Jornal da Tarde, São Paulo, 18/05/1991
Oscar D’Ambrosio
Os dez capítulos do novo livro de Antônio Torres confirmam um traço marcante de sua obra: frases curtas, despojadas e diretas. O protagonista, um publicitário, é uma das mais preciosas expressões literárias modernas do drama do desemprego.
Ao estrear em 1972 com Um Cão Uivando para a Lua, Antônio Torres logo despertou a atenção da critica. Não só ganhou o Prêmio de Revelação, mas também começou uma carreira que, ao longo do tempo, o coloca, junto a Ignácio de Loyola Brandão, Ivan Ângelo, Márcio de Souza, Oswaldo França Jr. e João Ubaldo Ribeiro, como um dos principais expoentes de uma geração que não será esquecida na literatura brasileira.
Um Táxi para Viena d’Áustria, sétimo romance de Torres, confirma as previsões da crítica. O autor não se limita apenas a exibir a apurada técnica de obras anteriores, mas atinge o nível dos mestres, parodiando a si mesmo e evocando, com sutilezas e ironia, textos anteriores, publicados em vários momentos de sua trajetória ficcional.
O presente romance tem um eixo aparentemente simples: um publicitário desempregado, imerso em sua angústia, marca um encontro com um amigo que não via há muito tempo e o mata. Após o crime, toma um táxi. Porém, este não sai do lugar. Um enorme congestionamento parou a cidade. O assassino começa então uma viagem interior que mistura surrealismo, dados biográficos, humor e ácida visão da realidade nacional.
Os dez capítulos da obra confirmaram um traço marcante de Torres: suas frases são curtas, despojadas e diretas. O publicitário, comicamente chamado Watson Rosavelti Campos, é uma das mais preciosas expressões literárias modernas do drama do desemprego. Sem ter o que fazer, Watson afunda em uma mar de bebida, a espera de telefonemas salvadores que nunca virão, improváveis ajudas de amigos e desespero.
A vítima de Watson é Cabralzinho, morto com dois tiros. Trata-se de um escritor de pouco sucesso. Subsiste graças a uma bolsa, sendo que, há alguns anos, fora internado em um manicômio, tendo passado por um tratamento de eletrochoques. Curiosamente, em Um Cão Uivando para a Lua, encontra-se exatamente o drama existencial de um personagem em um desumano hospital psiquiátrico.
O desemprego leva Watson a beber (“Andar, andar, até ficar de pé redondo, como um bêbado”). Esta imagem já tinha sido utilizada em Os Homens dos Pés Redondos (Francisco Alves, 1973), obra que mostra os últimos tempos do regime salazarista em Portugal. O contexto é outro, mas a simbologia é a mesma. Esmagados pelo autoritarismo, os lusos caminhavam morosamente rumo ao nada. O mesmo acontece com o publicitário desempregado de Um Táxi para Viena d’Áustria.
Vencido pela falta de perspectivas, o protagonista também se encaixa com perfeição em uma frase de Essa Terra: “O mundo é um relógio que perdeu o eixo: cada ponteiro vai para seu lado e cada louco fica no seu canto”. O romance da década de 70 referia-se ao patético drama das migrações internas e das terras abandonadas, porém seu tom triste, caótico e fragmentado vale também para o universo urbano retratado por Antônio Torres.
Todavia, torna-se ainda mais revelador o diálogo entre Balada da Infância Perdida e o recente romance. As reminiscências, alucinações, flash-backs, digressões e divagações de Watson no táxi parado confirmam a tese central de a Balada…: a utilização das experiências pessoais e das emoções do passado seria o principal caminho para uma pessoa reconstruir-se, tomando coragem para enfrentar-se no espelho e, em seguida, para recolocar-se na sociedade.
Um Táxi… apresenta o tom de um roteiro felliniano. As criticas ao modus vivendi urbano e carioca são avassaladoras. A epígrafe de Carta ao Bispo, pinçada de Nietzche, já apontava para o desejo de Torres de desmontar, através de sua prosa, os pilares de um país carcomido pelos cupins da corrupção, da incompetência e da hipocrisia: “Resta-nos a arte para não morrermos de verdade”.
O fato de Antônio Torres ser publicitário também não pode ser ignorado. Não se trata simplesmente de ver em Watson um alter-ego, mas de conceber esse personagem, som seu tom derrisório, como uma ácida representação dos bastidores do mundo da propaganda. Nada resiste aos olhos de um autor aparentemente convicto de que a sociedade está desmoronando.
A guerra estaria em todo lugar: nos morros, nas ruas, no campo, no emprego e no desemprego. Ao considerar a velocidade e o cinismo como “a receita universal da modernidade”, Watson nos oferece uma pista para apreender o verdadeiro motivo do assassinato de Cabralzinho. Trata-se de mais um momento de extremo talento do autor.
Cabralzinho padece de insuportáveis dores de barriga. Contudo, Watson apenas dispara a arma que encontra sobre uma mesa quando a barriga do amigo começa a falar. Com dois tiros, ela se cala. Podemos considerá-la então como a parte do corpo que dava voz e vazão às dores, medos e agonias de todo um povo, constituindo uma lúcida metáfora do subdesenvolvimento nacional.
As terríveis pontadas de Cabralzinho são sentidas o dia inteiro por todo o país. Após o assassinato, dentro do táxi, o rádio toca a Missa em Dó Maior, de Mozart. Daí os sonhos de Watson de ir para a harmoniosa e poética Viena e de subir ao topo da montanha mais alta e esperar “até que venha uma nuvem e me leve para um lugar tão longe que nem Deus sabe onde fica”.
Em Adeus Velho, Antônio Torres já pregava, embora no universo nordestino, a despedida dos absurdos do passado para o vislumbre de um glorioso futuro. Agora, mais maduro, o escritor baiano propõe, em tom de realismo fantástico, o extermínio do subdesenvolvimento para que todos tenham a possibilidade de sonhar ao ouvir Mozart e de alcançar as alturas sem a necessidade de encontrar Deus, mas apenas a de recuperar o brilho e o equilíbrio interior há muito tempo perdidos.