O Estado de S. Paulo, 18-11-73
Rolmes Barbosa
Numa época em que os Best-sellers indígenas refletem (salvo as exceções de regra) melancólico conformismo literário, o aparecimento de “Os Homens dos Pés Redondos”, segundo romance de Antônio Torres, constitui testemunho de que ainda contamos com autores que não se resignam à letargia que ameaça nossas letras.
Reconheça-se que o autor de “Um Cão Uivando para a Lua” ainda não alcançou o desejável equilíbrio entre forma e espírito, estilização e tema. Ademais ainda está influenciado pela preocupação da denúncia social o que, de certa maneira, em certos trechos, lhe compromete o fluxo da narrativa.
É ponto pacífico que um romancista, por mais “atualizado” que seja, não poderá condicionar sua arte unicamente a uma concepção sócio-política do mundo, sob pena da mesma adquirir ranço panfletário. Comparando-se, porém, o primeiro livro de Antônio Torres com este, é sensível a evolução sofrida. Embora o ângulo de focalização ainda seja, basicamente, o da deshumanização do homem contemporâneo, agrilhoado à engrenagem de arbitrária organização social, os personagens já se movimentam com maior liberdade individual, pondo à mostra o absurdo da condição humana, independentemente de épocas e regimens.
Situando a ação num país chamado Ibéria (nome, também, de uma das figuras da trama), que está congregando esforços para, com metralhadoras e “napalm”, levar o progresso às suas colônias africanas, o autor cria um clima de “realismo mágico” (ou de “realismo Ilógico”?) que sem incidir nas realizações de M. Scorza, de J. M. Arguedas e outros do mesmo naipe, dá bom rendimento em suas mãos. O simbólico sapo kafkaniano, que permanece sempre alerta para que não sejam infringidas as leis que regem o país, passa a ter, nesse clima, personalidade de acentuada vivência.
Digna de relevo a expressividade com que o jovem romancista desenvolve os monólogos interiores e as descrições, numa demonstração de notável habilidade artesanal. Um exemplo: o método pelo qual expõe a agressão sofrida por Junior, narrada em varias versões, cada qual correspondendo à maneira de ser respectivo narrador.
Rico em criatividade, Antônio Torres se distingue, ainda, por um traço raro entre os novos ficcionistas brasileiros: o do senso de humor. Veja-se por exemplo, o julgamento do pretenso criminoso e o caso da carta-queixa ao Vaticano. Um humor negro, convenhamos, mas que confere curioso significado ao sentimento de frustração que corrói os personagens. Humor, aliás, comum não somente aos cidadãos de Ibéria, mas também aos de outros países nossos conhecidos.
Cabe ressaltar, também, o meio-encabulado lirismo oculto em algumas passagens do livro, como no da visita do “Estrangeiro” ao velho Rodriguez, já moribundo – passagem que pela áspera beleza basta para dar idéia das possibilidades do autor.
A critica poderá objetar que pela riqueza dos temas em contraponto, pela diversidade de situações e de planos, pela complexidade da concepção (com raízes, não ocultas pelo autor, em Kafka e Joyce), “Os Homens dos Pés Redondos” lembra mais a estrutura de vasto romance do que uma obra devidamente realizada. Tal observação poderá ser valida em relação ao inicio do livro. No entanto, sobretudo a partir da página 96, a narrativa ganha singular consistência, a prosa se torna mais elástica e os protagonistas adquirem dimensões mais humanas.
Há perto de um ano, por ocasião da estréia do autor, fio dito nestas páginas que estávamos diante de uma revelação. Urge agora acrescentar que se trata da revelação de um escritor que dificilmente deixará de figurar na primeira fileira dos novos ficcionistas brasileiros. De um escritor que vem trazer um jorro de ar fresco ao abafado círculo da nossa atualidade literária.