O suicídio do herói

Revista Veja, 30 de Junho, 1976.
Affonso Romano de Sant’Anna.

Capas de Essa Terra

Poderia se chamar também “a volta do herói” esse romance em que Antônio Torres conta como o baiano Nelo larga sua família, vai para São Paulo e regressa, vinte anos depois, para se enforcar aos olhos do irmão mais novo e dos parentes, que o julgavam um indivíduo bem sucedido.

O livro – ilustrado por Elifas Andreato – retrata o herói, ou melhor, o anti-herói como o são também o repórter de “Um Cão Uivando para a Lua” (1972) e o publicitário de “Os Homens dos Pés Redondos” (1973), livros anteriores com os quais Torres marcou seu lugar entre os novos ficcionistas. Unindo os três livros, aparece não apenas a temática da loucura e da miséria social, mas a referência à cidade baiana de Junco, que assume um destaque maior em “Essa Terra” (Junco é a cidade natal do próprio Torres).

Tragédias – A história é contada pelo irmão mais novo Totonhim, e narra a decomposição de um mito. Assim, Nelo, que era “um homem belo e rico, com seus dentes de outro, seu terno folgado e quente de casimira, seus raybans, seu rádio de pilha e um relógio que brilha mais do que a luz do dia”, vai se convertendo num bêbado incapaz de criar uma família. Cheio de doenças, encontra no suicídio o gesto capaz de libertá-lo da falsa imagem que a família nele cultivava.

A história, contudo, não se reduz a esse eixo dramático. Além do lado psicológico ou individual, interessa ao romancista o contexto social onde isto se gera. Daí que a tragédia do individuo e a tragédia da comunidade estejam interligadas neste livro. E ao intitulá-lo “Essa Terra” e ao situá-lo no nordeste. Antônio Torres está se filiando a uma tradição literária que tem um de seus melhores momentos no romance social de 1930.

Mas poderia surgir a pergunta: não estaria o autor entrando perigosamente numa terra exaurida já pela ficção de um Graciliano Ramos especialmente com seu “Vidas Secas” (1937)?

Outro nordeste – A melhor resposta poderia ser encontrada no própria Graciliano, a quem Otávio de Faria advertiria de que o sertão, esgotado, não dava mais romance. Ao que o escritor alagoano retrucou: “Santo Deus! Como se pode estabelecer limitações para essas coisas” – e fez a obra que fez. Torres, como Graciliano, optou pelo mais honesto: escrever sobre o seu nordeste. E assim como Graciliano em carta a José Condé identificava as personagens de “Vidas Secas”, mostrando que saíram de sua família, “Essa Terra” tem no lastro biográfico a sua força original.

Tecnicamente o livro de Torres (e de muitos ficcionistas jovens brasileiros) mostra um avanço em relação à montagem dos romances sociais de 1930. à narrativa linear e cronológica ele prefere um desencadeamento em que passado, presente e futuro se cruzam oferecendo uma estória às vezes de acompanhar. Em torno da tragédia central, pequenas outras narrações reafirmam a tensão patética das personagens.

Cabe, no entanto, a cada época, educar os seus bons leitores. O publico de 1930 teve também que aprender a re-ler o Brasil. No caso específico deste livro, existe toda uma leitura acompanhada por uma introdução e um “suplemento de trabalho” endereçado a alunos e professores. E através de uma aliança com a escola procurar formar um público novo que se deixe transformar por uma linguagem também nova.


Uma análise mais profunda deste livro mostra que não se trata somente da representação da miséria do Junco ou do Sertão Brasileiro, mas sobretudo de uma sondagem que se inicia (ou prossegue): a sondagem de uma condição social, através do mergulho no caos individual que acaba nos conduzindo às origens mais gerais da culpa, onde se encontram o autor, o personagem e o leitor, sofrendo na pela a fragmentação do homem, desde que a civilização criou o abismo entre a enxada e a caneta”.

Lígia Chiapinni Moraes Leite, da Universidade de São Paulo, no prefácio à primeira edição do “Essa Terra” (1976).