O Globo – Caderno Prosa e Verso, 28 de Agosto de 1999
Mànya Millen
Antônio, o escritor
Autor de “Essa Terra” lança contos sobre sua infância e prepara livro sobre Cunhambebe
A data é meio quebrada – são “só” 27 anos dedicados à literatura, marcados pela estréia com o romance “ Um cão uivando para a lua”, de 1972.Mais o escritor Antônio torres não precisa de números redondos parra comemorar. Além de ver reeditados pela Record, sua casa editorial há tempos, dois de seus principais títulos (“Balada da infância perdida” e “Os homens dos pés redondos”), o baiano nascido há quase 59 anos na pequena cidade de Junco, hoje chamada Sátiro Dias, também lança “meninos, eu conto”, que reúne três contos inéditos (em livro) em torno das suas memórias de infância e juventude.
– Por isso está sendo tratado como um livro infanto-juvenil, mas eu digo que é para jovens dos 12 aos 80 anos – brinca Torres, que escreveu os três na década de 70 e os considera um embrião de “Essa Terra”, seu maior bes-seller, de 1976, traduzido em nove países. – É claro que são lembranças, observações, mas não posso dizer que seja biográfico, porque para mim desaparece essa fronteira entre ficção e realidade.
Ainda menino, autor redigia cartas em troca de doces
“Meninos eu conto” cheira a uma época em que o autor, ainda moleque, carregava o apelido de Tote, hoje transformado em placa que decora a sua biblioteca doméstica. E como o único alfabetizado na região, já mostrava seu pendor para o ofício futuro escrevendo cartas para a população local, como a personagem Dora, vivida por Fernanda Montenegro no filme “Central do Brasil”.
– Nesse tempo recebi os melhores direitos autorais da minha vida. Nos dias de feira eu comia um monte de doces de graça – conta ele.
No momento, Torres está novamente mergulhado no passado. Mas num passo longínquo, que dá conta das primeiras décadas da História do Brasil. De lá, o escritor pinçou aquele que se transformou em personagem dileto e que até o fim do ano vira livro, sob o título “Meu querido canibal”: o índio Cunhambebe, o terrível devorador de portugueses.
A História narrada pela ótica dos perdedores
Paixão pela saga do chefe Supremo dos Tamoios nasceu durante a pesquisa para o livro sobre o Centro Rio
A começar pelo título do livro, Antônio Torres não faz a menor questão de esconder que tomou partido dos índios sim. Particularmente da coragem e da personalidade de Cunhambebe, o primeiro Chefe Supremo da Confederação dos Tamoios, organização que resistiu ferozmente, até onde foi possível, ao domínio dos colonizadores portugueses. “Meu querido canibal” vai contar a História pela ótica de quem perdeu, de terras à própria vida, numa narrativa que equilibra a técnica do romancista aos dados colhidos em pilhas de documentos e livros.
– Em alguns momentos vai parecer um livro de História, em outros um romance e até uma crônica. E, no fundo, o que estarei fazendo é a biografia não-autorizada de Cunhambebe – classifica Torres. – Essa questão do canibalismo mexe com as pessoas, mas Cunhambebe e sua tribo eram guerreiros e não perdoavam os inimigos, devorando-os para ingerir sua coragem. Parece só um ato de selvageria, mas tinha um conceito.
Além da base histórica, Torre diz estar escrevendo sobre Cunhambebe, que viver e morrei em Angra dos Reis, como se fossem grandes amigos, porque ao romancista interessa mais a fabulação. Essa amizade nasceu em 1996, quando o escritor recolhia dados para o livro ”Centro: das nossas desatenções”, da série Cantos do Rio, do Rioarte, editado pela Relume-Dumará. Da pesquisa brotaram histórias e a paixão pela vida de personagens como o canibal que morreu de peste e o pirata francês René Duguay-Trouin, o próximo que Torres quer transformar em livro.
Reedições mostram a continuidade da obra.
O amor pelos personagens está na fonte de outra paixão de Torres: tanto o índio quanto o pirata trazem com eles não só a História do Brasil como especificamente a do Rio de Janeiro, cidade que o baiano adotou em 1974 e onde nasceram seus filhos, Gabriel e Tiago.
– Sempre digo que para mim existem três grandes cidades: Rio, Paris e Nova York. Todas elas são realmente maravilhosas, mas só aqui existe o calçadão que vai do Arpoador ao Leblon – derrete-se ele. – E é a própria cidade que me pede para continuar. Com o sucesso do livro sobre o Centro vi como o carioca ama a história de sua cidade. Comecei a receber muita coisa sobre o assunto. Isso me deu um prazer imenso e me incentivou muito. Agora estou aproveitando todo o material.
Em poucos dias Torres estará indo a Angra dos Reis refazer a trilha de Cunhambebe. E nessa parte do livro vai dar vazão à ficção, criando um personagem que confronte as invasões de ontem e hoje:
O que me impulsiona a botar a minha alma nesse projeto é saber que os índios não tiveram escolha: era a escravidão ou a morte.
Embora possa ficar enumerando horas a fio as qualidades de Cunhambebe e as atrocidades cometidas em solo brasileiro pelos colonizadores. – “Sei que vou perder alguns amigos portugueses, ma a História é História, conforma-se ele- o autor não se esquece de seus outros filhos literários, principalmente as reedições de Balada da infância perdida” e “Os dos pés redondos”. Para ele, elas servem para relembrar aos leitores a construção de uma obra consistente.
A inspiração na História e nos versos de Lorca
– Há toda uma geração que ainda não tomou conhecimento desses livros, esgotados há muito tempo. Trazer esse acervo literário de volta mostra que tudo faz parte de um processo. Meu romance mais recente não nasceu hoje, faz parte de uma parede que estou construindo há tempos.
Ao reler “morrendo de medo”, por exemplo, “Os homens dos pés redondos”, de 1973, uma espécie de alegoria sobre os estertores do salazarismo em Portugal – refletindo a vivência de Torres naquele país durante três anos – ele diz ter ficado gratamente surpreso.
– Afinal é um livro de 1973, eu era jovem, me sentia um bicho solto no mundo – compara o escritor, que em breve terá reeditado seu não menos elogiado “Um táxi para Viena d’Austrália”. – Mais fiquei alegre porque ele se mantém atual.
Atual também, lembra o autor, é a “Balada da infância perdida”, do começo dos anos 80, e que mostra 25 anos de História do Brasil. A obra foi inspirada num poema de Lorca, ”Balada da pracinha”, com as lembranças do verso, Torres escreveu o romance.
As reedições e o lançamento do livro,” Meninos, eu conto” vem somar-se à uma produção contínua, que desde 1996, com o livro sobre o Centro do Rio, vem rendendo louvores ao escritor. Em 1997 ele lançou “O cachorro e o lobo” (já traduzido para o francês) e, em 1998, “O circo no Brasil”, um belíssimo volume de luxo editado pela Funarte.
Para o autor, escrever não é um ato solitário
Entre homenagens como o recebimento do título de chefe des Arts et des Lettres, concedido pelo Governo francês, durante o Salão de Livro de Paris em 1998, e o empréstimo de seu nome à biblioteca pública de sua cidade natal – abrigada na escola primária em que ele rabiscou suas primeiras linhas – Torres vai construindo sua sólida parede literária.
Dessa parede fazem parte temas que lhe são sempre caros, como a memória afetiva, explicitada nos delicados textos de “Meninos, eu conto”. Nas narrativas “escritas mais com o coração do que com a razão”, como diz o próprio autor na apresentação do livro, está a palavra calorosa, quase íntima do leitor, marca dos textos de Torres.
– Ainda hoje, quando eu vou escrever um romance, me vem à memória aquele garoto que redigia cartas lá no interior da Bahia – conta o escritor. – Eu gosto de castas porque são dirigidas a uma pessoa, estou falando com alguém que estaria ali na minha frente, Por isso não acho escrever um ato solitário e isso transparece em meus livros, além de estar como os personagens à minha volta, estou me comunicando com alguém que é muito real.