O suicídio do herói

Revista Veja, 30 de Junho, 1976.
Affonso Romano de Sant’Anna.

Capas de Essa Terra

Poderia se chamar também “a volta do herói” esse romance em que Antônio Torres conta como o baiano Nelo larga sua família, vai para São Paulo e regressa, vinte anos depois, para se enforcar aos olhos do irmão mais novo e dos parentes, que o julgavam um indivíduo bem sucedido.

O livro – ilustrado por Elifas Andreato – retrata o herói, ou melhor, o anti-herói como o são também o repórter de “Um Cão Uivando para a Lua” (1972) e o publicitário de “Os Homens dos Pés Redondos” (1973), livros anteriores com os quais Torres marcou seu lugar entre os novos ficcionistas. Unindo os três livros, aparece não apenas a temática da loucura e da miséria social, mas a referência à cidade baiana de Junco, que assume um destaque maior em “Essa Terra” (Junco é a cidade natal do próprio Torres).

Tragédias – A história é contada pelo irmão mais novo Totonhim, e narra a decomposição de um mito. Assim, Nelo, que era “um homem belo e rico, com seus dentes de outro, seu terno folgado e quente de casimira, seus raybans, seu rádio de pilha e um relógio que brilha mais do que a luz do dia”, vai se convertendo num bêbado incapaz de criar uma família. Cheio de doenças, encontra no suicídio o gesto capaz de libertá-lo da falsa imagem que a família nele cultivava.

A história, contudo, não se reduz a esse eixo dramático. Além do lado psicológico ou individual, interessa ao romancista o contexto social onde isto se gera. Daí que a tragédia do individuo e a tragédia da comunidade estejam interligadas neste livro. E ao intitulá-lo “Essa Terra” e ao situá-lo no nordeste. Antônio Torres está se filiando a uma tradição literária que tem um de seus melhores momentos no romance social de 1930.

Mas poderia surgir a pergunta: não estaria o autor entrando perigosamente numa terra exaurida já pela ficção de um Graciliano Ramos especialmente com seu “Vidas Secas” (1937)?

Outro nordeste – A melhor resposta poderia ser encontrada no própria Graciliano, a quem Otávio de Faria advertiria de que o sertão, esgotado, não dava mais romance. Ao que o escritor alagoano retrucou: “Santo Deus! Como se pode estabelecer limitações para essas coisas” – e fez a obra que fez. Torres, como Graciliano, optou pelo mais honesto: escrever sobre o seu nordeste. E assim como Graciliano em carta a José Condé identificava as personagens de “Vidas Secas”, mostrando que saíram de sua família, “Essa Terra” tem no lastro biográfico a sua força original.

Tecnicamente o livro de Torres (e de muitos ficcionistas jovens brasileiros) mostra um avanço em relação à montagem dos romances sociais de 1930. à narrativa linear e cronológica ele prefere um desencadeamento em que passado, presente e futuro se cruzam oferecendo uma estória às vezes de acompanhar. Em torno da tragédia central, pequenas outras narrações reafirmam a tensão patética das personagens.

Cabe, no entanto, a cada época, educar os seus bons leitores. O publico de 1930 teve também que aprender a re-ler o Brasil. No caso específico deste livro, existe toda uma leitura acompanhada por uma introdução e um “suplemento de trabalho” endereçado a alunos e professores. E através de uma aliança com a escola procurar formar um público novo que se deixe transformar por uma linguagem também nova.


Uma análise mais profunda deste livro mostra que não se trata somente da representação da miséria do Junco ou do Sertão Brasileiro, mas sobretudo de uma sondagem que se inicia (ou prossegue): a sondagem de uma condição social, através do mergulho no caos individual que acaba nos conduzindo às origens mais gerais da culpa, onde se encontram o autor, o personagem e o leitor, sofrendo na pela a fragmentação do homem, desde que a civilização criou o abismo entre a enxada e a caneta”.

Lígia Chiapinni Moraes Leite, da Universidade de São Paulo, no prefácio à primeira edição do “Essa Terra” (1976).

A terra foi lavrada. Brotaram palavras

O Estado de São Paulo, 9 de dezembro de 1984
Cremilda Medina

Capas de Essa Terra

Qual escritor – ainda mais se vier dos confins da terra brasileira – que não se emocionaria ao ver um livro seu, em francês, com destaque numa boa livraria de paris? Antônio Torres, que começou a publicar nos anos 70 e ficou mais conhecido depois do sucesso de “Essa Terra”, passou agora por essa experiência quando compareceu ao lançamento do mesmo livro (Cette Terre) na França. Já se vai acostumando às edições estrangeiras: a Editorial Sudamérica lançou Un perro aullándole a la luna, “Essa Terra” está também traduzido para o inglês e seus contos figuram em antologias no Canadá, México, Polônia e Argentina.

Não que se embriague com a expansão além da fronteira brasileira. Ele, como a generalidade dos autores nacionais, sabe que este é o autêntico espaço de difusão para a literatura brasileira. Mas seu lado ingênuo (adolescente, por que não?) sente um certo frisson diante de um vitrina parisiense, mesmo que a voz do Brasil se dilua no meio de um mar de outras vozes internacionais. Talvez porque o menino Antônio não esqueça nunca que saiu da terra, da enxada, no interior mais remoto da Bahia, e conseguiu chegar, quase por milagre de sobrevivência, ao domínio da máquina de escrever.

Junco, Bahia, 1953. Antônio Torres, filho de agricultores assolados pelas intermitentes secas do Nordeste, teve a grande chance de aprender a ler e escrever com a professorinha abnegada que por lá peregrinou. Eram 11 filhos e Antônio devorou as seletas emprestadas pela professora, adquiriu o dom mágico de saber ler e a comunidade o consagrou: foi uma criança muito especial que percebeu o significado e o serviço a que se presta a escrita e a alfabetização. Era requisitado para ler e escrever cartas, único vínculo de tanta gente que saiu das agruras do sertão para nunca mais voltar. Viúvas de maridos vivos ou namoradas que perdiam seus companheiros, obrigados a partir. Era ele quem escrevia as declarações de amor e de dor. Segunda-feira, chegava o correio no lombo do burro e, com ele, a esperança de vida que fatalmente teria de passar pelos olhos abertos, atentos, de Antônio. Nos outros dias da semana, nas horas de descanso do campo, era os ouvidos do menino que se perfilavam para captar os romances, as estórias de pavão misterioso da fabulação popular.

Os auditórios de Paris, por ocasião do lançamento de Cette Terre, deliraram quando o escritor brasileiro falou dessas raízes. Nada de realismo fantástico, mas sim fantástica realidade. Disse mais para europeus estupefatos: desde sempre valorizou a palavra como serviço muito importante. Na hora em que morria alguém no Junco, chamavam-no para ler o missal. O compromisso com a escrita pesa sobre sua cabeça até hoje, mas foi só em 1975, em um debate público, que se conscientizou: é um escritor fatalmente engajado com a palavra escrita. Tudo o resto veio por acréscimo: conseguiu ir estudar no ginásio em Alagoinhas, descobriu as bibliotecas e suas almas – Tolstói, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Monteiro Lobato e tudo que caísse na rede. Trabalhava numa sorveteria e, sempre que dava, corria para o cinema, com programa duplo, os filmes mexicanos da Pelmex, as chanchadas brasileiras, os musicais de Hollywood; vieram também James Dean e Elvis Presley…

Já em Alagoinhas, menino metido, escrevia para o jornal local. Quase foi expulso do ginásio, porque tratou da escola sob o titulo – “A Casa Grande de Cunha”. Foi difícil tentar convencer Cunha, o dono da escola, que esse titulo não tinha nenhuma intenção… O jornal do ginásio também lhe serviu de prática na profissão que logo se impôs. Paralelamente, lia muito poesia. Como bom baiano, não fugia ao império de Castro Alves, mas também se deliciava com Gonçalves Dias e Augusto dos Anjos. Até aí, pura vivência de um mundo interiorano. Com o serviço militar, porém, deslocou-se para Salvador, a primeira grande capital em sua vida.

Jogou alto. Sempre. Um borracheiro de Alagoinhas, que veio a Salvador pelo trem Marta Rocha (não havia asfalto), o apresentou ao editor-chefe do Jornal da Bahia. Quase morreu de emoção, as pernas tremendo. Pois ficou no jornal e caiu na realidade imediatamente. Mandaram-no para o cais do porto fazer matéria, não viu nada acontecendo e morreu de desgosto quando, no outro dia, os jornais de Salvador falavam de contrabando naquele mesmo cais em que não descobrira notícia. Essa dura experiência jornalística só é compatível a outra, no mundo da intelectualidade, quando, no aniversário do patrão, as pessoas só comentavam Proust. Ele, homem da roça, guardou um trauma que o empurrou a vida toda à procura de uma permanente atualização nas leituras.

O jornalismo, tirou de letra. A literatura, descascou-a e descasca-a até hoje com empenho e paixão. De Salvador para São Paulo, para trabalhar na Última Hora, muitos quilômetros rodados. A reportagem de rua e a linguagem dos paulistas, de início, o assustaram, não entendia bem o que escreviam, mas prestou muita atenção e se desempenhou. Saiu da era da reportagem de bonde para a frota de jipe. O que sempre se ressaltava era o pulso verbal desse baiano treinado em cartas, missais, pavões misteriosos, poemas, crônicas, reportagens e outros desafios do cotidiano. Por isso, não foi difícil ele, da enxada em Junco nos anos 40, passar para a publicidade, em São Paulo, nos anos 60. Em 1965, já então um redator muito bem pago com perigo de se escravizar para sempre à publicidade, fugiu. Foi para Portugal conhecer outros mundos, provas de outra aventura. Desempregado, sem eira nem beira, um anjo bom veio em socorro, o recolheu à sua casa e alimentou-o da mais pura literatura.

Antônio Torres deve ao poeta português Alexandre O’Neill não um mecenato, porque o poeta é pobre em toda parte, mas uma amizade e uma bagagem de leitura. Nos quatro meses em que ficou desempregado foi plantado às margens de Guimarães Rosa, entre outros pelas mãos de O’Neill. Por incrível que pareça, o poeta português o levou para Mário de Andrade, João Cabral de Melo Neto, entre muitos autores de todas as latitudes. Enquanto seus companheiros de ofício ou afinidades procuravam os Estados Unidos para se aperfeiçoarem, Torres se achou em Portugal. Se achou e achou seu texto. Mais uma vez O’Neill teve um papel fundamental. Dizia ele, vocês, brasileiros, sofrem de um complexo de inferioridade cultural. Então ele percebeu e agarrou seu texto, um texto mergulhado no Brasil, sem traumas de Proust na consciência.

Deve também ao romance de 30 – Jorge Amado, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz –, de quem é eterno aprendiz, a inspiração ficcional, Transpira muito até dar forma ao texto. Terminar um romance representa muita morte. Persegue, no fundo, a auto-superação: só se dá por atacado se uma pagina o surpreende, se sente uma nova dicção. O primeiro livro – “Um Cão Uivando para a Lua” (1972) – marchou em compasso de espera muito tempo. Não achava a primeira frase, para ele essencial. Dois anos sem encontrá-la. Um dia, numa clínica psiquiátrica do Rio de Janeiro, diante do amigo alienado, ficou sob o impacto da cena Só se acalmou quando jogou no papel um conto em que uma pessoa, alucinada, fala consigo mesma. Daí parar o romance, se passaram oito meses, Mas Torres adverte: por trás desses oito meses, o período mais curto em que escreveu um livro, estavam 30 anos de vida.

O segundo livro – “Os homens de Pés Redondos” – nasceu ainda quando vivia em Portugal. Sentado na Praça de Londres, no primeiro dia de Lisboa, viu a gente que passava, sentiu como que os pés redondos, cansados de tanto rodar. Ao escrever seus primeiros romances, nos anos 70, sentia-se assim de pés redondos, a literatura saindo como quem arranca uma espinha da garganta. Para uma geração de direta convivência com o Cinema Novo com o Teatro de Arena e com a Oficina de São Paulo, cm a descoberta de Oduvaldo Vianna Filho (Vianninha) e com ele, o conhecimento do homem brasileiro, a construção de personagem, foi como que uma compulsão expressar algumas das estórias que se acumulavam no baú. O romance é o espaço preferido, justamente porque é uma estória cheia de estórias, uma base de conflito e tensão. Nunca abandonou o mundo de Junco, a infância cheia de narrativas, os casos da cultura oral. À medida em que entrou nas vísceras da cidade grande, pressentiu que este é um mundo sem fábulas. As fábulas vivem com seu pai, seu avô. Ele, no entanto, assumiu as conseqüências urbanas. O conflito básico, em ternos estéticos – também um grande desafio -, é plasmar a fabulação tradicional com a narrativa urbana, a toada com o rock’d roll.

Malcolm Silverman, estudioso norte-americano, ao analisar a ficção moderna brasileira (em livro editado pela Ed. Civilização Brasileira), cita essa variação de Torres a partir mesmo dos dois primeiros romances que seriam urbanos, e o terceiro (e mais bem-sucedido_, que seria rural: “As revoltantes realidades contidas nas limitações geográficas de Essa Terra variam somente em contexto, se comparadas às de Os homens dos pés redondos e Um Cão Uivando para Lua. O pandemônio urbano, embora menos de molde a produzir um trauma psicológico imediato (como uma seca ou uma enchente), submete a resistência humana a uma prova igualmente dura”. Silverman que estuda, neste trabalho, até o quarto romance (“Cartas ao Bispo”), concluiu que “Antônio Torres emprega a figura onipresente de Gil como uma espécie de trampolim para o tema esterno das vicissitudes da vida, e também como um espelho passivo das iniqüidades sociais (por exemplo, a pobreza endêmica nordestina)”. O que quer dizer, no fundo, é que Antônio Torres, não importa onde se localiza geograficamente – se no campo ou na cidade -, está do lado dessas vicissitudes. “A linguagem reforça esta temática, sendo espontânea, despretensiosa e repleta de imagens populares,” O Crítico norte-americano arrisca uma certa fórmula, percebida no quarto livro, que seria uma mistura da tese neonaturalista com a introspecção modernista: “O autor demonstra senso de objetividade na escolha dos seus temas e um calculado refinamento de linguagem”.

Foi exatamente essa linguagem de transfiguração da realidade sofrida do sertão ou da metrópole que levou os franceses a saudades Gette Terre como “um testemunho e porta-voz de uma população que se esforça obstinadamente por sobreviver em meio ao barulho e à fúria de uma terra e, transe” e, por outro lado, um testemunho traçado pelas mãos de “um poeta e pintor”. Torres, modestamente, se alia aos ficcionistas brasileiros e aponta para o esforço dos anos 70: beber das águas do mais modernos escritores, Machado de Assis, percorrer a ética e a estética do romance dos anos 30, entrar no grande rio de unidade nacional, Guimarães Rosa, prestar atenção a duas diferentes contribuições –  Antônio Callado ( em “Quarup”) e Clarice Lispector –  e dar as mãos a todos os da ativa (presentes neta série), cada um com seu sotaque, e solidificar a identidade nacional, unindo os séculos que convivem neste território, sem esquecer a grande modernidade literária do continente e do mundo.

Um novo romance sairá, se tudo der certo, em 84. O estímulo de Paris valeu. Há um ano e meio não daí das 30 páginas iniciais, vai trabalhando no pão nosso de cada dia (a publicidade) e acredita que agora o livro deslanche. A cada novo parto as exigências de auto-superação são maiores. “Essa Terra” ficou marcado tanto no âmbito do público (grande audiência em São Paulo, Nordeste, da Bahia para cima) quanto na sua esfera emocional. Confessa que o sente como mais abrangente. Talvez o que lhe deu maior resposta como escrita a serviço do outro. Os olhos se enternecem ao lembrar que foi chamado para ir a São Paulo, convidado por baianos anônimos do ABC, seus conterrâneos de Junco, que queriam abraçar esse escritor da terra.

Bilhete a Antônio Torres

Jornal Folha da Tarde – São Paulo, 06/09/1976.
Torrieri Guimarães

Capas de Essa Terra

Eis aqui uma antiparábola. Não é o filho pródigo que está voltando à sua casa farta, rica, para uma festa de reencontro que deverá durar muitos dias – “porque estava perdido e foi encontrado”; nem é o filho mais novo, no ardor de sua juventude, que tivesse desejado conhecer o mundo e tudo quanto ele oferece de oportunidades para a recriação da vida, pelo contrário é o irmão mais velho que esteve fora, que lutou e sofreu, e agora volta; nem é o filho que regressa depois de ter perdido toda a sua fortuna, de ter esbanjado a sua parte da herança paterna, e ter comido a mesma comida disputada aos porcos – em vez disso se vê um homem no caminho da completa maturidade, cercado de um halo de heroísmo, que venceu a Grande Capital e volta para trazer aos seus as esperanças de uma redenção.

É o anti-herói, da antiparábola. E entretanto todo o romance de Antônio Torres acaba constituindo-se numa extraordinária parábola, densa de ensinamentos, que se precisa colher devagar, sem pressa, na dinâmica dos diálogos e no estudo sereno das situações, no confronto dos personagens e nos quadros de decadência física e moral que ele apresenta. A parábola de um homem que retorna a sua terra e sua gente para acionar velhos mecanismos de lembranças e permitir, a partir da frustração de sua imagem, que se deteriora e se destrói, uma apreensão completa da realidade que a todos envolve e condiciona. Como se o pobre enforcado, com seus despojos gloriosos, o relógio de pulso e os óculos rayban, ligado à história de todos e de cada um, como produto do meio, deflagrasse um processo de tomada de consciência.

Agora  que ele esta morto, e com ele o mito e as esperança, quebrada a imagem da grandeza sonhada, destruída a ponto entre a realidade e o sonho, é preciso que cada um, na medida de suas forças, aceite a sua derrota ou a sua miséria, ou se insurja contra eles, tentando fugir ao circulo vicioso das tradições. Da cultura cristalizada, do conformismo, da aceitação passiva dos desníveis sociais, refazendo a frágil ponte entre a Grande Ilusão (São Paulo) e a Dura Realidade (Junco). Apesar do nome da cidade e de seus personagens, o romance pode situar-se no universal, porque a situação que encena afeta a muitos grupos sociais, diz respeito a coletividades inteiras, que tanto podem ser a dos insulados no sertão, com seus costumes centenários e seus condicionamentos, despertados por estímulos que não compreendem e por isso também incapazes de um comportamento adequado – isto é, o pouco preparo para as técnicas novas de cultivo e de financiamento bancário, que resulta em um conflito eterno entre o moderno e o antigo – como também a luta de quaisquer comunidades pobres, com os sonhos dourados da sociedade de consumo (o automóvel, o televisor, os gastos facilitados) e a miséria sabiamente controlada por computadores. Antônio Torres dá um grande salto de “Um Cão Uivando para a Lua” para este “ESSA TERRA”. Menos discursivo, contido e sóbrio em sua linguagem, ele sabe agora conter-se no essencial de sua narrativa, reproduzindo com mais verdade e menos demagogia (no sentido clássico, irmão) a realidade social resultante do entrelaçamento daquelas vidas do Junco. O mesmo que dizer que os tipos não são aqui vistos por uma perspectiva ideal, mas reproduzidos em toda a sua grandeza e suas misérias; como se o autor tivesse melhor dosado as suas emoções, sem deixar se dominar por elas, mas conduzindo-as no sentido de uma recomposição de momentos básicos para uma montagem a mais exata dos quadros de sua denúncia.

E ai esta a palavra: Antônio Torres não escreve por diletantismo, nem por simples e utilitária profissão. E um pesquisador atento. Na raiz de seus trabalhos esta a ansiedade do artista que busca decifrar-se e decifrar aos seus iguais (para não ser devorado). Depois de ter esperado e sonhado, como Totonhim, ele compreende: e tendo compreendido, não pode mais ficar indiferente, acomodar-se, aceitar a velha e insustentável problemática de sua existência. Ele também precisa partir (o eu significa tentar a mudança). Para o homem comum, que é Totonhim, é imprescindível atravessar a ponte entre a Realidade e o Sonho, para reconstruir-se (ou buscar a reconstrução), definir-se.

Para o escritor resta (ainda) a palavra. Ele compreendeu, ele denuncia essa problemática social: a dissolução da família, pela miséria, pelo desamor, pela prostituição; a exploração da ignorância, o abismo entre gerações e entre pólos culturais e econômicos; a violência e o esfacelamento do homem que perdeu as raízes e despersonalizou-se. E denuncia. Como quem enxerga além dos véus das aparências.


“Desde João Guimarães Rosa não se apresentou nenhum escritor brasileiro que descrevesse, poeticamente e com vivência, o panorama belo-horrível do Sertão: o isolamento da noite tropical, quando o espírito dos mortos vem à superfície e os morcegos voltejam na penumbra, o revérbero do mormaço do meio-dia, o impiedoso calor causticante. Antônio Torres, que como menino escrevia cartas para os moradores da vila ou lhes lia as que raramente chegavam das distantes capitais, consegue neste curto romance uma verdadeira obra-prima.”

Wolfgang Eitel, no Süddeutsche Zeitung, Alemanha

A Terra Nossa de cada dia

Tribuna da Imprensa – Rio de Janeiro, 11-12 de dezembro de 1976.
Leonor Basseres

Capas de Essa Terra

Quem sou eu?

Quem é você?

Que receita foi usada na produção do seu vizinho? Aquele a quem você sorri vagamente todo dia à mesma hora no elevador?

Quantas colheres de sopa, de mãe, o fizeram tão gordinho? Quantas, de pai, lhe deixam assim a fronte úmida mesmo nos dias de temperatura amena?

Quantas pitadas de tio bêbado, quantas gotas do louco da cidade?

O tempo necessário de colocá-lo na batedeira?

Do que é feito gente, em nome de que pai, que filho, que espírito, que santos?

Fiquei surpresa ao ler Essa Terra, de Antônio Torres. Baiano de Alagoinhas (o que só soube por mero acaso recentemente), nunca foi um autor regional. Aí estão as provas, Um Cão Uivando Para a Lua, seu livro de estréia e o admirável Os Homens dos Pés Redondos. Neles aceitou dissecar o homem qualquer que fosse o seu universo: o limitado de um hospital psiquiátrico, ou o amplo de um país em plena efervescência política, preste a explodir. E que explodiu. Proféticas previsões de artista.

Custei a entender. Mas quando o consegui foi um só deslumbramento.

Busco nas estantes os livros mencionados. Não os encontro. Minhas estantes são de alta rotatividade: não sou avara nem ciumenta das minhas jóias. Os homens dos Pés Redondos, talvez estejam com Nina. Lembro que não parou de folheá-lo num jantarzinho aqui em casa. Um Cão, talvez eu o tenha levado para Petrópolis, para reler nas noites frias de inverno. Assim, despojada, não posso citar trechos que confirmem a minha idéia. E você, leitor, tem que confiar apenas na minha lembrança e vago instinto. Ou então, compre-os para ler. Estará adquirindo clássicos, não enchendo sua casa de lombadas vazias.

Ainda vivemos num país de panelinhas literárias, de “donos da bola”. Livro chocante, grosseiro, meramente episódico, dá manchetes, infinitas badalações. Talvez porque fujam a esses negocinhos pára-literários, Antônio Torres e Ignacio Loyola Brandão, alguns dos mais límpidos e indiscutíveis talentos da nova geração, sejam tão pouco badalados. Talvez, num nível mínimo para não dar na vista.

Loyola ainda tem a glória pitoresca de ter sido publicado primeiro na Itália. E só depois encontrado uma jovem editora brasileira com peito e com visão bastantes para lançá-lo no Brasil.

Torres, desde o começo, teve mesmo que enfrentar os tupiniquins…

Essa Terra não é a historia de uma terra mas do seu produto humano.

O que fizeram dele e com ele.

E daí? pergunta você, leitor. Não tentaram todos os grandes explicar através do ambiente a criação do santo ou do monstro?

Sim tentaram. Do “Pére Goriot”, de Balzac, a Raskolnikov de Dostoyesky. Todos condenados antes de que a ação do livro se iniciasse. Repositórios de um caldeamento maldito e inelutável.

Então, qual é o grande achado, a novidade descoberta e desenvolvida por Torres?

Tão simples quanto inacreditável!

Todos os seus antecessores, na cauda da Renascença, jogaram o jogo do “chiaro oscuro”: sociedade alienizante e castradora, de um lado: personagem/ pessoa/ produto/ vitima, do outro.

Essa Terra não é nada disso. As pessoas e os cenários se somam, se absorvem, criam um organismo único que tem a obrigação de desafiar ou pactuar com a vida. Não há perdão, porque não há culpa. Nenhum ser leito, é conspurcado, vilipendiado. Todos vão ter que viver com o que são, e o que são é o terem sido.

O narrador de Essa Terra introjetou tudo. É tudo. Até a lembrança do irmão, primeiro vitorioso, depois morto. Que nunca consegue morrer completamente já que nunca viveu de vida própria, independente. E só perdura em Totoninho, enquanto lhe cravam os cravos do caixão.

Devorou, absorveu, transformou, somou ao seu quadro genético a loucura da mãe, as ladainhas do pai, cantadas ao amanhecer. O chefe de policia, diluído e vencido. Amores mal gastados, vinganças sem sentido.

Tudo, num só sentido. Que ele os viva todos. Ou que não se viva nenhum.

Não há vários personagens em Essa Terra. Há um só. Que, às vezes, como se descasca uma cebola, consegue se descascar e deixar um rastro sangrento. Consciente de que tudo será assim. E desse assim deve partir.

Porque ele é. E quando mais doa, mais será.

Estranho livro nordestino onde a natureza e o meio nunca são culpados. Apenas fatores de precipitação das paixões humanas.

Tempo e lugar importa? Se somos todos um mosáico cujo padrão podemos modificar apenas ligeiramente num esforço de consciência e auto-reconhecimento.

Se não há o crime original, pode haver castigo?

Piedade, paternalismos?

Livre arbítrio? Conversa, há séculos impingida e venerada.

Torres respeita os seus personagens. Contra eles não comete a injúria da pena. Quem pode realmente optar, se no escuro o sentido da palavra é escamoteado?

Com tudo isso, não quero dizer que Antônio Torres seja um fatalista. Longe disso. Apenas não procura esconder a cabeça na areia e, assim, sair lavado do pecado original.

Acho que desde o inicio da sua obra literária persegue o mesmo fio da meada. Se agora montou o seu coreto na Bahia, é porque lhe parecia um universo mais compacto, palmilhado. Tão limitado e vasto cenário como uma Grécia de Eurípedes.

É preciso, de vez em quanto, que a gente se olhe no espelho, que assista aos traços diluídos sôfregos por se adaptarem à máscara.

Forçar a isso é a obrigação e a meta do artista.

Nem sempre precisamos ser fantoches, se assumirmos essa parte nossa e, portanto, compreendermos de quê os fantoches são feitos. Em geral, do nosso sangue, da nossa ansiedade. Do nosso, nosso, que nos inibe de levantar a espada em causa própria.

Aí estaremos livres para dar os primeiros passos adiante.

Torres não lança mão do absurdo e do fantástico. Disso se encarrega a vida. Ele apenas registra, sublinhando, aqui e ali, a mão forte do “destino”.

Como arma, brande a palavra escrita, sua íntima amiga. E, com ela, para os sonhos de todos nós que, queiram ou não queiram, um dia se transformarão na rica semeadura.

Nesse livro, não há cronologia. As falas se misturam, às vezes num só período. Tudo se trança e se destrança, como na memória. Figura e fundo se alternam na conquista do primeiro plano, exatamente como nesse longo balé que é a vida.

Essa Terra, um brado de verdade de alguém que conseguiu ver, se vendo.

E retoma, não como uma pergunta aflita, mas como o desafio maior da humanidade, a velha frase: “E agora, José?”

Apenas uma amostra um pequeno exemplo:

“… Foi então que comecei a me sentir perdido, desamparado, sozinho. Tudo o que me restava era um imenso absurdo. Mamãe Absurdo, Papai Absurdo. Eu Absurdo. “Vives por um fio de puro acaso”. E te sentes filho desse acaso. A revolta, outra vez e como sempre, mas agora maior, mais perigosa. Não morrerás de susto, bala ou vício. Morrerás atolado em problemas, a doce herança que te legaram…”

Essa terra na cidade que se abre para a morte

Jornal da Tarde – São Paulo, 24/07/1976.
Leo Gilson Ribeiro

Capas de Essa Terra

A grande cidade não tem lugar no sofá das musas.

De Tchekov a Steinbeck, de John dos Passos a Eça de Queiroz, nos contrates entre “A Cidade e As Serras”, o campo perpetua a saudade dos contatos humanos e da relação artesanal que o homem mantém com seu trabalho, e a metrópole é a imaginação para o anonimato de um trabalho mecânico e sem dignidade. Como no cinema, o epitáfio do trabalhador moderno é a máquina que enlouqueceu o operário de Charles Chaplin em “Tempos Modernos”. Como nos romances naturalistas de Zola, a revolução industrial, no Brasil ou na França, não criou só a multiplicação do lucro: colocaram na linha de montagem, triturando-os, os próprios sentimentos humanos. Ao dividir tarefas, isolou os seres humanos numa produção brutal e mecanizada.

Na literatura contemporânea do Brasil, a transformação de uma sociedade rural em amontoados de favelas, cortiços e bairros elegantes  encontrou em São Paulo seu laboratório ideal. Antônio Torres , com “Essa Terra”, demarca nitidamente o contraste entre o interior – de estrutura feudal , miserável, mas de valores e feições humanamente reconhecíveis – e São Paulo, sem rosto nem forma, um falso Eldorado onde  ganhar a vida  significa perder o seu sentido. A alienação utilitarista do emprego que se dará à energia humana já tinha sido analisada pelo autor em seus livros anteriores, “Um Cão Uivando para a Lua” e “Os Homens dos Pés Redondos”. Neles, tanto o repórter de um jornal como o publicitário de sucesso são engrenagens desse mecanismo maior que eles apenas fotografaram, células desse organismo devastado pela leucemia.

Em “Essa Terra” seu alvo pertinente é o progresso formam, feito de lantejoulas; o homem da roça arruinado pelos empréstimos do banco, deslumbrado com o radinho de pilha, o relógio, o arado substituído pela oficina mecânica e pelo posto de gasolina. As famílias são igualmente pilhadas, de forma crescente: de suas propriedades, que diminuem de geração a geração, de seus filhos que emigraram para São Paulo, da autenticidade das relaçeõs humanas quando as pessoas tinham nomes e não cargos. De forma exacerbada, o escritor sugere que a caneta mata a palavra, o papel asfixia a fala.

Felizmente, Antônio Torres tem suficiente discernimento para não encampar a idéia de que a aldeia, com suas virtudes devoradas pelo asfalto, é aquele mundo inocente, do homem selvagem de Rousseau, ainda não corrompido pela civilização. Ele não vê o meio rural como uma paisagem bucólica, da qual a técnica foi abolida numa volta absurda ao passado anterior à revolução industrial. Como em seus livros anteriores, Antônio Torres acumula elementos para denunciar toda uma estrutura social, que abrange “a cidade e as serras”. Mostra que se a roça não isola seus habitantes, mantendo sua identidade no agrupamento social, por outro lado sufoca com o latifúndio, o conservadorismo, o patriarcalismo, qualquer perspectiva de melhora. O campo brasileiro é o atoleiro da ignorância, da fome, do desmantelamento. A cidade é a troca dessa injustiça particular por uma injustiça mais ampla e mais amorfa. É sintomático que logo no primeiro capítulo Nelo, o irmão que foi da Bahia para São Paulo, apareça enforcado: o suicídio é a impossibilidade de escolher entre as duas monstruosas opções: afinal, ficar ou partir desemboca tudo no mesmo fracasso.

Todo o livro passa a ser então uma evocação do passado que se alterna com o presente, em trechos de eficiente utilização estilística do flash-back. O irmão sobrevivente, narrador que alinhava os acontecimentos trágicos, se sente “como dois ponteiros eternamente parados” de um relógio: ameaçado pelos pastos que diminuem, gradativamente, é enxotado da terra pelo mero instinto de conservação.

Antônio Torres traz como elemento novo, de função inesperada, a mulher, a mãe que é o motor de transformação, o alvo da propaganda mentirosa e que incita o filho a emigrar, a procurar no formigueiro da grande cidade o poderio do salário, a força concreta do dinheiro como fuga daquele pântano cotidiano. O pai é que se apega à terra, como se ele fosse o porto seguro diante do naufrágio. Ponto de tensão entre esses dois extremos, o “filho pródigo”, na trágica ironia do autor, é o elo que se parte.

Na trajetória de seus três livros já publicados, o escritor, se aprofundou sua análise, no entanto não disciplinou o tom emotivo. Se obteve páginas excelentes na descrição patética dos personagens e na viagem da mãe para o asilo de loucos, foi infelizmente incapaz de eliminar expressões que abalam a força do relato. É o caso patente de “Papai nem queria ouvir se tocar no assunto – gargalham os dentes do passado” ou “Mais pesado do que o ar não era o sino. Era o coração dos homens”. Isoladas , essas frases involuntariamente “ Kitsch” não chocam tanto. Só na passagem em que a qualidade decai a um nível inesperado é que o autor, num diálogo imaginário com Deus, atribui-lhe características de um Clóvis Bornay, a desfilar na passarela do carnaval:

“Me visto de sol e de lua, me adorno de estrelas e tenho um raio em cada braço. Quer saber a verdade mesmo? Sou o campeão nacional de qualquer concurso de fantasia. Deve ser por isso que dizem que Eu Sou Brasileiro”.

Frases como esta desmerecem qualquer livro que não tenha sido assinado por José Mauro de Vasconcelos, Num escritor sério, de talento comprovável, causam mal-estar, embaraço, perplexidade. Destoam da colaboração elegíaca desta narrativa que se inicia com um suicídio que serve para iluminar outras vidas já mortas. Enfraquecem este painel comovedor em certos trechos da ineficácia da emigração como solução final para a miséria, deste teorema que se reconhece o falso progresso.

O romance social é possivelmente o gênero mais difícil pelos ardis maniqueístas que oferece ao escritor. De um lado o bem róseo, de outro o Mal monolítico e todo “do lado de lá”. Antônio Torres não sucumbe á tentação ingênua de propor soluções ideológicas que extravasam a diagnose radiológica que a leitura pode fazer de uma sociedade. Reconhece por detrás de qualquer materialismo, histórico ou não, o materialismo histérico que mina tantas visões primatas da complexa condição humana. Sabe que entre o Gorki de 1914 e o Brasil de hoje passaram-se décadas decisivas que reformularam as fórmulas da farmacopéia para os males que os homens infligem uns aos outros. E é justamente por ter a lucidez de não desembocar no proselitismo panfletário que seus livros deixam sua marca na literatura que se faz hoje no Brasil.

No entanto, é indispensável que o autor reduza de muito o âmbito de dizer. Caso contrário, o excesso de temas, abordados sem profundidade, como o do louco e o do veado, enfraquecerá inevitavelmente a importância do que ele tem a testemunhar para ao leitor. Não se trata de uma luta simplista entre a caneta e a enxada: a máquina de escrever coexiste com o trator. Por não se insurgir contra a mecanização da lavoura nem por advogar uma panacéia cifrada na volta pura e simples à Natureza agro-pastoril é que a sua criação precisa restringir-se para adquirir substância maior. Na lavoura como na literatura, o latifúndio e o minifúndio são tão enganadores como o binômio cidade-campo.

Senão, para continuar com o vocabulário agrícola, o melhor será esperar. Assim como as terras se esgotam, sem rotatividade de culturas, os autores também se beneficiam quando um intervalo de meditação fecunda sua própria gleba de talento.


“Torres, como Graciliano, optou pelo mais honesto: escrever sobre o seu Nordeste. E assim como Graciliano identificava as personagens de Vidas Secas mostrando que saíram de sua família, Essa Terra tem no lastro biográfico a sua força original.” – Affonso Romano de Sant’Anna/Veja

Essa Terra um clássico contemporâneo

Correio das Artes – João Pessoa, PB, 3 e 4/11/2001.
Aleilton Fonseca

Capas de Essa Terra

O romance Essa terra, de Antonio Torres, chegou à 15ª edição, pela Editora Record, comemorando 25 anos de circulação, já traduzido para cerca de dez idiomas, estudado em artigos, ensaios e teses no Brasil e no estrangeiro. O sucesso do livro começou já na estréia, em 1976, com edições seguidas, ao merecer da crítica a saudação como uma ficção madura e primorosa.

Essa terra focaliza, na experiência de uma família do sertão baiano, o drama da migração nordestina para São Paulo e suas conseqüências psicológicas e sociais. Sob a ótica do narrador Totonhim, o irmão mais novo, conhecemos a trajetória do protagonista. Nelo é o migrante que, ao deixar sua terra, sua família e sua identidade para trás, entrega-se à metrópole paulistana e nela se perde, desenraiza-se e termina derrotado. Ao retornar ao lar paterno, encontra-se doente, abandonado e desiludido. Não suporta o peso da frustração, ao sentir que não contemplara as expectativas da família, sobretudo de sua mãe, que o imaginava rico e vencedor. O suicídio de Nelo é, portanto, o nó do enredo, síntese do impasse, do desenraizamento e da frustração que destroem o personagem. Este drama pungente constitui uma ficção precisa, de grande força estética, uma espécie de depoimento sobre um aspecto dramático da sociedade brasileira de meados do século XX. Pode ser visto ainda como um memorial consubstanciado no contraste gritante entre os grandes centros desenvolvidos e o sertão esquecido à própria sorte, em que a redenção do homem se reduzia ao horizonte das tristes estradas.

Essa terra tem o toque mágico dos grandes livros, desperta no leitor o senso de reflexão comiserada acerca do semelhante e a suas condições de existência, açula a vontade de compreensão e a solidariedade, provoca uma visualização mais profunda do ser humano. Este romance nos faz enxergar mais profundamente a realidade dos excluídos, reconhecendo-os enquanto sujeitos e pacientes de um drama histórico. Ao lê-lo sentimos aquele mesmo apelo de Vidas secas, assim como a marca da hombridade que se capta no sertanejo de Os sertões. Trata-se de uma escrita densa, de economia formal medida, tecida com a maestria de um romancista que consegue aliar precisão técnica à ternura do relato, mantendo, apesar da tensão, uma “camaradagem” equilibrada com seus personagens. Enfim, esta é uma prosa que alicia o leitor fazendo-o mergulhar afetivamente na leitura e nos dramas as personagens.

A migração é um fenômeno universal, assim como o desenvolvimento desigual dos lugares. Campo, cidade, metrópole, essa é a rota que exibem todos os países, num fenômeno mundial. O drama da viagem, do desenraizamento, da diáspora, da perda de valores fazem de Essa terra um romance universal, pondo em relevo a feição particular que este assume em território brasileiro, na trajetória sertão/metrópole, como uma viagem de ida e volta, não só em termos concretos, no deslocamento dos corpos e das vivências, mas na transição de valores, comportamentos, imaginários e condições de vida.

É auspicioso para a literatura brasileira ter um romance dessa dimensão, surgido na abertura do último quartel do século XX. Um livro que se coloca na mesma linhagem de O quinze, Vidas secas e Vila Real, naquilo que esses romances têm de esforço para compreender a saga do nordestino, em condições tão adversas. Nesse sentido, pela fortuna crítica amealhada em suas 15 edições, pela saga em terras e universidades estrangeiras, em apreciadas traduções, Essa terra merece registro entre os grandes romances brasileiros. Um clássico contemporâneo que se tornará cada vez mais visível na pequena lista de livros que jamais caem no esquecimento, porque se tornam objeto constante de estudos, referências, matéria de exames e concursos, fazendo parte do cânone escolar corrente, lugar das obras consagradas. O romance de Torres tem a rara qualidade de ser ao mesmo tempo profundo e acessível a um público mais amplo. Rico em significações não só estéticas, mas também sociais, dialoga com diferentes dimensões do saber, interessando também aos estudiosos da cultura, da história, da geografia humana, entre outras.

Essa terra, essa vida, essa busca – uma viagem a que a leitura nos convida, de forma que ao final da trajetória, poderemos exorcizar o drama humano e social de Nelo pela forma narrativa e compreensiva que o narrador Totonhim nos ensina. Ensinar a compreender a vida não é o papel social do escritor, para além de seu irrecusável compromisso estético? Para compreender melhor essas questões, leiamos Totonhim, Totonho, Totinho, simplesmente Antônio Torres.


“Eu admiro muito a ironia, o calor e o estilo de Essa Terra, que tão brilhantemente descreve pessoas cujo destino é mudar de lugar.” – Doris Lessing

ESSA TERRA

Gerana Damulakis
gerana@atarde.com.br

Capas de Essa Terra

No livro Machado de Assis, a ensaísta Lúcia Miguel Pereira, observa que, no grande mestre, vemos confirmada a importância do regionalismo na formação do artista. Com aquela escrita crítica única, ela segue mais longe em suas considerações e lembra que este regionalismo constatado, não é o regionalismo do espírito, mas o da sensibilidade. Vale reproduzir as palavras da própria Lúcia Miguel: “As experiências como que se fixam melhor, são mais profundas, quando o ambiente é sempre o mesmo. Ir lentamente descobrindo o humano no local, partir do particular para o geral, torna mais natural e espontânea a criação”.

Tais colocações chegam a calhar aqui para tratar do livro de Antônio Torres, Essa Terra, nada menos do que a 15ª edição. A Editora Record está oferecendo ao público as reedições dos livros do baiano de Junco, com formato e capas dentro de um determinado padrão para quem quiser compor uma coleção: O Cachorro e o Lobo; Balada da Velha Infância Perdida; Os Homens dos Pés Redondos e agora Essa Terra. De 1976 até hoje, Essa Terra vem ganhando traduções mundo afora; além de traduzido para o francês, inglês, italiano, alemão, holandês, hebraico e espanhol, sairá em Cuba brevemente.

Mas é tempo de justificar a chamada de Lúcia Miguel Pereira para ser aplicada a este texto: Essa Terra é ambientado em Junco, hoje Sátiro Dias, interior da Bahia. O regionalismo de Antônio Torres trata desta terra e sua gente e, principalmente, do desejo e da realização mesma de sair do mundo da seca. No seu primeiro livro, Um Cão Uivando para a Lua, de 1972, a miséria do personagem que cresceu em Junco é apenas o começo da trajetória de um repórter rumo a São Paulo. Em Os Homens dos Pés Redondos, um publicitário, também trabalhando em São Paulo, teve sua infância passada em Junco. Finalmente, em Essa Terra, está evidente o tratamento tanto da miséria dos que vivem em Junco, como do êxodo, na figura do irmão do narrador principal, que partiu para São Paulo, ganhou dinheiro, mandou dinheiro de lá para a família que ficou no interior, e voltou, mas não afortunado como se poderia prever, e sim acabado, bêbado e traído pela mulher.

As memórias do personagem, chegadas como fragmentos, são aquelas memórias profundas de que fala Lúcia Miguel Pereira, fixadas no ambiente. E com isto de trazer o Junco para a ficção, Antônio Torres descobre “o humano no local, parte do particular para o geral, torna mais natural e espontânea a criação”. Regionalizando sua obra, Antônio Torres ganha na agudeza com que tece o drama e os personagens são mais reais. Em Essa Terra aparece de passagem o Nego de Roseno, dono do armarinho, que é personagem de um conto trazendo seu nome “Segundo Nego de Roseno”, do volume Meninos, Eu Conto (Record, 1999). Essas particularidades criam uma cumplicidade imediata com o leitor, fazendo com que se estabeleça uma intimidade muito interessante para a leitura.

>Outro ponto que o escritor sabe também atingir o leitor prendendo-o é o seu uso de frases curtas, sempre muito objetivas, em várias ocasiões chegando mesmo a serem bombásticas — aqui é imediata a lembrança do episódio da mãe do personagem, doente, dentro de um carro em direção a um distante socorro pelo deserto do sertão, a vomitar pela janela; há frases de enorme poder de expressão do momento. Mas o estudo minucioso sobre o livro encontra-se no posfácio assinado pela professora Vania Pinheiro Chaves, da Universidade de Lisboa.

Tendo em vista que alguns títulos estavam esgotados, os romances reeditados de Antônio Torres são oportunidades para o leitor passar a fazer parte dos admiradores deste ficcionista baiano, autor de mais de uma dezena de livros, sempre reconhecido e aplaudido.