Uma Salvador sem farofa e sem dendê

(Conferência proferida na Fundação Casa de Jorge Amado, em 15 de maio de 2003, na abertura do curso A cidade de Salvador na literatura).

Situação geográfica privilegiada. Topografia acidentada. Uma história que começa nos anos 500 e segue pelas ruas – nas ruas que ainda mantêm as marcas da sua origem. 365 igrejas, uma para cada dia do ano. O passado europeu. Sincretismo religioso. O presente africano. Sacra e profana. Festeira o ano inteiro. Popular e erudita. Usos e costumes peculiares. Sete cores em sua cor. E todos os seus caminhos dão no mar.

Foi com imagens assim, tipo exportação, que Salvador se tornou uma das cidades mais sedutoras do planeta.

Sim, não há como negar que ela tem sido uma fonte inesgotável de inspiração para poetas, prosadores, pintores, escultores, dramaturgos, cineastas, compositores. Teve um até que fez uma das músicas mais tocadas e cantadas do país, sem nunca ter posto os pés aqui, ao que dizem. Trata-se do mineiro Ari Barroso, o autor de Na Baixa do Sapateiro. Quem não se lembra?

Na literatura, a sua imagem está indissoluvelmente ligada aos cenários e à galeria de tipos humanos criados por Jorge Amado, que tanto encantaram o mundo, como sabemos todos. Jorge Amado! Aquele que fez do regional, nacional. E do particular, universal. Quem não sabe?

Mas, na contemporaneidade, quais são os seus pintores? E como os novos ficcionistas baianos estão pintando e bordando esta cidade?

Ora, é possível que, quando a maioria deles nasceu, Salvador já não era mais a doce província do tempo dos seus pais, aqueles que andavam de bonde sem maiores atropelos. Quando se deram por gente, perceberam que eram pedestres cheios de temor em meio a “uma realidade de violência ameaçada pelo caos,” para usar uma expressão do nosso Hélio Pólvora sobre o Brasil das últimas décadas. Sua explosão demográfica instaura a instabilidade no percurso de seus habitantes, provoca o redesenhamento da urbe, amplifica o desnivelamento social, cria novas tensões, tudo a se refletir nas cores com que os pintores irão esboçar os seus quadros. Há algo de novo na paisagem. Se a moldura da cidade continua reconhecível, o que está dentro dela terá que ser visto com outros olhos.

Vocês poderão contra-argumentar que este palestrante não mora aqui e portanto não sabe o que está dizendo.

Antes de continuarmos, é bom deixar claro que o exposto acima é o resultado de impressões de leitura das reileituras da cidade através do olhar de seus escritores, na atualidade. E também que não pretendemos estabelecer um confronto entre o que se escreveu no passado, tendo Salvador como cenário, e os textos dos contemporâneos. Não se trata de comparação ou juízo de valor. A literatura que antecede à que iremos destacar tornou-se patrimônio da cidade e do país. A que prossegue, ainda está em processo. Se terá progresso, só o futuro poderá responder.

O presente, porém, indica que as novas pulsações da cidade estão sendo captadas, por exemplo, pela prosa de um autor como Ildásio Tavares. Por uma questão de ajuste ao seu argumento, porém, este palestrante tecerá algumas considerações em torno de um ficcionista mais novo do que Ildásio Tavares e ele próprio, o Aramis Ribeiro Costa, e dos novíssimos Carlos Ribeiro e Jean Wyllys.

Comecemos por Aramis Ribeiro Costa, que descreve à perfeição o que Salvador representa no imaginário do próprio estado da Bahia, ou seja, qual é a sua imagem para consumo interno, em A história de Joselita, a segunda novela do seu livro O fogo dos infernos, publicado em 2002 pela Editora Iluminuras, de São Paulo. É um caso exemplar.

Vejamos:

“Joselita só não era igual às outras meninas da roça porque tinha um sonho: morar na Bahia. A Bahia, para ela, era a cidade grande das compridas avenidas, dos largos e das ladeiras, dos bondes, dos ônibus, dos lotações e dos automóveis, dos elegantes magazines, do Elevador Lacerda, dos cinemas e da Rua Chile. Era a cidade das festas de largo, do Carnaval dos carros alegóricos, dos homens ricos e bonitos que podiam gostar dela. Era a capital. Salvador. Mas que, para Joselita e os da roça, a perdida rocinha entranhada nos matos, perto de Saubara, era a Bahia.”

Esta história, que começa com o sonho de Cinderela de uma pobrezinha tabaroa, termina de forma cruel.

Foram as imagens sedutoras da festeira, consumista, divertida, rica, civilizada Salvador que fizeram a interiorana Joselita sonhar em mudar de vida, desde o dia em que uma boa senhora mostrou uns postais da cidade para a menina franzina vendedora de legumes e verduras. Por um golpe da sorte, aquela santa senhora iria receber uma carta de uma sobrinha que morava na capital, pedindo-lhe uma babá. Pronto, estava selado o destino de Joselita, que iria embarcar na sua “viagem inventada no feliz,” como o menino do conto de João Guimarães Rosa, As margens da alegria. Afinal, ela estava realizando o maior dos seus desejos: trocar a solidão da roça pela animação da cidade grande. O que ela ainda não sabia: que estava trocando um mundo de feições reconhecíveis por um outro, no qual seria apenas mais um rosto na multidão. Na capital, Joselita verá o seu sonho se transformar em pesadelo. Pior: chafurdará nas profundas de um inferno que a levará à loucura. Não lhes contarei o final. É trágico mesmo. E de altíssima voltagem literária.

Já nas primeiras linhas desta novela de Aramis Ribeiro Costa o leitor aqui se reviu, lá na roça onde nasceu. Na verdade, primeiro ouviu ao longe a voz do seu pai, que sempre acordava cantando, no caminho entre o seu quarto e a cozinha, onde começava o seu dia fazendo um café, antes de ir tirar o leite das vacas, no curral bem ao lado da casa. Uma das músicas que ele gostava de cantar começava assim:

“Bahia,
quem pintou tua aquarela,
eu vi farofa amarela,
vatapá e cangerê…”

A novela do Aramis fez também com que este leitor se lembrasse das tantas vezes em que o seu pai lhe contava e recontava a história de uma epopéica viagem à Bahia, para pagar uma promessa ao Senhor do Bonfim: sete léguas a cavalo do povoado do Junco até a sede do município, a cidade de Inhambupe; a longa espera por um transporte motorizado de Inhambupe para Alagoinhas; o trem de Alagoinhas para Salvador, onde quis apenas achar a igreja do Bonfim, entrar nela tirando o chapéu, se ajoelhar, rezar e ir embora. Com a vagareza dos transportes e o tempo perdido nas baldeações, levou sete dias para vir e voltar. Contando o seguinte:

– De sete em sete léguas cheguei lá. E vi que a cidade tem sete léguas de ruas. É tão grande que é como ir daqui a Inhambupe. Lá, é como na guerra, onde filho chora e pai não vê.

O filho dele iria vê-la pela primeira vez aos 15 anos, trazido por um tio. Vieram num trem tão bonito que todos chamavam de Marta Rocha. Saltaram na estação da Calçada, pegaram um ônibus para a praça Cayru, subiram para a Cidade Alta pelo Elevador Lacerda, depois entraram num lotação e saltaram no Farol da Barra, cara a cara com o mar. Imagine o deslumbramento. Era uma tarde de sereias ao sol. O rapazola interiorano já não sabia o que mais o estonteava: se a imensidão das águas com suas ondas de espumas flutuantes, a luminosidade às vezes azulada, às vezes esverdeada, de franzir os olhos, ou a esplêndida visão de uma beldade em trajes sumários. Era como se acabasse de adentrar o paraíso. E lá estava Eva, quase como viera ao mundo. Um pouquinho mais recatada, talvez por temor de um novo castigo de Deus. Ainda assim, aos olhos de um capiau, aquela Eva de maiô era de provocar desmaios.

E a partir de então, como a Joselita da história de Aramis Ribeiro Costa, ele passaria a sonhar em viver na capital. Onde só aos dezenove anos viria a morar. Instalou-se num cubículo da rua João de Deus, a dois ou três passos do Terreiro de Jesus. O prédio tinha uma plaquinha na porta: “Família.” Em frente dele, havia um cabaré com uma vitrola que toda noite tocava a música da Dolores Sierra, a que havia nascido na roça e sonhava em viver na cidade e agora morava em Barcelona, na beira do cais.

Ele também, o rapazola interiorano recém-chegado à capital, foi parar na beira do cais. Mas como repórter de setor do Jornal da Bahia. Quis a sorte que o seu destino fosse diferente do das Joselitas e Dolores Sierras. E chega de reminiscências.

Bahia: olha só como o contista Carlos Ribeiro está pintando a tua aquarela:

“Dez horas da noite. Marcos espera o ônibus no ponto próximo ao Clube do Bahia, na Boca do Rio. Horário ruim aquele para Marcos esperar o ônibus. Você sabe, Salvador não é mais aquela cidadezinha provinciana dos anos 60/70. Somente no último final de semana, nada mais, nada menos que 12 coletivos foram assaltados. Em um deles, o cobrador foi morto com um tiro na cara. Em outro, um tiroteio entre os assaltantes e um policial civil resultou em 7 pessoas feridas, incluindo um bebê e uma anciã que saltou do veículo em movimento, quebrando as duas pernas e sofrendo rachaduras na bacia. Outra mulher, mais gorda, ficou entalada na janela e só pôde ser libertada cinco horas mais tarde, graças à ajuda de um maçarico.

Só rindo, pensa Marcos. O diabo é que, em muitas dessas tragédias cotidianas, há quase sempre uma nota humorística que torna a coisa toda inverossímil: anciãos que encontram forças para saltar de um ônibus em movimento, maridos que fogem às pressas deixando mulheres e filhos para trás, gente correndo para um lado, gente gritando para o outro, uns se espremendo em janelas, outros se esbarrando em cercas, outros ainda metendo os pés em poças de lama. Só rindo.”

Isto é só o começo de um conto intitulado O assalto, esquete noturno de uma Salvador em bad trip, no sentido literal da expressão. Está no livro O visitante noturno, publicado em 2000 pela Empresa Gráfica da Bahia. Já pelo título podemos prever que essa não será uma história de fritar bolinhos. Aqui são os passageiros dos ônibus urbanos, em trânsito ou parados nos pontos, que são fritados. Como um cego no meio do tiroteio, um deles, chamado Marcos, chega a ter vontade de rir, diante da violência banalizada, que o deixa à beira da imbecilização.

Vencedor, em 1988, do concurso de contos da Academia de Letras da Bahia, Carlos Ribeiro é um dos mais talentosos representantes da geração 90, marcadamente de contistas. A maior concentração de nomes dessa geração parece estar em São Paulo. Entre o baiano que escreveu O assalto e o paulista Marçal Aquino, autor do livro Faroestes e do roteiro do filme O invasor, há algo em comum: a visão das suas cidades sem utopias. O personagem de Carlos Ribeiro pensa nos políticos como “um monte de bosta, que não faz nada de concreto para melhorar a vida do povo.” E pensa em si mesmo “como um pária.” E assim marcha a cidade na literatura: dominada pela demagogia e a corrupção, ela vai, cada vez mais, entregando os seus cidadãos à própria sorte. E nisso Salvador não está sozinha, dirão os personagens do Rio, de Recife, de Belo Horizonte etc.

São Salvador da Bahia: se não gostou do duro retrato que Carlos Ribeiro fez de você, aguarde o próximo capítulo. E vá desviando os seus olhos dengosos que aí vem o aflito Jean Wyllys.

Não esperneie, não, nega. O escritor escreve o que vê, o que sente, o que percebe, sabe disso, não sabe?

Entonces, encoste a sua cabecinha no meu ombro que eu vou lhe contar um causo que me contou esse menino de Alagoinhas de nome meio francês e meio inglês ou holandês, sei lá. Jean Wyllys, veja vosmecê. Très chic!

O título do conto dele é: Caça e caçador. É do seu livro Aflitos, um dos vencedores do Prêmio Copene de Cultura e Arte – Literatura, de 2001, e publicado pela Editora Casa de Palavras, da Fundação Casa de Jorge Amado.

Vamos lá:

“As luzes de vapor de sódio e os prédios cinzas da Avenida Sete deslizavam sobre o pára-brisa do carro. Da janela, Miguel observava cada esquina ou poste. Poucas pessoas transitavam e havia alguns miseráveis nas calçadas. Já era a terceira vez que ele passava pelo local, depois de ter contornado o edifício Sulacap e subido pela Carlos Gomes, à procura de alguma companhia. Na altura do Palácio da Aclimação, só havia os travestis – aquelas criaturas vivas, que costumam colorir a noite com sua arte radical. Mas, próximo à Praça da Piedade, apareciam, de vez em quando, alguns garotos de programa – meninos da periferia que, não raro, prostituíam-se por um jantar. “Com um pouco de paciência,” pensava Miguel, “consigo um interessante.”

Depois de mais duas voltas, ele encontrou alguém que correspondia aos seus sonhos. Parou o carro e perguntou: “E aí, tá na batalha?” O garoto – branco e bonito, apesar do vísivil maltrato – consentiu com a cabeça. Miguel abriu a porta do carro e ele entrou. “Ponha o cinto. Como você se chama?” “Gabriel,” respondeu o garoto. “Nós temos nomes de anjos. Você acredita em anjos?” Gabriel contou que fora assim batizado porque sua mãe sonhara com um anjo de asa quebrada, afogando em um mar de sangue. Miguel olhou, por alguns segundos, as águas escuras da Baía de Todos os Santos, vigiadas pelas luzes solitárias das embarcações, e disse “É um sonho triste.”

Quando chegaram em casa, Miguel pediu a Gabriel que se abaixasse, pois não queria chamar a atenção do porteiro. A garagem estava silenciosa. Subiram pelo elevador de serviço. Ao entrar em casa, a primeira coisa que Gabriel fez foi comer um pedaço de bolo que estava sobre a mesa. “Calma, você vai ter tempo para comer o que você quiser. Antes, vamos ao serviço.” Dirigiram-se para o quarto. Gabriel prestava atenção nos móveis, eletrodomésticos, nos quadros… Nunca vira apartamento tão bonito. Miguel ligou o som de cabeceira. A música Menino Deus, de Caetano Veloso, encheu o aposento. Em seguida, começou a se despir. Só depois de tirar toda a roupa, foi que ele percebeu que Gabriel empunhava uma faca de lâmina larga. “Quieto. Não grite. Eu não vou lhe matar. Só quero a sua grana, o relógio e os Cds.,” sussurrou. Miguel, com as mãos para cima, tentava articular algumas palavras enquanto se aproximava do criado-mudo. “Não se meta a besta, desgraçado, senão eu ranco suas tripas fora,” ameaçou. Miguel abaixou-se para abrir a gaveta, no momento em que Gabriel avançou sobre ele com a faca em posição de ataque. Seis estampidos abafados pelo silenciador interrompeu, em frações de segundo, a melodia da canção. Semi-abertos, os olhos de Gabriel refletiram a face pálida de Miguel, ao passo que seu corpo parecia mergulhar num mar de sangue.”

Está contado o conto de Jean Wyllys, um que anda por aí como um repórter da vida, a espreitar as zonas de sombra, onde a solidão faz esquina com a violência, e por onde perambulam peregrinos urbanos de almas aflitas, mendigantes do amor mal soletrado, no lado avesso da cidade que, nos impasses de sua caótica pós-modernidade, já não nos oferece uma aquarela, mas um laboratório de experiências humanas perturbadoras que, pelo visto, estão engendrando uma nova literatura baiana. Que pode ser tão infernalmente cruel e tão assustadoramente violenta quanto a realidade que nos cerca. Mas, com certeza, é de alta qualidade.