e acabou patenteando para si próprio o que chamou de “a quarta parte do mundo”, que a partir de então passaria, pelos séculos afora, a ser a América do Américo, apenas por haver escrito uma carta na qual batizou um continente, e com ela, e mais algumas outras prováveis ou improváveis, se tornou o mais lido cronista dos descobrimentos, deixando a Europa aturdida ao ver que havia no mundo um outro rosto além do seu. Um rosto selvagem, porém belo, com uma boca que comia carne humana, para se refazer das energias gastas nas batalhas. Pois assim vivia o velho povo do Novo Mundo: em festa ou em guerra.

Marinheiro que pegou o barco quando as grandes navegações já haviam avançado em mais de 40 anos, Hans Staden não se destinava à lenda dos navegantes epopéicos. Era um anônimo em busca de horizontes fora do limitado Velho Mundo. Entre as aventuras transatlânticas e as desventuras de um naufrágio e da vida de prisioneiro sob a ameaça de ser devorado pelos canibais, sentiu na pele o que os outros escritores viajantes viram apenas de passagem. Por isso ele fez o relato mais impressionante daquela época, que teve numerosas edições em alemão, flamengo, latim, inglês e francês. Mas só apareceria em língua portuguesa no finzinho do século XIX, no quarto volume da revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Para Lobato, com o passar do tempo o livro de Hans Staden se tornara incompreensível e indigesto, só interessando aos eruditos. Daí, conforme suas próprias palavras, ele, o criador do Sítio do Picapau Amarelo, o haver traduzido em linguagem acessível às crianças, “em harmonia moderna, troante com o gosto do momento”, para o encanto e espanto dos meninos de antigamente, entre os quais se incluía este que vos fala.