Os catados de Antônio Torres

Correio da Bahia, 16 de setembro de 2007
Ana Cristina Pereira

A constatação foi do editor ao avaliar o material apresentado pelo escritor Antônio Torres para seu livro, a coletânea de crônicas Sobre Pessoas. Os textos falavam, basicamente, de figuras que marcaram a vida do autor – e de muita gente –, fossem elas de carne e osso ou fictícias. Alguns dos escritos haviam sido publicados na imprensa, outros criados especialmente para o livro e uns poucos redirecionados de outros fins, como palestras e aulas.

Por conta dos diferentes períodos e destinos, o conjunto de 44 textos apresenta uma agradável variação. Tanto nos tema quanto na formatação. “Comecei revendo meu baú e depois passei o pente-fino”, metaforizou o escritor.

Sempre simpático, Torres chama atenção para a quantidade de baianos na coletânea. Para quem não sabe, ele nasceu na pequena Junco – hoje Sátiro Dias –, no interior baiano. De lá rumou para São Paulo, “o destino de todos os tabaréus do Brasil”, brincou, e depois se fixou no Rio de Janeiro, cidade onde reside atualmente.

É pela capital carioca que se indica a viagem memorialista de Torres em Sobre pessoas, acompanhando do amigo Fernando Sabino. O começo é também uma maneira de reverenciar o gênero literário, com a citação de A última crônica, pérola de Sabino (1923-2004) na qual ele fala da busca da inspiração. “Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida”, anota Sabino, logo nas primeiras linhas.

A frase poética serve como uma espécie de resumo para as intenções do livro de Torres. Ele pinça acontecimentos e ações que valem a pena ser contados. Como o caso do generoso professor que, na adolescência, lhe apresentou Mar morto, de Jorge Amado, incutindo-lhe o vírus da escrita. Ou a generosidade de Glauber Rocha, que, em meio ao lançamento paulista de Deus e o Diabo na terra do sol, em 1964, concedeu-lhe uma longa entrevista. À época, o cineasta era uma estrela em ascensão, e Torres, um repórter iniciante, trabalhando numa revista sem nenhum prestígio. Tinham, respectivamente, 25 e 24 anos. Além da crônica sobre o encontro com Glauber, Sobre pessoas traz trechos da entrevista, recuperada graças ao cineasta Eduardo Escorel.

Vicio em história – No capítulo Vencedores e vencidos: histórias da nossa história, o autor reúne nome e atitudes de pessoas que marcaram a trajetória do país, sobretudo a carioca. Um pouco da vida do rei e do santo que inspiraram o nome oficial da cidade maravilhosa (São Sebastião do Rio de Janeiro); o vice-rei Luís de Vasconcelos e Souza e sua amante plebéia; o governador Francisco de Castro Morais e o rei D. João VI, o articulador da fuga da família real para o Brasil em 1808.

Antônio Torres conta que tomou gosto pela história quando iniciou as pesquisas para o romance Meu querido canibal (2000). Depois, publicou O nobre seqüestrador (2003), na mesma seara do romance histórico. “Fiquei viciado. Os livros de história, mesmo importantes, às vezes são muito duros. Queria falar um pouco sobre alguns personagens, como D. João VI, sempre muito injustiçado, visto como fujão. Ele foi um administrador inteligente, que amou muito o Brasil”, afirma.

Dois dos textos mais longos do livro foram adaptados de palestras dadas por Antônio Torres: Idéias de Jeca Tatu e Roteiro sentimental de um leitor de Jorge Amado. O primeiro resgata a amplitude do pensamento de Monteiro Lobato, lembrando aspectos que hoje parecem piada, como sua defesa da existência de petróleo no Brasil, que o levou à prisão. O segundo, como o título explicita, fala da admiração ao conterrâneo, do arrebatamento juvenil ao primeiro encontro em São Paulo à amizade madura.

Já um nome importante em 1972, Jorge Amado fez a simpatia de passar na livraria onde Torres lançaria Um cão uivando para a Lua no mesmo dia e hora em que ele autografava Teresa Batista cansada de guerra. Comprou um exemplar e pediu ao vendedor para entregar ao autor, com a recomendação de que autografasse e mandasse para seu hotel. De quebra, deixou os contatos e convite para selar a amizade. “Jorge sempre foi muito generoso. Foi ele quem reuniu os escritores baianos em sua casa para me apresentar”, recorda Torres, que morou pouco mais de um ano em Salvador.

Entre as crônicas mais afetuosas está a dedicada ao escritor português Alexandre O’Neil (1924-1986), um dos primeiros amigos que Torres fez em Portugal, na década de 1960, durante a temporada que lá passou. Inédito no Brasil, O’Neil tem vários livros publicados e é muito conhecido em seu país. “Tive enorme prazer em colocar os poemas dele o livro, como uma provocação às editoras brasileiras, que nunca se interessaram em publicá-lo por aqui”, diz Torres. Ele pinçou três bonitos exemplares, dois deles sobre a paixão de O’Neil pela poesia brasileira, através de João Cabral de Melo Neto e Manuel Bandeira.

Outros encontros, duradouros ou furtivos, perpassam o livro. Com Rubem Fonseca, Vinicius de Moraes, Othon Bastos, Márcio Souza, Ignácio de Loyola Brandão… O leitor atento também pode ler Sobre pessoas como um rico roteiro de leitura, catando os textos, livros e autores importantes para Torres e que, certamente, merecem serem lidos: Malaguetas, perus e bacanaço (João Antônio), Urupês e Idéias de Jeca Tatu (Monteiro Lobato), Ohio e Cavalos e homens (Sherwood Anderson), Enquanto agonizo e Palmeiras selvagens (William Faulkner)…

Você pode ler o livro Sobre Pessoas na íntegra em DOC ou PDF

O gato Minu sente saudades da bagunça

Jornal do Brasil, Idéias & Livros, 17 de março de 2007
Aline Nascimento

É comum que escritores mais afeitos à literatura para adultos cedam ao encanto de escrever para crianças. Jorge Amado e Henry Miller que o digam. Antônio Torres acaba de aderir também. Reuniu realidade e fantasia em Minu, o gato azul, sua obra de estréia na literatura infantil.

A história do gato que vive aprontando pela casa foi inspirada no próprio animal de estimação de Torres – também chamado Minu – e em seus dois filhos. O livro nasceu de um convite da editora Rocco para a coleção Bichos e outras histórias, que reúne importantes nomes da literatura brasileira escrevendo histórias sobre animais destinadas às crianças. O autor, no entanto, garante que não pretende continuar escrevendo livros infantis.

Muito paparicado por todos de casa, que sempre achavam que ele dormia “como um anjo”, a alegria do gato azul era encontrar uma porta aberta. A sala de visitas com tapetes, poltronas e sofás vira m parque de diversões para o pequeno animal. Todas as aventuras são muito bem ilustradas por Adriana Renzi.

Na narrativa, Antônio Torres cria um gato sonhador, que pede a sua fada madrinha para conhecer a Rússia – de onde veio sua espécie. O gato relembra as brincadeiras na época em que havia crianças pela casa. Sente saudades. “Minu acaba de descobrir o sentido da palavra saudade. De tanto conviver com as pessoas, já entendia alguns de seus sentimentos”, escreve Torres.

O livro fala também da comunicação dos humanos com os animais, que mesmo não falando a mesma língua acabam se entendendo. A relação de carinho e companheirismo entre homens e bichos.

Durante a noite Minu investiga a casa para ver se não há nenhum movimento e se o caminho está livre para suas explorações e passeios pelos cômodos. O problema é quando se depara com o dono da casa no escritório e seus planos vão por água abaixo.

Neste momento, o escritor dialoga com os pequenos leitores: “Sim, meninos: o manhoso Minu está se sentindo como um rato que caiu na ratoeira. Mas esperem aí que ele já está bolando um jeito de dar a volta por cima”.

Sempre que aprontava, o gato voltava para a cama e ficava bem quieto, muitas vezes fingindo que estava dormindo para que os humanos não desconfiassem de suas bagunças. Como uma criança levada.

Cães e gatos no mundo da razão

O Estado de São Paulo, Caderno 2, 21 de Julho de 2007
Antonio Gonçalves filho

O escritor Isaac Bashevis Singer (1904-1991), Nobel de literatura em 1978, disse certa vez que, numa época marcada ela deterioração da produção literária adulta, livros para crianças podem representar a única esperança e refúgio. A cada geração, livros infantis espelham a sociedade em que surgem, conclui o historiador e autor americano Leonard S. Marcus, autor de outra célebre frase: “Crianças sempre têm o livro que seus pais merecem”. Pensando exatamente na qualidade do texto literário dirigido ao público infantil, a jovem editora Ana Martins Bergin, da Rocco, teve a idéia fazer uma lista de grandes autores brasileiros, convidando-os a escrever seu primeiro livro para crianças. O resultado desse convite é a coleção Bichos & Outras Histórias, que comemora 100 mil exemplares vendidos, número bastante expressivo num mercado ainda tímido, embora em expansão.

O mais recente livro da coleção, que já conta com cinco títulos, Minu, o gato azul, foi escrito pelo jornalista e autor baiano Antônio Torres, que descobriu sua vocação literária na escola rural de sua terra natal, Junco. A reação inicial de Torres, autor de livros para adultos, foi dizer não ao convite da editora. Chevalier dês Arts ET dês Lettres na França, o escritor parecia mais à vontade tratando de temas como migrações e o exercício da memória como sobrevivência, assunto para adultos, evidentemente. Como, então, escrever para crianças sem cais na armadilha de produzir fábulas moralistas? Torres refletiu e aceitou o desafio. Minu seria não só a história de um gato – inspirada no bichano de estimação do premiado escritor –, mas principalmente uma tentativa de explicar o indecifrável para os pequenos, sentimentos com ausência e saudade experimentados por um felino.

Torres mal sabia que teria de explicar a si mesmo esse sentimento. Minu, o gato, morreu assim que o livro foi lançado. A casa vazia sentiu a falta do bichinho, que aprontava todas e depois voltava para sua caminha para “dormir como um anjo”. Como uma criança de contos de fada, Minu teve madrinha, acompanhou ainda filhote as fábulas que as crianças de torres ouviram e ocupou um lugar especial na família. “Ele agregava a todos, era o seu verdadeiro núcleo”, relata o escritor, atribuindo a Minu uma qualidade que tenta transmitir a seus jovens leitores, o valor do presságio, do instinto animal, quando a razão parece insuficiente para responder incômodas perguntas, como porque as pessoas envelhecem e morrem. “Envelhecer, para Minu, é não sentir mais cheiro de menino em casa”, resume Torres. É ver esses meninos abrirem a porta, saírem e voltarem já adultos.

Torres que lançou Pelo fundo da agulha (Editora Record) e Sobre pessoas (Editora leitura), ambos para adultos, gostou da experiência de escrever para crianças, mas conta que não foi nada fácil. “A editora teve muita paciência e eu, bem, eu tive de reescrever o livro várias vezes”, admite.

[…]

Grandes autores para pequenos leitores

Minu na Revista Cult, nº 112, ano 10
Geraldo Galvão Ferraz

Escrever livros infantis não é para qualquer um. Quem passa pelas seções especializadas das livrarias, pode ter dúvidas quanto a isso: parece que o número de autores para crianças tem se multiplicado em velocidade galopante.

Porém, há meso um porém. A quantidade não quer dizer nada, no caso. Os bons autores, que não estragarão os neurônios tenros, continuam raros.

Na busca de soluções qualitativas, as editoras têm recorrido recentemente a bons escritores da literatura adulta ou a autores clássicos para rechear seus catálogos, com a garantia – de nível literário e de possibilidades comerciais – de nomes já consagrados.

[…]

Da Rocco, numa série chamada Bichos e outras histórias, sai “Minu, o gato azul”, de Antônio Torres, com ilustrações de Adriano Renzi. Minu é um bichano safado, travesso e sonso, que mesmo aos 15 anos de idade, adora brincar e fazer bagunça, sobretudo com os papéis em cima da mesa do dono escritor. Ele não pode ver uma porta aberta e, cansado dos seus passeios, dorme na sua caminha, “como um anjo”, dizem os humanos. Com humor e muita percepção das manias felinas – não é à toa que Antônio Torres, o áspero e sério autor de Essa terra ou Um cão uivando para a lua, tem um gato na vida real, chamado Minu.

[…]

Destaques

“Leia Antônio Torres. É muito bom este senhor aí.” Jorge Amado, no Le Monde

“A obra de Torres encontra uma receptividade extraordinária entre pessoas profundamente envolvidas com a literatura.”Jornal do Brasil

“Os livros de Antônio Torres carregam o olhar de um eterno vigilante.” Jornal do Commércio

Torres herdou as técnicas narrativas dos modernistas europeus, norte-ameicanos e latino-americanos, juntamente com as grandes tradições orais do BrasilAlejandro Morales, no Los Angeles Times

A expressão literária de Antônio Torres centra-se, sobretudo, no compromisso em apreender, sem concessões, a condição humana. O homem, em seus contrastes, alimenta-lhe a ficção. Mas que não se enxergue aí o nó das introspecções. Não. Suas personagens podem amealhar os seus grãos de silêncio: no entanto, realizam-se no outro e neste buscam referências. E, à semelhança dos heróis trágicos, fogem das coisas só para encontrá-las e delas se aproximam para perdê-las.Carlos Augusto Viana, no Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará.

NAS LEMBRANÇAS DO HOMEM, A RELEITURA DO PASSADO: MEMÓRIAS EM O CACHORRO E O LOBO, DE ANTÔNIO TORRES

Capas de O Cachorro e o Lobo
Algumas capas de O cachorro e o lobo

Trabalho de conclusão de curso de Letras – Uneb 10 – sobre O Cachorro e o Lobo.
Teixeira de Freitas – Bahia – 2009
Cibele Soares Hermano
Cristiane Diamantino de Oliveira
Izabel Freitas Machado

Clique para ver maior em uma nova aba: NAS LEMBRANÇAS DO HOMEM, A RELEITURA DO PASSADO: MEMÓRIAS EM O CACHORRO E O LOBO, DE ANTÔNIO TORRES.

Uneb10_OCachorroeoLobo

Uma fábula do bicho homem

Cid Seixas

“Num tempo em que esse mundo velho era povoado por contadores de histórias, um galo cantando fora de hora já era o começo de um romance”. É assim que Antônio Torres abre um dos capítulos iniciais do livro O cachorro e o lobo, assinalando um duplo resgate: o retorno a um tempo mítico, no qual o homem encontrava o vagar necessário para reparar nas coisas, e o resgate daquela gente que sabe contar histórias.

Habitando a fratura entre dois lugares distintos, a cidadezinha da infância perdida e a metrópole da competição, a obra de Torres se caracteriza pela procura do novo, pelo experimento. Já com este livro, ele abre as comportas do açude, deixando sangrar as águas da emoção mais direta e despojada. Se nos primeiros romances, a escritura precisava se ancorar na razão e apostar no experimentalismo para neutralizar as confissões do sujeito, chegou um tempo em que as descobertas devolveram à linguagem o saber necessário para falar do silêncio e do tumulto do homem.

O cachorro e o lobo é resultado do encontro da sensibilidade do autor com a sensibilidade do leitor, fundindo os dois rios num estuário em que a emoção e o sentimento mais íntimo não precisam ser escondidos. Quando a escrita é simultaneamente pessoal e transferível, o mar de palavras constrói aquilo que já foi definido por Drummond como o sentimento do mundo.

Autor de uma obra formada por quase uma dezena de livros, Antônio Torres vem sendo reconhecido, sobretudo, como o autor de Essa terra, romance publicado em 1976 e reeditado sucessivas vezes. As traduções do livro para o inglês, o francês, o alemão, o espanhol, o italiano etc. serviram para abrir espaço nas letras nacionais para este baiano do sertão que, a exemplo de outros retirantes, partiu em busca da terra prometida dos nordestinos: a São São Paulo, conforme o título da canção de um outro baiano emblemático.

Torres começou a vida como jornalista em Salvador, transferindo-se depois para a Última Hora de São Paulo e, finalmente, para o Rio, onde trabalha em publicidade.

O interior continuou sendo uma referência um tanto longínqua, embora forte, constituindo o espaço e o cenário mais profundo e recuado do seu mundo ficcional. Foi este espaço interior e paisagístico, que tem como centro polar a antiga Junco, no caminho dos sertões de Antonio Conselheiro, que forneceu a seiva de Essa terra. Foi este mesmo livro que consolidou o nome de Antônio Torres como escritor.

REFERENCIAL – Ao retornar, vinte anos depois, à ruidosa quietude da sua Macondo, Torres escreveu um livro que não apenas dá continuidade à saga de Totonhim pelas veredas do Junco e pelas terras da promissão que ficam “pra lá do Vale do AnhangabaÚ”. O cachorro e o lobo é um livro que, pela madureza da escrita e pelo domínio da técnica romanesca, passa a ser o referencial da obra do autor. Feito escritor, maduro e senhor do seu ofício, a volta ao lugar da partida serviu para corrigir o viés do olhar, ou para reescrever, com ternura e sabor de fruto sazonado, o intervalo entre a cidade e o sertão – a civilização e a natureza.

Durante muito tempo, embora refinando a escrita e diversificando a temática, Antônio Torres continuou sendo o autor de Essa terra. Mesmo quando a crítica apontava nele um artesão do texto mais seguro e cheio de inventos, o livro de 1976 projetava sombras sobre as novas histórias. Caio Fernando Abreu escreveu na Veja que Torres vinha conquistando um universo próprio inconfundível, com a garra de quem estava disposto a ocupar um dos grandes lugares vazios deixados na literatura brasileira por Clarice Lispector, Guimarães Rosa ou Osman Lins.

Mas Essa terra persistia como afirmação e desafio. O lugar da partida era apenas um ponto distante, um pólo distinto do lugar de chegada.

O cachorro e o lobo apresenta-se com a força de uma obra essencial, coroando a plenitude do romancista e propondo-se como referência obrigatória. Os fantasmas e criaturas do universo romanesco de Antônio Torres não mais pertencem ao pequeno mundo da velha vila do Junco. Pertencem à cidade solar da criação, ao lugar do sonho e do desejo de todo leitor. Ou melhor: o Junco que serve de paisagem ao romance O cachorro e o lobo não é mais uma cidadela plantada na “boca do sertão” baiano, nas estradas de poeira levantada pelas sandálias da gente de um outro Antônio, que erguia igrejas e torres. O engenho da ficção integrou o lugarejo desconhecido na geografia literária do mundo contemporâneo.

A Macondo de Antônio Torres e o Junco de García Márquez (que embaralham e confundem capitais de países de sonhos tão diversos) são cidades um pouco parecidas. Cidades que flutuam na memória e na sensibilidade de milhares de leitores.

O romancista de Essa terra, de Balada da infância perdida, escreveu uma Carta ao Bispo, pegou Um táxi para Viena d’áustria e, finalmente, conseguiu reunir frente a frente duas espécies próximas e distantes: O cachorro e o lobo.

LUGAR DE SONHO – Para juntar antepassados e pósteros de uma mesma família de migrantes desgarrados, o autor precisou criar um habitat adequado. Um lugar de sonho plantado sobre pálpebras abertas e olhos esbugalhados. Ele construiu uma cidade de todos nós, situada naquele espaço tão grande e desconhecido para o perplexo viajante, que Drummond cunhou o topônimo Oropa-França-Bahia, perdido nos confins do horizonte e da razão.

Com o progresso do Centro-Sul do país e o desequilíbrio crescente entre esta região e o Nordeste, uma nova humanidade de retirantes – não mais os retirantes da seca, mostrados pelo romance regional – habita as páginas da ficção torreana. São os migrantes de um outro Brasil, do Brasil perdido no tempo e nas roças abandonadas. Com a ilusão criada pelas luzes da Cidade Grande, o homem do Nordeste que plantava e colhia a vida nesse chão, nessa terra, foi plantar sonhos e desilusões nas construções de concreto de São Paulo.

é este homem, retirante de si, que Antônio Torres vai buscar para constituir a população da sua cidadela de papel. O velho lobo espalhou as crias pelo mundo. Mas, em vez de lobos, capazes de habitar as tocas do mato e liderar a matilha, nascem cachorros desgarrados, perambulando pelas ruas da cidade.

Uns são atropelados pelas máquinas. Outros desaparecem. Um ou outro cão solitário consegue se fazer ouvir, uivando para a lua, na esperança de algum dia reunir a matilha, como faziam os ancestrais.

Livro linear, que conta uma história palpável e de fácil assimilação, O cachorro e o lobo é também um romance emblemático, alegórico, onde leituras paralelas conferem uma nova dimensão à linearidade da fábula.

O forte deste livro é retomar o gosto de bem contar uma história, como faziam os narradores de ontem e como fazem os narradores de hoje e de sempre. Cervantes, Maupassant, Camilo, Machado, Torga, Amado ou Adonias.

Josué Montello, no Diário da noite iluminada, diz que todo o drama de Narciso está no fato da imagem que ele tem de si mesmo não coincidir com a imagem vista pelos outros. E lembra: por vezes, não é outro o desencontro do autor e do leitor.

Mas quando o artista vai se tornando senhor do seu engenho, o tiro no escuro, ou o experimento meramente probatório, na busca desesperada de fazer coincidir as duas imagens, cede lugar à confluência da emoção do autor para a sensibilidade do leitor. é o que acontece neste novo livro de Antonio Torres.

Farrapos de memória, cerzidos com fios dourados de ficção, ganham consistência ao serem aplicados à entretela do romance. Uma resistente costura de tacos multiformes constitui o bordado, ou o novo tecido, feito de materiais de natureza diversa para formar a textura una e bem urdida de uma bela colcha de retalhos onde nasceram o cachorro e o lobo.

Cid Seixas é jornalista e escritor. Dedica-se à crítica.

SEIXAS, Cid. O cachorro e o lobo: Uma fábula do bicho homem. A Tarde, coluna “Leitura Crítica”, caderno 2, p. 5, 30 jun 97.

SEIXAS, Cid. Antonio Torres escreve a fábula do bicho-homem. O Estado de S. Paulo, Caderno 2, p. 3, 8 de novembro de 1997. (Este texto resulta de uma nova versão do artigo anterior.)

. TORRES, Antonio: O cachorro e o lobo. Rio de Janeiro, Record, 1997.