Indignação sustenta novo romance de Antônio Torres

Folha de São Paulo, 1º de Junho de 1991
José Geraldo Couto

À esquerda a capa brasileira com a foto do reflexo de prédios em uma superfície curva, a segunda capa toda vermelha, a terceira com textura semelhante a couro e a quarta é a mais recente com um prédio vienense na parte superior e a silueta de morros cariocas na parte inferior
Quatro capas para Um Táxi para Viena D’Áustria

A literatura de Antônio Torres sempre esteve sintonizada com as tendências literárias de seu tempo, o que não significa adesão às modas correntes, mas, pelo contrário, uma tomada de posição crítica e pessoal diante delas. Seu sétimo romance, o pequeno “Um Táxi para Viena d’Áustria”, não apenas dá continuidade a esse diálogo com a literatura brasileira contemporânea como ocupa nele um papel singular.

A “ação” do livro transcorre em uma única tarde, no espaço de um quarteirão de Ipanema. É ali que Watson Rosavelti Campos, um redator publicitário desempregado, mata um amigo que não via há 20 anos, entra num táxi e, ao ouvir pelo rádio a “Missa em Dó Maior”, de Mozart, “viaja” no tempo e no espaço para frente e para trás, enquanto o carro, preso por um congestionamento-monstro, não sai do lugar.

Duas coisas chamam a atenção à leitura dessa breve sinopse. A primeira delas é a tensão entre um tempo narrativo extremamente concentrado e uma amplitude espacial e temporal virtualmente sem limites, facultada pelo delírio do protagonista. Um procedimento semelhante aparece em quase toda a obra do autor, e de modo especial em “Carta ao Bispo” (1979). A segunda coisa é a (falsa) impressão de que o romance filia-se a uma certa ficção ligeira (no sentido de veloz e também no de superficial) recente, marcada por um cosmopolitismo de fachada, por uma pseudomodernidade asséptica e acrítica. O que distancia Torres dessa tendência – e até o opõe a ela – é a ironia. E uma sagrada ira que o leva a todo momento a proclamar estridentemente a miséria material, política e cultural que cerca o protagonista (seu próprio nome, Rosavelti, é um erro de transcrição), estabelecendo os contornos de seu drama individual.

O fluxo narrativo é frenético e envolvente, alternando com desenvoltura a terceira e a primeira pessoas, a gíria cotidiana e a paródia do jargão publicitário, a gravidade e o deboche, o tom confessional e o distanciamento metalingüístico. Assim como “Essa Terra” (1976) acertava contas com o romance regionalista, “Um Táxi…” de certo modo funde e resume criticamente inúmeras vertentes da ficção urbana brasileira das últimas décadas: a violência verbal de Ruben Fonseca (especialmente o de “O Cobrador”); a fragmentação e colagem do “Zero” de Loyola Brandão; o naturalismo de João Antônio; a vivacidade “pop” de Roberto Drummond…

Ao trabalhar essas linhas disparatas de forma absolutamente pessoal e sem concessões, Torres construiu uma obra irregular, que às vezes dá a impressão de um conto esticado demais, em outras a de um romance inacabado. O livro foi reescrito várias vezes. Um último trabalho de “copy desk” que lhe aparasse as arestas talvez fosse fatal para o brilho e a contundência do conjunto. Exagerado, freqüentemente redundante, quase panfletário, mas sobre tudo radical e independente. “Um Táxi para Viena d’Áustria” é um livro alimentado pela indignação e pelo talento de um artista que tem o que dizer sobre seu tempo – e sabe como dizê-lo.