Prefácio de Antonio Torres para a edição comemorativa dos 30 anos de lançamento do seu primeiro livro, “Um cão uivando para a lua”

Prefácio do autor.

Ou:

Como uivar para a Lua numa noite sem a menor possibilidade de estrelas

“Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela
loucura, morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada
em busca de uma dose violenta de qualquer coisa…”

Allen Ginsberg/ Uivo – na tradução de Cláudio Willer/ LPM Pocket, 2001

Para começar, eu ainda não tinha lido o poema de Allen Ginsberg, que só caiu nas minhas mãos em 1973, numa viagem a Lisboa, um ano depois da publicação dos meus próprios uivos. Foi o poeta português Alexandre O´Neill quem me presenteou com o livro do Ginsberg que, na edição portuguesa, se não me falha a memória, começava assim: “Eu vi as melhores cabeças da minha geração destruídas pela loucura…”

Era um libelo da Geração Beat dos anos 50 – que incluía Jack Kerouac, William Bouroughs, Lawrence Ferlinghetti etc -, e da contracultura e rebeliões juvenis dos anos 60 e 70. O impressionante era que neste lado do paraíso, aqui nos subúrbios da América, estivéssemos vivendo a mesma inquietante atmosfera. Mas no tempo em que escrevi este Um Cão Uivando para a Lua – um tempo vivido entre São Paulo e o Rio de Janeiro, depois de andanças por Oropa, França e Bahia -, os meus autores preferidos eram outros, das Américas (a começar pelos brasileiros obrigatórios) e do mundo. E, onde quer que estivesse, sempre tinha à cabeceira um livro de Scott Fitzgerald, o que dizia: “Numa noite escura da alma são sempre três horas da manhã.” O que morreu dizendo: “O progresso é o desencanto contínuo.”

Vivíamos uma era de progresso – a Transamazônica, a ponte Rio-Niterói, Itaipu, o BNH, o boom imobiliário, o DDD e o DDI, PNBs fantásticos, as fachadas da ditadura militar. Em seus porões os descontentes, ou dissidentes, uivavam até a morte, se não fossem resgatados antes no rabo de um foguete para o exílio.

Nas selvas de pedra a classe média achava que finalmente havia chegado ao paraíso, enquanto seus rebentos exilavam-se num quarto, se entupindo de LSD ao som de Jimmy Hendrix e Janis Joplin, até a loucura.

Como todo mundo à minha volta, também ouvia os sons de uns e outros: Chico Buarque, Caetano & Gil, Vincius de Moraes e Tom Jobim, Milton Nascimento, Zé Kéti, Paulinho da Viola, Baden Powell – “todos os violões havidos e a haver,” na definição magistral do já citado poeta português Alexandre O´Neill -, e todo o resto do pessoal, que incluía o teatro do Zé Celso Martinez Correia, e o de Boal, Guarniéri e Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, de Plínio Marcos etc, e o cinema de Nelson Pereira dos Santos, Gláuber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade etc, etc, etc, ah, meninos, era uma era de arte, na contra-mão do enquadramento da ordem & progresso: censura, prisões, tortura, desaparecimentos, mortes, nunca é demais lembrar.

Um Cão Uivando para a Lua é desse tempo e lugar. O título me veio numa noite escura, em São Paulo, quando num quartinho de um hotel barato na Alameda Barão de Limeira, eu ouvia o tempo todo Miles Davis tocando sem parar My funny Valentine, uma terna canção americana, do dia dos namorados, que aquele trompetista, um gigante do jazz, transformara num lamento lancinante. Como os uivos vindos lá do fundo dos quartéis e dos manicômios, num dos quais eu havia visitado um amigo, que tinha a cabeça raspada e espumava loucamente. Já não se entupia de LSD, mas com as drogas que os médicos lhe davam, para acalmá-lo – e que o deixavam muito excitado. Foi aí que me veio uma idéia para um conto: um doido batendo papo consigo mesmo. Como parecia ser o de Miles Davis com o seu trompete. Oito meses depois tinha um romance nas mãos.

Bem, já havia entrado na casa dos trinta e finalmente o meu teclado engrenava. Até então vivia começando histórias que nunca passavam da segunda página. Isso me desesperava, me dava uma horrível sensação de fracasso. E de repente, como num milagre, já tinha ido além da terceira. Que maravilha. Como vivia ganhando e perdendo emprego no eixo Rio-São Paulo, coincidiu que por aqueles dias dei com os costados numa agência de publicidade carioca, onde fui contratado como redator. Entre um anúncio e outro, descubro que o gerente da empresa era um poeta, chamado Celso Japiassú, que me presenteou com um dos seus livros – e já não me lembro o que motivou tal gesto. Na verdade, naquele tempo havia até publicitários que gostavam de ler e escrever e acabamos por ter assunto para dois dedos de prosa depois do expediente. Acabei criando coragem para mostrar-lhe as minhas primeiras páginas. No dia seguinte fui chamado, pelo telefone interno, para ir à sua sala. Para minha surpresa, não se tratava de uma ordem de serviço, “uma campanha para ontem.”

— Você pode até nem saber que é um escritor – começou ele, tendo entre as mãos as páginas que eu havia lhe passado no dia anterior. Por uma questão de pudor, deixo a frase em suspenso, sem completar com o que ele disse a seguir. Mas não posso deixar de dizer que o primeiro leitor das primeiras mal-traçadas linhas deste meu primeiro livro me encorajou muito, muitíssimo, para ir em frente. Velho Japi: nunca será tarde demais para te dizer “Muito obrigado.” Sei que andas por aí a capitanear novos negócios e, espero, a escrever poemas de boa fatura literária, na calada da noite, como antigamente.

O livro iria ser lido com entusiasmo também por um pequeno editor, o Lúcio de Abreu, que me disse: “Isto tem cheiro de sucesso.” Só que no meio do caminho – já com os originais na gráfica -, ele iria revelar suas dificuldades financeiras, naquele momento, para produzi-lo. Foi uma confissão desesperadora. Olha eu de novo uivando para a Lua. O que fazer?

Foi aí que entrou em ação uma verdadeira corrente da solidariedade para que este livro viesse a ser publicado, liderada por um colega do departamento de criação da finada Denison Propaganda, chamado José Monserrat Filho, atualmente editor do Jornal da Ciência, da SBPC, e até hoje um amigo de fé. Ele arregimentou um mutirão: o produtor gráfico da Agência, o saudoso Bilé, que iria conseguir gratuitamente o fotolito da capa, que foi criada de mão beijada por um talentoso diretor de arte, o Cláudio Sendin. Carlos Estevão de Souza Filho fez a foto da contra-capa, que teve layout de Joaquim Pêcego, o velho Pá. A produção do livro acabou se tornando uma ação entre colegas de trabalho – não dá para esquecer aqui a extrema boa vontade de outros ali, como Aldyr Nunes e Federico Spitale -, que deram a sua contribuição pessoal para aliviar os custos e viabilizar a edição do livro. Celso Japiassú, o entusiasmado leitor da primeira hora, escreveu a orelha. E assim este Um Cão Uivando para a Lua foi embalado para as livrarias, no dia 14 de novembro de 1972, vindo a merecer também a solidariedade da crítica, dos leitores, dos escritores.

E estes se manifestavam através de cartas, ou por telefone. Nomes consagrados – como Jorge Amado, Marques Rebelo, José Américo de Almeida, Osman Lins e o português José Cardoso Pires – brindaram o estreante com calorosas palavras de incentivo. É preciso dizer que até então o autor destas linhas não conhecia pessoalmente aqueles escritores. Minhas – poucas – relações eram com outros. Numa curta temporada no Jornal da Bahia, trabalhara com Ariovaldo Matos e João Carlos Teixeira Gomes e, na Última Hora de São Paulo, com Ignácio de Loyola Brandão, que num começo de tarde, antes da zorra começar na Redação, me mostrou as páginas de um livro que estava escrevendo, o Depois do Sol. Naqueles primeiros tempos de São Paulo cheguei a conhecer Marcos Rey, já um autor de best-sellers e um excelente sujeito, que sempre me recebia em sua casa de copo na mão, enquanto a sua mulher, a doce Palma, se apressava em preparar um rango; e João Antônio, que me impressionara vivamente com o seu Malagueta, Perus e Bacanaço, e com quem havia perambulado uma vez pela noite paulistana, de ‘pé sujo’ em ‘pé sujo’, até o último bêbado olhar para o céu e gritar: “Não há possibilidade de estrelas!”

Mas agora eu iria saber quem eram os outros. Da Manaus de Márcio Souza à Porto Alegre de Moacyr Scliar, do Recife de Hermilo Borba Filho à Ituiutaba de Luiz Vilela, da Bahia de João Ubaldo ao Paraná de Domingos Pellegrini Júnior, eles formavam um bando, com uma enorme concentração em Minas Gerais – Murilo Rubião, Wander Piroli, Sérgio Sant`Anna, Oswaldo França Jr., Roberto Drummond etc – e no Rio de Janeiro: não tardou muito para o escriba aqui estar sendo recebido por Ana Arruda e Antônio Callado – aquele lorde que tanta falta nos faz -, e Nélida Piñon, em cuja mesa cabia sempre a verve de Rubem Fonseca. Ah, Rubem Nosso Bem, quando vamos voltar a dar umas boas risadas? Agregadores era o que não faltava. Como o casal Laura e Cícero Sandroni, com suas feijoadas concorridíssimas, nas quais Antônio Houaiss, José J. Veiga, José Louzeiro, Marcos Santarrita, Edilberto Coutinho, Eglê Malheiros e Salim Miguel, entre tantos, tinham cadeira cativa. Em São Paulo, as casas de Ivan Ângelo, Moacir Amâncio e Edla van Steen estavam sempre de portas abertas para outros. Numa volta lá, acabei conhecendo o Raduan Nassar. E ficamos amigos para sempre. Parecia que todo mundo seguia ao pé da letra os versos de Carlos Drummond de Andrade: “Como viver sem conviver/ na praça de convites?”

Depois alguns de nós – como o Loyola, o João Antônio, este aqui e muitos mais – ganhamos a estrada, falando em tudo quanto era canto deste imenso e mal administrado País, com a polícia sempre atenta ao que falávamos. Pelo caminho, fomos envelhecendo, alguns morrendo e vieram outros e já não era mais a mesma história. Mas nunca me esqueci do que uma vez me disse a adorável e inteligentíssima Nélida Piñon: “Toda essa camaradagem um dia vai acabar. Quando o tal do mercado fizer as suas escolhas.” Não deu outra.

Bom, valha o que valer o relançamento deste livro agora, não poderia deixar de dedicá-lo, ainda uma vez mais, a Sonia Torres, que não só o viu nascer – antes de nossos filhos Gabriel e Tiago – mas também resiste ao meu lado, com sua solidariedade incondicional, por toda uma vida feita de bons e maus momentos.

Tanto quanto consigno aqui os meus agradecimentos à minha agente literária Marisa Gandelman e à Editora Record, que vem reunindo todos os meus cacos deixados pelas estradas para com eles compor um belo mosaico. Sérgio e Sônia Machado, Luciana Villas-Boas e Ana Paula Costa: segurem aí o meu abraço.

Se este esforço editorial valerá a pena, é com você, caro leitor.